Dowbor: o capitalismo se desloca – e abre nova disputa
Novo livro debate contradição central de nosso tempo: produção imaterial permite enfrentar desigualdade e multiplicar cooperação. Mas a lógica da exclusão e do monopólio contra-ataca – com barreiras e superpoder das finanças
Dowbor: o capitalismo se desloca – e abre nova disputa
Novo livro debate contradição central de nosso tempo: produção imaterial permite enfrentar desigualdade e multiplicar cooperação. Mas a lógica da exclusão e do monopólio contra-ataca – com barreiras e superpoder das finanças
OUTRASMÍDIAS
por Revista Sesc
Ladislau Dowbor, em entrevista à Revista Sesc
Professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o economista Ladislau Dowbor se debruça sobre a transformação estrutural do mundo provocada antes mesmo da pandemia. Autor e coautor de aproximadamente 40 livros (produção intelectual disponível na internet), já trabalhou como consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações.
Em seu novo livro, O Capitalismo Se Desloca: Novas Arquiteturas Sociais (Edições Sesc São Paulo, 2020), Dowbor trata, como ele mesmo descreve no prefácio, “de um conjunto de mudanças do capitalismo que possam caracterizar a evolução para um outro modo de produção, que poderíamos caracterizar como informacional, constituindo uma nova era, a do conhecimento, diferente da era industrial”. Partindo de uma análise temporal sobre as transformações sociais provocadas, primeiro, pela agricultura, depois pela indústria e, mais recentemente, pela tecnologia, o economista analisa o impacto gerado pela revolução digital. Que estruturas políticas e relações sociais serão desenhadas pela era do conhecimento, das tecnologias de comunicação, do “dinheiro imaterial”?
Nesta Entrevista, Ladislau Dowbor fala sobre a importância de processos colaborativos e entraves ao compartilhamento de conhecimento.
O conceito de nação pode deixar de existir tendo em vista que a informação e o dinheiro atingiram alcance e impacto global?
Diria que há uma tensão nesse cenário. As identidades culturais persistem, são fortes e imensamente importantes. Agora, a economia passou para o nível global, em particular tudo o que é economia de conhecimento e economia financeira, porque hoje conhecimento e finanças giram nessa roda. As pessoas não se dão conta da revolução que acontece quando eu, por exemplo, quero contatar alguém, no Japão, que está fazendo uma pesquisa que tem conexão com a minha. Consigo fazer isso num instante por meio de um pequeno aparelho. Então, você tem a globalização de um conjunto de atividades, a cultura, que permanece multinacional, e o sistema político que está completamente perdido porque os recursos financeiros são, em grande parte, globalizados. Há um endividamento generalizado dos países, dado o poder de grandes corporações — não mais General Motors, General Eletric, por exemplo — como Google, Amazon, Facebook, Microsoft e Apple. Ou seja, de um lado, sistemas que controlam a informação e o conhecimento servem de base para nossa própria comunicação. Do outro lado, como o dinheiro hoje é imaterial, também é uma unidade de informação, que navega nas ondas eletromagnéticas, gerando o High Frequency Trading em escala mundial, dando aos grandes bancos e investidores institucionais poder financeiro sobre os governos, as empresas produtivas, as finanças das famílias. Gradualmente o poder financeiro está se tornando poder político. O Twitter desconectou o presidente dos Estados Unidos por julgar as suas mensagens inconvenientes. Fez muito bem, na minha opinião, mas as pessoas se dão conta da dimensão política?
Qual é o impacto dessa diluição?
Gera-se a perda da capacidade de controle. Que poder tem um governo que não controla o acesso aos recursos financeiros? Reduz-se a capacidade que a gente chama de governança. Daí os governos tentam apelar para o “fígado” das pessoas: “É a pátria”, “É a igreja”, “É a família”, tentando se enraizar nas emoções das pessoas, em vez de elaborar projetos. No entanto, o governo não existe para dizer em que a gente deve ou não acreditar, como a gente deve fazer amor e coisas do gênero. O que o governo deve fazer é financiar infraestrutura, políticas sociais, avanços científicos. E o que ele está fazendo? Ele está apelando porque ele não tem os meios correspondentes aos desafios de um estado nacional. Tornam-se governos demagógicos e inoperantes. Não é só no Brasil ou nos Estados Unidos.
Hoje a legislação fica a reboque da tecnologia, ou seja, quando se pensa em legislação a tecnologia já superou aquele momento?
Um conjunto de atividades que a gente chama de políticas sociais — educação, saúde, segurança etc. — se tornou o eixo de atividade principal no planeta. Agora, essas atividades funcionam bem num nível local por serem algo capilar: você tem que chegar a cada criança, a cada família. Então, é preciso uma dinâmica da política local, uma reapropriação das políticas pela base. É só olhar como funciona na China, na Suécia, na Alemanha, no Canadá, em que os sistemas se descentralizaram e a estabilidade da política se dá pela força das estruturas locais. Em particular porque as populações se urbanizaram. Não somos mais populações dispersas de um lado e uma capital que manda em tudo do outro lado. Hoje somos urbanizados, somos redes interurbanas e é nas redes de cooperação entre cidades que a conectividade, justamente, permite isso e se dinamiza. Então, temos um eixo que vai para o local e um eixo que vai para o global. E, no meio disso, o governo nacional, que era o poder, que era a política, que era a solução e a legislação, tudo isso se dilui em grande parte. No caso da legislação, basta ver, por exemplo, que no Brasil, com a Constituição de 1988, descentralizou-se uma série de atividades para o nível local, mas o repasse do dinheiro não se faz, ele continua centralizado. Portanto, a ausência de um novo pacto federativo que permita essa democratização da própria economia trava o processo. Temos leis que são do passado para uma realidade que está se transformando com muita rapidez.
Neste novo livro, você fala sobre a economia do conhecimento e traça uma linha do tempo que passa pela economia agrária e pela economia industrial até chegar à economia digital. Poderia descrever esses marcos temporais?
Estudei na Polônia os trabalhos do Witold Kula, ele fez para a economia agrária e para o feudalismo o que Karl Marx fez para o capitalismo. Então, eu tenho muito presente essa visão de que nós tínhamos um sistema: o fato de a economia pertencer às atividades agrárias, e o fator principal de produção ser a terra, gerou o feudalismo, a escravidão e um conjunto de formas de organização da sociedade. A Revolução Industrial traz um conjunto de outras formas: gera as fábricas, a urbanização, o proletariado, a divisão entre o capitalista e o trabalhador, o assalariado, gera uma outra sociedade, inclusive, toda a superestrutura – as leis de propriedade de bens de produção etc. Tem gente que notou que essas coisas mudaram e chamaram o que acontece hoje de indústria 4.0. Eu acho isso uma incompreensão do processo. Não estamos num grau maior da sociedade industrial. Tal como houve uma revolução industrial, temos hoje uma revolução digital e ela se baseia no conhecimento, e o conhecimento é radicalmente diferente da máquina porque é preciso construir, comprar a máquina – “ela é minha”, diz o capitalista. Agora se eu passo o conhecimento para alguém, eu continuo com esse conhecimento, ele pode ser repassado. Na China, as universidades e os centros de pesquisa trabalham com o que eles chamam de China Open Resources for Education (Core). Todo conhecimento produzido é repassado para todas as instituições gratuitamente. Então, todo mundo trabalha na ponta, ninguém está reinventando a roda. Os processos colaborativos nessa revolução digital são muito mais produtivos do que sentar em cima de uma patente. Basta ver o drama da indústria farmacêutica e a que ponto ela está dificultando e encarecendo o sistema de saúde no mundo.
Ou seja, a ideia da economia do conhecimento, de forma ampla, pediria uma espécie de compartilhamento?
O que Marx trouxe de mais rico é essa compreensão de que as técnicas transformam as relações de produção. Você tem o feudo e o servo numa era, você tem o capitalista e o operário em outra era, e você tem outros sistemas que estão se formando. Acontece o seguinte: quando eu pego o meu celular, nele 95% do valor é de conhecimento incorporado, não é trabalho físico ou matéria-prima. E esse conhecimento imaterial pode ser generalizado para todo o planeta sem custos adicionais. Consequentemente, isso gera a necessidade de outras regras sociais. Se produzo uma bicicleta, ela é minha até que eu consiga vender e ter o dinheiro de volta para que eu consiga comprar mais matéria-prima para fazer outra bicicleta. O conhecimento não: você produziu, cobriu os custos de produção e pode generalizar o acesso sem custos adicionais. Então, a colaboração como regra geral de organização se torna muito superior à competição e apropriação privada. Voltando ao exemplo da indústria farmacêutica, trava-se a patente por 20 anos de um determinado princípio ativo e isso simplesmente paralisa as pesquisas. Nós temos leis de antigamente, da apropriação privada, quando a produtividade na sociedade do conhecimento exige livre fluxo, o chamado Creative Commons, Open Access, como o MIT (Massachusetts Institute of Technology), que criou o Open Course Ware, e por aí vai.
Poderia dar mais exemplos?
Se eu pego como exemplo a indústria de robótica, hoje essas empresas são particulares, mas elas comunicam entre si seus avanços para ninguém ficar repetindo o que uma outra empresa já fez. Assim, todos se tornam mais produtivos, e os que compram os robôs passam a ter robôs mais produtivos. É simplesmente mais racional. Não é dizer: “é bonitinho que a gente seja colaborativo”, mas sim que ser colaborativo resulta em produtividade. Por exemplo, o Prosper é um banco em que as pessoas comuns, como eu e você, emprestam dinheiro umas para as outras numa plataforma que assegura garantia, com o blockchain. Isso funciona nos Estados Unidos e em grande escala. O criador do Prosper disse que a atividade bancária é essencial, mas o banco não. Ou seja, não precisamos dessas gigantescas pirâmides, estruturas planetária de intermediários. Nós podemos gerar simplesmente o acesso de uns aos outros de maneira gratuita, com certa subvenção pública pelo custo de gestão tecnológica. Mas não precisamos gerar lucros fenomenais para os bancos, nem precisa haver o endividamento das populações e das nações como está se generalizando hoje no planeta.
E quais seriam as características dessa sociedade do conhecimento?
A melhor forma de compreender é falar do contraste. Quando eu falo da era industrial, o capitalista pega um empréstimo no banco, vai construir ou comprar máquinas e produzir sapatos, por exemplo. Isso é útil, o sapato vai ser usado, está se gerando emprego, o que é útil também. Ele vai pagar imposto sobre essa produção e com esses impostos o governo pode financiar as infraestruturas que melhoram a produtividade das empresas e políticas sociais que melhoram a qualidade de vida das famílias. Isso é um capitalismo que chamamos de era do Estado de Bem-Estar e funcionava. Hoje, 61 milhões de adultos no Brasil estão travados, o Serasa chama de negativados, as pessoas chamam de “nome sujo”, mas basicamente essa gente em grande parte não tem emprego. Para explorar as pessoas por meio de salário baixo, pelo menos precisa lhe assegurar um emprego. O endividamento permite atingir a todos. Nós somos um país de 212 milhões de habitantes com apenas 33 milhões de empregos formais privados. Então, essa massa de gente desempregada ou que se vira para sobreviver no setor informal é explorada brutalmente por meio da dívida que eles fazem em compra no crediário porque eles não têm como pagar à vista. No Brasil, pagam juros muito altos. Isso que a gente chamou de financeirização. Então, você tem, ao mesmo tempo, um imenso controle sobre as pessoas, algo que é permitido por redes sociais etc., até mesmo invasão de privacidade, e você tem uma apropriação das pessoas pela dívida. A forma de acumulação do capital mudou, porque na era industrial, a pessoa tinha que investir na fábrica, produzir uma coisa útil para vender e pagar impostos. Esse sistema atual controla, de um lado, as pessoas, empurra todos esses produtos financeiros e, no final, as pessoas ficam endividadas. Em 2020, o jornal The Guardian divulgou dados dizendo que os estudantes nos Estados Unidos estão devendo 1,4 trilhão de dólares. Eles estão desesperados, enforcados em dívidas. Ou seja, os estudantes terminam a faculdade e têm uma dívida de mais de 100 mil dólares e vão passar décadas pagando os juros sobre esse empréstimo.
Empresas como Facebook e Google também colocam seus usuários para produzir conteúdo e gerar dados essenciais para eles. Ou seja, ainda estamos trabalhando gratuitamente para eles?
Se você observar os imensos lucros dessas empresas e de outras do segmento, elas ganham com publicidade. Essa publicidade é paga por empresas e essas empresas, naturalmente, para elas, a publicidade que elas pagam para Google e outras empresas representa um custo. O que essas empresas fazem? Elas incorporam esse custo da publicidade que pagam para o Google, por exemplo, no preço dos produtos que nós pagamos. Então, nós pagamos fortunas para ter o dinheiro transferido para o Google e para o Google nos convencer de que precisamos do produto que eles nos empurram a cada vez que interrompem o programa a que assistimos. Isso interessa muito para os grandes grupos. Por exemplo, a Apple, em 2018, pagou 0,05% de impostos sobre seus lucros. O fato é que o sistema se transformou num processo de drenagem que a gente não sente. Porque antigamente se tiravam 100 reais do seu bolso, você agarrava sua carteira, agora simplesmente aparece um sinalzinho do celular de alguma transação bancária, no seu bolso, e você nem percebe. Então, a forma de drenar nossos recursos se deslocou radicalmente pela financeirização, movimento no qual o capital fictício se valoriza de forma relativamente independente da valorização dos ativos produtivos, alterando a dinâmica do sistema capitalista. Antigamente os americanos diziam “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos”. A base eram as fábricas e os operários. Hoje temos as plataformas e usuários, moedas digitais e pessoas endividadas. O sistema está mudando.
Quais os entraves para a economia compartilhada ocorrer em grande escala?
Hoje o nosso sistema coloca pedágios em todas as atividades ligadas ao conhecimento, pesquisa, e coisas do gênero. Isso acontece sob forma de royalties, de copyrights, de patentes. E isso hoje é um sistema absurdo. O prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz diz que o sistema de patente está travando as pesquisas científicas tecnológicas. Se você analisar os trabalhos da economista italiana Mariana Mazzucato, vai ver que ela mostra a que ponto esses avanços tecnológicos, por exemplo, essa tela do celular em que posso mexer em tudo apenas com a ponta dos dedos, são resultado de pesquisas financiadas por universidades públicas, e toda a parte eletrônica do celular também. Por isso, o sistema de patentes que duram 20 anos ou o sistema de copyrights nesses casos não fazem o mínimo sentido. Outro exemplo é o da tecnologia de anticorpos sintéticos, algo extremamente importante para o futuro. Uma empresa comprou essa ideia, patenteou e senta em cima vendendo e cobrando acesso em vez de permitir que isso seja pesquisado de maneira colaborativa planeta afora. Ou seja, está se travando o progresso por meio do que chamei de economia de pedágio. Essencialmente são pessoas que não produzem, apenas se colocam como intermediários. E o conceito de colaboração envolve uma mudança profunda de rumos. Sobre isso temos Lawrence Lessing [um dos fundadores do Creative Commons], publicações como Wikinomics (de Don Tapscott e David Ticoll, Nova Fronteira, 2007), que traz dezenas de exemplos de como processos colaborativos interempresariais tornam todo mundo muito mais produtivo. Mas, quando pensamos em economia, ainda estamos com a cabeça na indústria automobilística, no conceito de competição etc. Só que hoje estamos evoluindo para um outro patamar de organização econômica, política e social.
No livro, você também toca numa questão importante: a mudança de paradigmas de produção e ainda faz uma relação que vai derivar na economia do conhecimento. De maneira geral, esse processo traz vantagens para a sociedade, já que para isso necessitamos cada vez mais do conhecimento dos indivíduos?
A evolução é positiva. O progresso tecnológico significa que conseguimos fazer muito mais com menos esforço. Isso gerou um avanço propriamente produtivo no capitalismo que permitiu um enriquecimento global. Tem um número básico e é importante lembrar: se você pega o PIB mundial, 85 trilhões de dólares, e divide pela população mundial, 7,8 bilhões de habitantes, isso dá 18 mil reais por mês para uma família de quatro pessoas. Ou seja, o que a gente produz hoje nos permite assegurar bem-estar a todos. Estou falando do planeta. Agora, no caso do Brasil, são 7,3 trilhões de reais de PIB divididos pela população de 212 milhões de habitantes. Isso dá 11 mil reais por mês para uma família de quatro pessoas. Ou seja, basta reduzir um pouco a desigualdade que dá para todo mundo viver de maneira digna e confortável. Então, é imensamente positiva a transformação tecnológica porque temos mais ferramentas, inclusive, para generalizar conhecimento, para distribuir esse fator de produção para todo mundo. A criança que vive na periferia tem a mesma inteligência de uma no Morumbi, não nos iludamos com isso. Só que não damos oportunidade a ela. Podemos generalizar uma maior criatividade por todo o planeta. Isso gera imensas oportunidades, mas o que trava essas oportunidades é essa ideia de que para se fazer dinheiro com um bem que pode ser multiplicado indefinidamente sem custos adicionais, você tem que tentar travar o acesso a ele. Então, um capitalismo que empurrava a produção para ganhar mais dinheiro hoje é um capitalismo que trava a generalização do acesso ao conhecimento para poder cobrar por ele.
Ou seja, é um gerador de escassez e nesse sentido ele perde sua legitimidade produtiva. Fiquei muito impressionado ao ler no ano passado, no Financial Times, o jornalista de economia Martin Wolf dizer que esse sistema perdeu sua legitimidade. É um sistema que vive de atravessadores e de pedágios travando o acesso ao conhecimento em vez de serem aqueles “capitães da indústria”, que empurravam a produção para a frente. Um fato gritante nessa pandemia foi o lucro sobre os investimentos das pessoas mais ricas do mundo, como tiveram sua fortuna duplicada.
Voltando ao comentário de Martin Wolf, o principal é que essa gente está ganhando fortunas não por contribuírem, mas ganhando na proporção em que geram paralisação. Quando você extrai mais recursos do que o aumento da produção, você está travando. A produção de bens e serviços no mundo aumenta entre 2% e 2,5% ao ano, enquanto o rendimento dos bancos, das ações e de quem trabalha na área financeira aumenta entre 7% e 9%. Onde o capitalista coloca o seu dinheiro? Onde rende mais e com menos esforço. São aplicações financeiras. O sistema se deslocou da lógica produtiva para o que chamam de um capitalismo extrativo. Qual o impacto disso no Brasil? Em 2020, dados da agência Forbes apontaram que 42 brasileiros bilionários em dólares aumentaram sua fortuna em 180 bilhões de reais em quatro meses, entre 18 de março e 12 de julho, com a economia não só parada, mas em recessão. Eles aumentaram suas fortunas e não pagam impostos, porque desde 1995, lucros e dividendos são isentos de impostos. Isso é uma aberração gritante.
No livro, você também comenta que as invenções tecnológicas na economia acabam moldando a sociedade. Quando houve a invenção da agricultura, o homem se fixou na terra e começou a trabalhar de sol a sol. Passado o tempo, com a revolução industrial, a criação das máquinas vai colocar o homem dentro do tempo, no horário de trabalho, uma jornada de até 16 horas. Como você vê essa questão do trabalho e do tempo com a revolução digital?
Quando o fator de produção é imaterial, as coisas mudam. A gente começou a constatar isso quando empresas nos Estados Unidos passaram a contratar secretárias em Nova Deli, porque falam inglês e o fato de estarem na Índia, ou na sala ao lado, não muda nada, já que o atendimento é feito por telefone ou e-mail. Ou seja, você tem um desgarramento entre a contribuição para a empresa e sua presença física. Isso, agora com a pandemia, evidentemente, explode, mas já estava presente de maneira muito forte. Quando você tem uma pessoa que trabalha numa empresa, mas o essencial do aporte dela é desenhar novas máquinas, se ela faz isso em casa ou na empresa, tanto faz. E tem mais, o profissional pode pensar o seguinte, um processo desse jeito foi desenhado por uma empresa na Índia, daí ele se conecta com o designer da outra empresa, ou seja, gera-se um sistema de conectividade. Quer dizer, se você junta a conectividade planetária, instantânea e gratuita, porque as ondas eletromagnéticas são da natureza e não pertencem a alguém, ainda que as empresas cobrem pelo uso, você junta o fato de que a produção é imaterial e o que os empresários te pedem são as ideias que você tem na cabeça e a capacidade de desenvolver essas ideias. Some isso à conectividade e você pode compartilhar essa ideia com outras pessoas em qualquer parte do mundo. Assim, você gera outra lógica de construção da economia. Isso para mim é tão profundo quanto passar da era da enxada na agricultura para usar a máquina, depois as fábricas e a energia para produzir sapatos, e hoje para você desenhar programas que vão fazer com que a máquina se organize para responder a esse processo. É todo um processo de algoritmos, de inteligência artificial etc. Quer dizer, na realidade, o que a gente precisa hoje como mão de obra é muito mais a cabeça pensante.
O que isso representa para a agricultura e a indústria, por exemplo?
É muito importante o seguinte: a agricultura não está desaparecendo nem vai desaparecer; a indústria não está desaparecendo nem vai desaparecer. Agora, o eixo condutor de todos esses processos se deslocou para o design, para o pensar, para a criatividade. Então, a lógica de organização do sistema muda. Quando houve a revolução industrial, isso mudou a agricultura, que não desapareceu, mas, por exemplo, nos Estados Unidos passou-se a produzir mais algodão para as máquinas de tecelagem na Inglaterra, e por aí vai. Agora, com o sistema atual há, por exemplo, uma mudança essencial de como se apropriar do excedente. Porque a apropriação do excedente era por meio dos salários baixos, da mais-valia. Hoje é pelo endividamento das pessoas, pelas taxas de juros, pelos dividendos abusivos em cima de aplicações financeiras, pelo endividamento dos governos, de maneira geral, e o conjunto das cobranças sobre direitos, no caso das patentes etc. Então, a apropriação do excedente se deslocou: ele não passa mais pelo aporte produtivo.
Para a era da terra, delimita-se o feudo ou se coloca a cerca, o principal fator de produção é a terra, a propriedade é baseada nas relações familiares vinculadas à nobreza, as relações de produção se apoiam na escravidão ou na servidão, o controle das mentes se estabelece na religião e no correspondente poder da hierarquia eclesiástica. Na era industrial, colocam-se os muros e as portarias nas fábricas, o principal fator de produção é a máquina, a propriedade é baseada no controle dos meios de produção, as relações de produção se apoiam no assalariado e na mais-valia, o controle das mentes se estabelece no consumismo e na propaganda. Para a era do conhecimento, da revolução digital, é possível fazer um ordenamento sistêmico semelhante?