Entre o mito e o homem

Entre o mito e o homem

Entre o mito e o homem

 Paulo PestanaCrônica

O escritor britânico George Orwell sabia muito sobre animais, mas muito mais sobre os homens. Usou de fábula para falar de igualdade social e liberdade em A Revolução dos Bichos, de ficção distópica para mostrar o autoritarismo oficial em 1984 e de vivência pessoal para criar Na Pior em Paris e Londres, ainda hoje uma das mais radicais experiências literárias.

São relatos feitos entre 150 e 400 páginas, mas Orwell, sob o pseudônimo de Eric Arthur Blair, reuniu todo o seu sarcasmo e sabedoria numa simples frase de um artigo: “a história é escrita pelos vencedores”. Faltou dizer que os vencedores de hoje podem ser os derrotados de amanhã e, daí, a história vai sendo reescrita.

Um exemplo é a história do Brasil, por séculos contada a partir dos relatos oficiais de Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro, que em 1854 publicou o primeiro dos dois volumes de História Geral do Brazil. São dois calhamaços de mais de 500 páginas cada, em que o esforço do autor para se manter imparcial sucumbe a cada página.

Calcado em documentos oficiais, é uma história contada a partir dos gabinetes e que reflete a vontade de quem mandava, além de preconceitos expostos em opiniões pessoais – notadamente de raça – que fazem da caudalosa obra uma ode sobre si mesma. Capistrano de Abreu foi preciso ao determinar a personalidade do Visconde: “sensível ao vitupério como ao louvor” – um orgulhoso.

Da obra ainda se aproveitam trechos de documentos e citações de personalidades, mas a história em si vem sendo toda reescrita, até por irreverentes – e pouco precisos – programas exibidos no YouTube.

A história de Brasília, acompanhada de perto por testemunhas que ainda estão entre nós também vem sofrendo revisões periódicas. Mesmo com registros diários da epopeia da construção da capital no meio do ermo é eivada de lendas, muitas criadas pelo jornalismo romântico que tinha a necessidade de criar heróis.

Um desses homens foi Bernardo Sayão, engenheiro que teve a tarefa de transformar os desenhos criados nas pranchetas em realidade. Se contava que ele mesmo pegava no cabo do facão mateiro para abrir picadas no cerrado, chamava os peões pelo nome, era comparado a um Hércules pela força e entusiasmo; um homem a quem era impossível dizer não.

A morte de Sayão, vitimado por um galho caído de uma enorme árvore, foi cercada de misticismo desde a primeira notícia. Ele não era invulnerável? Quis o destino que o corpo de Sayão fosse o primeiro a ser sepultado no Campo da Esperança.

A história desse homem, se não recontada, está sendo esmiuçada em um livro diferente, sensível e amoroso. Caminhos, Afetos, Cidades (edição do autor) abraça o primeiro mito criado por Brasília a partir do relato de Sérgio de Sá, neto do engenheiro, professor da UnB, jornalista.

Sá não conheceu Sayão, morto 11 anos antes dele nascer, mas cresceu ouvindo histórias sobre o superavô. O personagem, as histórias, corroboradas por intensa pesquisa e método fazem uma leitura cativante e envolvente, que elevam o homem sem matar o mito.

É uma história que precisava ser (re)contada. Não é o caso de outras tentativas de (re)escrita.