Golpe, esse velho fantasma

Essa história é mais que antiga, antes mesmo que Brasília se fundasse como capital.

Golpe, esse velho fantasma

Golpe, esse velho fantasma

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Essa história é mais que antiga, antes mesmo que Brasília se fundasse como capital.

Nos parlamentos, como nos quartéis, quando se especula muito sobre a inconveniência de golpe de estado, é porque não falta quem o queira; e, para viabilizá-lo, conspira-se. Trata-se de velha e permanente atração para os que descreram dos caminhos legais e democráticos na solução dos problemas e dos desafios. É a razão por que nunca de dissipa, em definitivo, o clima de conspiração que se tem sentido. Seja como for, uma vergonha o país, em pleno século 21, que já passou pelo vexame de algumas quebras da ordem constitucional, ainda hoje ter de ouvir sandices e rompantes de façanhas patrioteiras.

Nos últimos dias não se insinua outra coisa, às vezes velada, outras explicitamente. É o assunto do palavrório em que se alternam civis e militares, estes não apenas os apijamados, mas também os da ativa, o que é mais grave.

 

 

A agenda conspiratória tem a estimulá-la, entre os temas mais frequentes, uma demorada definição sobre como tramitar o impeachment do presidente Bolsonaro; medida extrema que, no quadro atual, parece deteriorar-se por causa do acúmulo de pedidos que nesse sentido foram encaminhados à Câmara. Pediu-se demais, no atacado e no varejo, o que dá aos situacionistas argumento para esticar o assunto; além dos que têm dúvida se o presidente e seu governo são responsáveis e culpados únicos nas consequências da pandemia. Nesse caso, em particular, é interessante perceber que, quanto maior a evidência da responsabilidade, menor a possibilidade de construir o comprobatório, confiado ao erro juvenil que se cometeu em relação à CPI da Covid: na ânsia apressada de atacar o governo, cometeu-se o descuido de constituí-la de senadores altamente suspeitos. Dessa deformação aproveitam-se golpistas e antigolpistas.

O impeachment é algo complexo, muito mais na ressaca dos dias seguintes, do que propriamente no momento da decisão. Tanto que foi tentado apenas nove vezes em toda a história da República, desde Floriano, e apenas em duas vezes consumou-se, mesmo assim porque Fernando Collor e dona Dilma não souberam transitar com desenvoltura política num Congresso que sabe como compor. Fazer acertos é aquela antiga vocação, que levou o ex-presidente Lula a ver ali nada mais que 300 “picaretas”; mesmo assim insuficientes para salvar a companheira Dilma da degola.

Outro componente a alimentar a incômoda discussão, que nem devia sair das fronteiras de republiquetas, está na atuação de setores militares. Tanto incursionam na área politica para falar da inconveniência de um golpe; tanto garantem que isso nunca se dará; tanto insistem em que não agiriam ao arrepio da Constituição, que fica parecendo ser algo diferente o que vai na consciência desses homens. Pode ser que gostariam que acontecesse o que dizem não desejar.

 

Porém, o ponto mais sensível a alimentar temores é a ameaçadora pregação presidencial de que o processo eleitoral de 2022 terá de se desenrolar por meio do voto auditável, ou não haverá eleição. Dizer algo assim, se é tão grave partindo da autoridade maior, pior quando ganha o respaldo do ministro da Defesa, que incursiona em campo reservado a uma discussão de natureza política e da alçada civil. É um avanço que tange, arranhando, a hierarquia e a disciplina, quando entra numa seara que pertence ao seu comandante supremo. Nada mais a sugerir que a leitura do Artigo 142 da Carta, onde se define, com clareza, o papel das Forças Armadas.​​​​

Solução pela metade.

Sofremos a tentação das mexidas emergenciais no sistema ou no regime, quando as dificuldades apertam, como se não fosse mais profunda a razão das dores que nos afligem. Se as costas do governo ardem, nelas aplicamos cataplasma ou ministramos analgésicos na Constituição ofendida, tal como em 61, quando se pretendeu amarrar os poderes do presidente João Goulart. Receituários assim, improvisados ou intempestivos, sempre acabaram sendo uma ponte para se chegar a lugar algum.

 

Agora, ouvimos falar em semipresidencialismo, espécie de esparadrapo com que o presidente da Câmara quer abafar problemas imediatos, mas apenas para aplicá-lo nos governos seguintes. Tanto assim, que propõe a mudança para só viger em 2026. O que autoriza perguntar ao deputado Lira por que não aproveitar melhor esse interregno de seis anos, e com ele debater com a sociedade um parlamentarismo definitivo, claro, sério e real, sem maiores preocupação em causar desgosto aos presidentes, por ficarem limitadas suas atribuições ao Estado, sem poderes eminentemente de governo.

O presidencialismo pela metade, como estão nos propondo, pretende imitar experiências vividas em Portugal e França, como se nada houvesse para diferenciações entre o Brasil e eles.

 

 

Sem a intermediação desse semi, prefixo suspeito, deviam as lideranças políticas planejar e mostrar as excelências do parlamentarismo, que já devíamos ter adotado há meio século, independentemente de crises e incertezas. Portanto, mais adequado seria o presidente da Câmara dos Deputados cuidar, com coragem, de uma preliminar indispensável: avançar para a autenticidade dos partidos, e neles um mínimo de condutas ideológicas e programáticas, base do regime de Gabinete. O que significa ânimo para reforma político-eleitoral inovadora. Sem isso, o pretendido semipresidencialismo seria apenas continuar chovendo no molhado.