Que Brasil teríamos, com mais mulheres negras no poder?

Executivo e legislativo continuam tomados por homens brancos e ricos — e agora há a ameaça do fascismo. Mas em 2020, candidaturas coletivas de grupos excluídos aumentaram, e podem abrir caminho para mandatos que sacudam a política

Que Brasil teríamos, com mais mulheres negras no poder?

Que Brasil teríamos, com mais mulheres negras no poder?

Executivo e legislativo continuam tomados por homens brancos e ricos — e agora há a ameaça do fascismo. Mas em 2020, candidaturas coletivas de grupos excluídos aumentaram, e podem abrir caminho para mandatos que sacudam a política

OUTRASPALAVRAS

FEMINISMOS

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Por CFEMEA, para a coluna Baderna Feminista | Ilustração: Stephanie Pollo

O Brasil já está às voltas com as eleições municipais. Mergulhadas numa crise profunda, ainda mais trágica pela crise sanitária que já matou quase 150 mil pessoas em nosso País, nos perguntamos sobre o que significa a realização de um processo como este em um contexto político marcado por um golpe e pelo fascismo crescente na sociedade brasileira. O que significa termos um processo eleitoral já com quase dois anos do governo Bolsonaro?

Os movimentos feministas têm uma trajetória de monitoramento de políticas públicas e de ação junto ao Parlamento. Desde a Constituinte, organizações e movimentos incidem para aprovar legislações igualitárias e pressionar para que os marcos normativos se traduzam em políticas e serviços que alterem concretamente a vida das mulheres. Nós, do CFEMEA, atuamos nesse front e temos alertado para a presença cada vez maior de partidos políticos criados a partir de fés religiosas e para o aumento de políticos com visões fundamentalistas, eleitos a partir de sua profissão de fé. Há acordos eleitoreiros entre políticos dos mais variados espectros ideológicos com os senhores representantes de Igrejas cristãs – católicas, evangélicas e espíritas – para arrebanhar votos. A moeda de troca são os nossos direitos, em especial o direito de decidir autonomamente sobre sua vida e a autodeterminação reprodutiva.

Nem mesmo o campo político de esquerda rompeu esse perverso ciclo eleitoral. O momento do voto se tornou uma busca do poder a qualquer custo, independente de propostas e projetos políticos para o conjunto da sociedade. Tal estratégia parece não se alterar e segue sendo a lógica da maioria. Nesse sentido, em um país em que as religiões católicas e evangélicas dominam a preferência de escolha de fé da maioria da população, o que temos visto é a manipulação da fé das pessoas para ascensão política.

A intrusão da religião na política e o aprofundamento desse processo a cada pleito eleitoral

Ao invés de legisladores e legisladoras capazes de reconhecer a diversidade de religiões, e promover leis que respeitem a liberdade de todas, inclusive daquelas pessoas sem religião ou ateias, o que temos vivido é justamente o contrário. Pessoas, em sua esmagada maioria, homens brancos heterossexuais, que se elegem prometendo anular as diferenças, proferindo discursos fundamentalistas que negam sua existência e a diversidade. Num país alicerçado na misoginia e no racismo, esse cruzamento também alimenta verdades únicas. A nós mulheres, a exclusividade das tarefas do cuidado, numa perspectiva subserviente em relação aos homens; à população negra que ousa reconhecer seus antepassados e a herança das religiões de matriz africana, o aniquilamento de sua fé, espiritualidade e o braço esmagador do Estado que ceifa, diariamente, milhares de vidas negras.

Os limites do sistema eleitoral brasileiro

Ainda que estejamos nessa experiência extrema que é o governo Bolsonaro, não podemos negar que muitos dos problemas que estamos vivendo já estavam colocados. Os limites do sistema eleitoral brasileiro é um deles. Um sistema avesso à presença dos grupos socialmente excluídos – mulheres, população negra, povos originários (indígenas), quilombolas, LGBTIs, classe trabalhadora – que mesmo há décadas demandando políticas para alterar essa sub-representação, visando equilibrar o espectro da diversidade da sociedade na política, seguem sendo vetadas, rechaçadas, quando não, ridicularizadas pela elite política do país.

Falamos em participação paritária para mulheres e população negra e de um sistema que reconheça a presença de nossa herança indígena; e o que temos são propostas para aliviar os partidos que não cumpram a tímida política de cotas que adotamos ou o uso de candidaturas laranjas com a finalidade de burlar esta política. Um sistema político que ainda se beneficia do poderio econômico das elites, na forma de financiamento de campanha, na compra de votos, em fraudes eleitorais e, mais recentemente, em disparo massivo de fake news – fator importante para a eleição da chapa Bolsonaro-Mourão e para a anulação do resultado, como solicitam as peças em juízo no TSE – Tribunal Superior Eleitoral.

Quando se analisa a baixa efetividade da política de cotas temos de levar em conta, para além das resistências dos partidos na sua implementação e das dificuldades concretas das mulheres em assumir mais essa jornada em sua vida, os limites do nosso sistema eleitoral. Isso sem falarmos dos limites da própria democracia hoje no Brasil. Triste constatarmos que estamos regredindo de uma condição que ainda nem tínhamos atingido de fato: um sistema político que integrasse e expressasse a diversidade da sociedade, como deveriam ser as democracias.

E as mulheres seguem na luta, por igualdade também na política

No Brasil, foram 108 anos de diferença entre a primeira lei eleitoral que assegurava o direito de votar e serem votados a alguns homens, e a lei eleitoral que assegurava este mesmo direito às mulheres. Da Constituição de 1824 que estabeleceu um eleitorado estreitamente limitado ao Código Eleitoral Provisório (Decreto n.º 21076, de 24 de fevereiro de 1932) que, no seu artigo 2º, definia como eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, com a exceção de analfabetos, mendigos e praças.

Depois do voto, outra medida adotada para ampliar a participação das mulheres foi a política de cotas, e lá se vão 25 anos. A primeira legislação que tratou de vagas específicas para a candidatura de mulheres foi a Lei 9.100, de 29 de setembro de 1995, que assegurou para as eleições municipais de 1996 que no mínimo 20% das vagas deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres. Essa política se tornou permanente com a Lei 9.504, 30 de setembro de 1997, que assegurou uma reserva de no mínimo 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, em todas as eleições proporcionais. Com o descumprimento da regra pelos partidos, a Lei nº 12.034, de 2009 altera a redação desse parágrafo trocando o “deverá reservar” por “preencherá”.

A insuficiência das políticas de cotas para mudar o quadro de sub-representação sempre foi evidente e, em paralelo, os movimentos feministas e de mulheres têm atuado, articuladamente, com as mulheres do parlamento para assegurar também uma porcentagem dos recursos do Fundo Partidário e do tempo de propaganda eleitoral. Nos últimos tempos, o Supremo também tem se manifestado favorável a medidas de ação afirmativas. Mas os resultados ainda são muito frágeis. Sabemos que essa questão só será resolvida quando os partidos encararem esse desequilíbrio como um problema para a democracia. E não a sua solução – uma representação equilibrada entre mulheres e homens – como um problema para os “homens”.

Atualmente, mais de 40 propostas pretendem alterar a legislação eleitoral, seja instituindo listas fechadas com alternância de sexo, ampliando as cotas por sexo para candidaturas ou mesmo sugerindo paridade entre mulheres e homens nas disputas. Algumas poucas sugerem o fim da política de cotas, sob o esdrúxulo argumento de que as mulheres já estão em condições de igualdade. Em breve, lançaremos um Radar Feminista Especial do Congresso Nacional, com um olhar mais detalhado sobre essas proposições.

Ao contrário do debate sobre cotas por sexo, se olharmos para a questão racial, são poucas as proposições que tratam do tema – ainda que o debate público esteja colocado com pronunciamentos e propostas do TSE e dos movimentos negros. No geral, tratam das políticas afirmativas para a educação e o trabalho, poucas da representação política.

Nos últimos tempos, o judiciário tem se pronunciado em relação ao tema da sub-representação e reconhecido a necessidade de intervir para equilibrar as disputas, com regras que beneficiam as mulheres e negras e negros. Inicialmente adotando algumas medidas para equilibrar a representação entre mulheres e homens e mais recentemente voltadas para a questão da desigualdade racial.

Crescimento de candidaturas de mulheres negras

As eleições acontecem em novembro em todo o Brasil, a única exceção é o Distrito Federal. Do ponto de vista das mulheres algumas questões nos chamam a atenção. De um lado, o crescimento das candidaturas coletivas. Importante olharmos para essa experiência que tem surgido com bastante força pelo protagonismo das mulheres negras, em sua idealização e proposituras crescentes desde o último pleito municipal. Serão as candidaturas coletivas expressões de uma outra forma de exercer a política, mais coletiva, uma possibilidade para aquelas e aqueles sempre excluídos do poder instituído? Conseguirão imprimir fissuras na ordem estabelecida aversa à inclusão da juventude periférica, mulheres negras, trabalhadoras informais, LGBTIs, indígenas e quilombolas?

Se tem algo de positivo no caos político e sanitário que estamos vivendo é a forte reação da população negra, com diferentes estratégias de ocupação política. Uma delas, o papel ativo das mulheres negras de se colocarem para disputar cargos eletivos no bojo desse processo eleitoral. É preciso reconhecer a liderança das mulheres negras, em sua maioria jovens, na construção de plataformas políticas – a exemplo de Mulheres Negras Decidem, Instituto Marielle Franco, e as campanhas da Coalizão Negra por Direitos e similares – na construção dos mandatos coletivos e na propositura de ações afirmativas para corrigir a permanente exclusão das mulheres e da população negra dos espaços de poder.

O compromisso coletivo de uma sociedade que busca superar o racismo, junto com o combate ao sexismo, demanda ações e alianças para fortalecer alternativas políticas antirracistas de fato, além de nos convocar a mudar nosso comportamento eleitoral, apoiando candidaturas antirracistas, feministas e comprometidas com a qualidade de vida de todo o conjunto da população; e também nos associarmos à pressão de organizações negras e antirracistas junto ao STF e TSE para ampliar já os recursos e apoios para candidaturas de negras e negros.

Impulsionar as mudanças, o lugar das organizações feministas antirracistas

Como pontuado, temos um caminho de construção de políticas afirmativas. Não só no âmbito da política institucional, as ações afirmativas surgem como uma proposta de “remédio” para superar as desigualdades de sexo, raça e classe, de uma forma mais rápida – seja no campo da educação, do trabalho, da política ou da comunicação. As ações afirmativas, entre elas a política de cotas por sexo, partem do pressuposto de que é preciso reconhecer as desigualdades estruturais no país e atuar para uma alteração desse padrão. As ações afirmativas permitiram às mulheres questionar o teto de vidro que se impõe à todas nós e dificulta o acesso a cargos de chefia; evidenciaram a ausência feminina nos espaços de poder; e chamaram a atenção para a necessidade de valorizarmos o ensino de histórias e saberes afro-brasileiros na construção do pensamento social do país; além de garantir a presença de estudantes negras/os na rede de ensino superior.

Mesmo garantidas em lei, tais ações são insuficientes e têm de ser acompanhadas de outras medidas, de mudanças em regras partidárias, de campanhas educativas visando combater valores machistas e racistas – o oposto do que, por exemplo, preconizam as propostas que tentam impedir o debate sobre igualdade de gênero nas escolas.

Hoje, diante da expansão do contra-ataque conservador e fundamentalista — uma minoria masculina branca heteronormativa, mas com o poder econômico em suas mãos – que tenta destruir tudo aquilo que se conseguiu conquistar no campo dos direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos, temos de estar mais atentas ainda e nos posicionarmos a partir de novas lentes para mirar nossa sociedade.

Lentes que consigam enxergar além de si, para ver quais os pactos necessários que uma sociedade precisa criar para que não seja exclusividades dos mesmos sujeitos políticos privilegiados, o gozo de direitos e benefícios sociais que podem contribuir para vidas mais felizes, livres de violência e discriminação. Tais mudanças necessárias são ensinamentos potentes que os movimentos feministas em especial, antirracistas e de mulheres negras vêm propondo e realizando para o conjunto da sociedade. Tal sentido também é o que nos guia no investimento político feminista antirracista na construção de um outro sistema político, de fato centrado na participação cidadã e coletiva, descentralizado e horizontalizado, com uma presença que expresse a diversidade de nossa sociedade.

Novamente nesse pleito eleitoral a realidade não é animadora. Forças golpistas e bolsonaristas têm o poder da máquina administrativa em suas mãos. Vemos a presença crescente da materialização da aliança entre grande capital, igreja e polícia, com aumento de vereadores pastores, policiais, delegados. Será esse o Brasil que queremos?

A equipe do CFEMEA, embebida da trajetória de luta feminista antirracista, segue atenta e alerta para denunciar a presença cada vez mais forte de forças fundamentalistas que tentam se apropriar dos corpos das mulheres, negras, indígenas, como forma de dominação e subjugação. Nessa disputa ideológica que vivemos estamos certamente do lado de quem almeja uma sociedade igual, livre de violência, justa, alegre, cuidadora, protetora, que promova o bem viver de todas as pessoas. Que venham as eleições e que brotem mais e mais sementes de aguerridas mulheres, negras, indígenas, brancas, lésbicas e trans, jovens e não-jovens, dispostas a atuar e alterar as regras do jogo!