O Centro de Mergulho e Salvamento da Marinha dos EUA pode ser encontrado num local tão obscuro quanto o seu nome – no que outrora fora uma estrada rural na cidade de Panamá, uma cidade turística agora próspero no sudoeste da Florida, 113 km ao sul da fronteira do Alabama. O complexo do centro é tão indefinível quanto a sua localização – uma insípida estrutura de betam pós Segunda Guerra Mundial que tem a aparência de uma escola secundária profissional no lado ocidental de Chicago. Uma lavandaria operada por moedas e uma escola de dança atravessam o que é agora uma estrada de quatro faixas.
O centro tem treinado há décadas mergulhadores de águas profundas altamente qualificados que, uma vez destacados para unidades militares americanas em todo o mundo, são capazes de mergulhar tecnicamente para fazer o bem – usando explosivos C4 para limpar portos e praias de detritos e de munições não explodidas – bem como o mau, como explodir plataformas petrolíferas estrangeiras, entupir válvulas de admissão de centrais elétricas submarinas, destruir bloqueios em canais de navegação cruciais. O centro da Cidade do Panamá, que ostenta a segunda maior piscina interior dos EUA, era o local perfeito para recrutar os melhores, e mais taciturnos, licenciados da escola de mergulho que no Verão passado fizeram com êxito o que foram autorizados a fazer a 79 metros abaixo da superfície do Mar Báltico.
Em Junho último, os mergulhadores da Marinha, operando sob a cobertura de um exercício da OTAN conhecido como BALTOPS 22, amplamente divulgado em meados do Verão, plantaram os explosivos acionados à distância que, três meses mais tarde, destruíram três dos quatro gasodutos Nord Stream, de acordo com uma fonte com conhecimento direto do planeamento operacional.
Dois dos gasodutos, que eram conhecidos em conjunto como Nord Stream 1, haviam fornecido à Alemanha e a grande parte da Europa Ocidental gás natural russo barato durante mais de uma década. Um segundo par de gasodutos, denominado Nord Stream 2, fora construído mas ainda não estava operacional. Agora, com as tropas russas a acumularem-se na fronteira ucraniana e a guerra mais sangrenta na Europa desde 1945 a aproximar-se, o Presidente Joseph Biden encarava os gasodutos como um veículo para Vladimir Putin transformar o gás natural em arma para as suas ambições políticas e territoriais.
Solicitada a comentar, Adrienne Watson, porta-voz da Casa Branca, disse num email: “Isto é falso e ficção completa”. Tammy Thorp, porta-voz da Agência Central de Inteligência, escreveu igualmente: “Esta afirmação é total e absolutamente falsa”.
A decisão de Biden de sabotar os gasodutos veio depois de mais de nove meses de debate altamente secreto dentro da comunidade de segurança nacional de Washington acerca da melhor forma de alcançar aquele objetivo. Durante grande parte desse tempo, a questão não era saber se a missão deveria ser cumprida, mas sim como fazê-lo sem qualquer indício claro de quem era o responsável.
Havia uma razão burocrática vital para confiar nos graduados do centro de mergulho extremo da cidade do Panamá. Os mergulhadores eram apenas da Marinha e não membros do Comando de Operações Especiais da América, cujas operações secretas devem ser comunicadas ao Congresso e informadas com antecedência ao Senado e à liderança da Câmara – a chamada Gang of Eight. A Administração Biden estava a fazer todo o possível para evitar fugas, pois o planeamento teve lugar no final de 2021 e durante os primeiros meses de 2022.
O Presidente Biden e a sua equipa de política externa – o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, o secretário de Estado Tony Blinken e Victoria Nuland, a subsecretária de Estado para Política – foram eloquentes e consistentes na sua hostilidade aos dois gasodutos, que corriam lado a lado ao longo de 1207 km sob o Mar Báltico a partir de dois portos diferentes no nordeste da Rússia próximos da fronteira com a Estónia, passando perto da ilha dinamarquesa de Bornholm antes de terminarem no norte da Alemanha.
A rota direta, que contornava qualquer necessidade de transitar pela Ucrânia, fora uma bênção para a economia alemã, a qual usufruía de uma abundância de gás natural russo barato – suficiente para gerir as suas fábricas e aquecer as suas casas, ao mesmo tempo que permitia aos distribuidores alemães venderem o excesso de gás, com lucro, por toda a Europa Ocidental. Uma ação que pudesse ser rastreada até à administração violaria promessas dos EUA de minimizar o conflito direto com a Rússia. O segredo era essencial.
Desde os seus primórdios, o Nord Stream 1 foi encarado por Washington e seus parceiros anti-russos da OTAN como uma ameaça à dominância ocidental. A companhia holding por trás dela, a Nord Stream AG, foi constituída na Suíça em 2005 em parceria com a Gazprom, uma empresa russa cotada na bolsa que produz lucros enormes para os acionistas e que é dominada por oligarcas conhecidas por estarem sob o domínio de Putin. A Gazprom controlava 51% da empresa, com quatro empresas energéticas europeias – uma em França, uma na Holanda e duas na Alemanha – partilhando os restantes 49% das ações, e tendo o direito de controlar as vendas a jusante do gás natural barato a distribuidores locais na Alemanha e na Europa Ocidental. Os lucros da Gazprom eram partilhados com o governo russo e o montante das receitas estatais de gás e petróleo foram estimadas, em alguns anos, em 45 por cento do orçamento anual da Rússia.
Os temores políticos da América eram reais: Putin teria agora uma importante e muito necessária fonte de rendimento adicional, e a Alemanha e o resto da Europa Ocidental ficariam viciados no gás natural de baixo custo fornecido pela Rússia – ao mesmo tempo que diminuiria a dependência europeia em relação à América. Na realidade, foi exatamente isso que aconteceu. Muitos alemães viram o Nord Stream 1 como parte da famosa Ostpolitik theory do antigo Chanceler Willy Brandt, a qual permitiu à Alemanha do pós-guerra, assim como a outras nações europeias destruídas na Segunda Guerra Mundial, recuperar-se utilizando gás russo barato para alimentar um próspero mercado e economia comercial na Europa Ocidental.
O Nord Stream 1 era bastante perigoso, na opinião da OTAN e de Washington, mas o Nord Stream 2, cuja construção fora concluída em Setembro de 2021, iria, se aprovado pelos reguladores alemães, duplicar a quantidade de gás barato que ficaria disponível para a Alemanha e a Europa Ocidental. O segundo gasoduto também forneceria gás suficiente para mais de 50 por cento do consumo anual da Alemanha. As tensões entre a Rússia e a NATO estavam constantemente a aumentar, apoiadas pela política externa agressiva da Administração Biden.
A oposição ao Nord Stream 2 incendiou-se na véspera da posse de Biden em janeiro de 2021, quando os Republicanos do Senado, liderados por Ted Cruz do Texas, levantaram repetidamente a ameaça política do gás natural russo barato durante a audiência de confirmação de Blinken como secretário de Estado. Nessa altura, um Senado unificado havia aprovado com êxito uma lei que, como disse Cruz a Blinken, “travava o caminho [do gasoduto]”. Haveria uma enorme pressão política e económica por parte do governo alemão, então encabeçado por Ângela Merkel, para colocar em serviço o segundo gasoduto.
Será que Biden enfrentaria os alemães? Blinken disse que sim, mas acrescentou que não havia discutido os pontos de vista específicos do novo Presidente. “Conheço a sua forte convicção de que se trata de uma má ideia, o Nord Stream 2”, disse ele. “Sei que ele gostaria que usássemos todas as ferramentas persuasivas que temos para convencer os nossos amigos e parceiros, incluindo a Alemanha, a não avançar com isso”.
Alguns meses mais tarde, quando a construção do segundo gasoduto se aproximava da sua conclusão, Biden piscou os olhos. Em Maio, numa reviravolta espantosa, a administração renunciou às sanções contra a Nord Stream AG, com um responsável do Departamento de Estado a reconhecer que tentar travar o gasoduto através de sanções e diplomacia “fora sempre um tiro no escuro”. Nos bastidores, responsáveis da administração alegadamente instaram o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, a enfrentar então uma ameaça de invasão russa, a não criticar a medida.
Houve consequências imediatas. Os Republicanos do Senado, liderados por Cruz, anunciaram um bloqueio imediato a todos os nomeados para a política externa de Biden e atrasaram a aprovação do projeto de lei anual da defesa durante meses. Posteriormente, a [revista] Politico descreveu a viragem de Biden quanto ao segundo oleoduto russo como “a única decisão, provavelmente mais do que a caótica retirada militar do Afeganistão, que pôs em perigo a agenda de Biden”.
A administração estava a hesitar, apesar de ter obtido um adiamento da crise em meados de Novembro, quando os reguladores de energia da Alemanha suspenderam a aprovação do segundo gasoduto Nord Stream. Os preços do gás natural subiram 8% em poucos dias, em meio a temores crescentes na Alemanha e na Europa de que a suspensão do gasoduto e a possibilidade crescente de uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia levassem a um Inverno frio muito indesejado. Não estava clara para Washington a posição de Olaf Scholz, o recém-nomeado chanceler alemão. Meses antes, após a queda do Afeganistão, Scholtz havia apoiado publicamente o apelo do Presidente francês Emmanuel Macron a uma política externa europeia mais autónoma num discurso em Praga – sugerindo claramente menor confiança em Washington e nas suas ações caprichosas.
Ao longo de tudo isto, as tropas russas estiveram a acumular-se de forma constante e preocupante nas fronteiras da Ucrânia, e no final de Dezembro mais de 100.000 soldados estavam em posição de atacar a partir da Bielorrússia e da Crimeia. O alarme aumentava em Washington, incluindo uma avaliação de Blinken de que o número daquelas tropas poderia ser “duplicado em curto prazo”.
A atenção da administração concentrou-se mais uma vez no Nord Stream. Enquanto a Europa permanecesse dependente dos gasodutos para gás natural barato, Washington receava que países como a Alemanha ficassem relutantes em fornecer à Ucrânia o dinheiro e as armas de que necessitava para derrotar a Rússia.
Foi neste momento de instabilidade que Biden autorizou Jake Sullivan a reunir um grupo inter-agências para elaborar um plano.
Todas as opções deveriam estar em cima da mesa. Mas apenas uma emergiria.
PLANEJAMENTO
Em dezembro de 2021, dois meses antes de os primeiros tanques russos entrarem na Ucrânia, Jake Sullivan convocou uma reunião de um grupo de trabalho recentemente constituído – homens e mulheres dos Chefes do Estado-Maior Conjunto, da CIA, e dos Departamentos de Estado e do Tesouro – e pediu recomendações sobre como responder à iminente invasão de Putin.
Esta seria a primeira de uma série de reuniões ultra-secretas, numa sala segura num andar superior do antigo edifício do Gabinete Executivo, adjacente à Casa Branca, que era também a casa do Conselho Consultivo de Informações Externas do Presidente (President’s Foreign Intelligence Advisory Board, PFIAB). Houve as habituais conversas de troca de ideias que acabaram por conduzir a uma questão preliminar crucial: Seria a recomendação transmitida pelo grupo ao Presidente algo reversível – como outra camada de sanções e restrições monetárias – ou irreversível – isto é, ações cinéticas, que não poderiam ser desfeitas?
O que ficou claro para os participantes, segundo a fonte com conhecimento direto do processo, é que Sullivan pretendia que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois gasodutos Nord Stream – e que ele estava a cumprir os desejos do Presidente.
Nas várias reuniões seguintes, os participantes debateram opções para um ataque. A Marinha propôs a utilização de um submarino recentemente encomendado para atacar diretamente o oleoduto. A Força Aérea discutiu o lançamento de bombas com espoletas retardadas que poderiam ser detonadas remotamente. A CIA argumentou que o que quer que fosse feito, teria de ser encoberto. Todos os envolvidos compreenderam o que estava em jogo. “Isto não é coisa de criança”, disse a fonte. Se o ataque fosse rastreável até aos Estados Unidos, “é um ato de guerra”.
Na altura, a CIA era dirigida por William Burns, um antigo embaixador na Rússia de temperamento suave, que havia servido como secretário de Estado adjunto na administração Obama. Burns rapidamente autorizou um grupo de trabalho da Agência cujos membros ad hoc incluíam – por acaso – alguém que estava familiarizado com as capacidades dos mergulhadores de alto-mar da Marinha na Cidade do Panamá. Ao longo das semanas seguintes, membros do grupo de trabalho da CIA começaram a elaborar um plano para uma operação encoberta que utilizaria mergulhadores de alto mar para desencadear uma explosão ao longo do gasoduto.
Algo como isto já fora feito antes. Em 1971, a comunidade de inteligência americana soube de fontes ainda não reveladas que duas importantes unidades da marinha russa estavam a comunicar-se através de um cabo submarino enterrado no mar de Okhotsk, na costa do Extremo Oriente russo. O cabo ligava um comando regional da Marinha ao quartel-general continental em Vladivostok.
Uma equipe escolhida a dedo de agentes da Agência Central de Inteligência e da Agência Nacional de Segurança foi reunida algures na área de Washington, sob cobertura profunda, e elaborou um plano, utilizando mergulhadores da Marinha, submarinos modificados e um veículo de resgate submarino profundo, que conseguiu, após muita tentativa e erro, localizar o cabo russo. Os mergulhadores plantaram um sofisticado dispositivo de escuta no cabo que interceptou com êxito o tráfego russo e o registou num sistema de gravação.
A NSA soube que oficiais superiores da Marinha russa, convencidos da segurança da sua ligação de comunicação, conversavam com os seus pares sem encriptação. O dispositivo de gravação e a sua cassete tinham de ser substituídos mensalmente e o projeto continuou alegremente durante uma década, até ser comprometido por um técnico civil da ANS de quarenta e quatro anos, chamado Ronald Pelton, que era fluente em russo. Pelton foi traído por um desertor russo em 1985 e condenado a uma pena de prisão. Ele recebeu apenas US$5.000 dos russos pelas suas revelações acerca da operação, bem como US$35.000 por outros dados operacionais russos que ele forneceu e que nunca foram tornados públicos.
Aquele êxito debaixo da água, com o nome de código Ivy Bells, foi inovador e arriscado, tendo produzido uma inteligência inestimável acerca das intenções e planeamento da Marinha russa.
Ainda assim, o grupo inter-agências inicialmente foi céptico em relação ao entusiasmo da CIA por um ataque encoberto em alto mar. Havia demasiadas perguntas não respondidas. As águas do Mar Báltico eram fortemente patrulhadas pela Marinha russa e não havia plataformas petrolíferas que pudessem ser utilizadas como cobertura para uma operação de mergulho. Será que os mergulhadores teriam de ir à Estónia, mesmo do outro lado da fronteira das docas de carregamento de gás natural da Rússia, para treinar para a missão? “Seria uma foda de cabra”, foi dito à Agência.
Ao longo de “todo este esquema”, disse a fonte, “alguns tipos trabalhadores da CIA e do Departamento de Estado estavam a dizer: ‘Não faças isto. É uma estupidez e será um pesadelo político se se descobrir”.
No entanto, no início de 2022, o grupo de trabalho da CIA apresentou um relatório ao grupo inter-agências de Sullivan: “Temos uma forma de fazer explodir os gasodutos”.
O que se passou a seguir foi espantoso. A 7 de Fevereiro, menos de três semanas antes da aparentemente inevitável invasão russa da Ucrânia, Biden encontrou-se no seu gabinete da Casa Branca com o Chanceler alemão Olaf Scholz, que, depois de algumas indecisões, se encontrava agora firmemente na equipa americana. Na conferência de imprensa que se seguiu, Biden disse desafiadoramente: “Se a Rússia invadir . . . deixará de haver um Nord Stream 2. Nós poremos um fim a isto”.
Vinte dias antes, a subsecretária Nuland havia transmitido essencialmente a mesma mensagem numa nota do Departamento de Estado, com pouca cobertura por parte da imprensa. “Quero ser muito clara para vós hoje”, disse ela em resposta a uma pergunta. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não avançará“.
Vários dos envolvidos no planeamento da missão do gasoduto ficaram consternados com o que consideraram como referências indiretas ao ataque.
“Foi como colocar uma bomba atómica no solo em Tóquio e dizer aos japoneses que a vamos detonar”, disse a fonte. “O plano era para que as opções fossem executadas após a invasão e não fossem anunciadas publicamente. Biden simplesmente não o recebeu ou ignorou-o”.
A indiscrição de Biden e Nuland, se é que o foi, pode ter frustrado alguns dos planeadores. Mas também criou uma oportunidade. Segundo a fonte, alguns dos altos responsáveis da CIA determinaram que explodir o gasoduto “já não podia mais ser considerado uma opção encoberta porque o Presidente acabou de anunciar que sabíamos como o fazer”.
O plano para explodir a Nord Stream 1 e 2 foi subitamente rebaixado de uma operação encoberta exigindo que o Congresso fosse informado para uma que foi considerada como uma operação de inteligência altamente classificada com o apoio militar dos EUA. Nos termos da lei, a fonte explicou: “Já não havia a obrigação legal de informar o Congresso sobre a operação. Tudo o que tinham de fazer agora era apenas fazê-lo – mas ainda assim tinha de ser secreto”. Os russos têm uma vigilância superlativa do Mar Báltico”.
Os membros do grupo de trabalho da Agência não tinham contacto direto com a Casa Branca e estavam ansiosos por descobrir se o Presidente queria dizer o que disse – isto é, se a missão era agora para ir em frente. A fonte recordou: “Bill Burns regressa e diz: ‘Faça-o'”.
A OPERAÇÃO
A Noruega era o local perfeito para basear a missão.
Nos últimos anos de crise Leste-Oeste, os militares dos EUA expandiram enormemente a sua presença dentro da Noruega, cuja fronteira ocidental se estende por 2.250 km ao longo do Oceano Atlântico Norte e se funde acima do Círculo Ártico com a Rússia. O Pentágono criou empregos e contratos altamente remunerados, no meio de alguma controvérsia local, ao investir centenas de milhões de dólares para modernizar e expandir as instalações da Marinha americana e da Força Aérea na Noruega. As novas obras incluíram, o mais importante, um avançado radar de abertura sintética muito a norte, capaz de penetrar nas profundezas da Rússia e que entrou em serviço exatamente quando a comunidade de inteligência americana perdeu o acesso a uma série de locais de escuta de longo alcance dentro da China.
Em contrapartida, o governo norueguês enfureceu os liberais e alguns moderados no seu parlamento em Novembro passado, ao aprovar o Acordo Suplementar de Cooperação em matéria de Defesa (SDCA). Ao abrigo do novo acordo, o sistema legal estado-unidense teria jurisdição em certas “áreas acordadas” no Norte sobre soldados americanos acusados de crimes fora da base, bem como sobre os cidadãos noruegueses acusados ou suspeitos de interferirem com o trabalho na base.
A Noruega foi um dos signatários originais do Tratado da NATO em 1949, nos primeiros dias da Guerra Fria. Hoje, o comandante supremo da NATO é Jens Stoltenberg, um anti-comunista empenhado, que serviu como primeiro-ministro da Noruega durante oito anos antes de passar para o seu alto cargo na NATO, com o apoio americano, em 2014. Ele foi um radical sobre tudo o que [se referisse a] Putin e a Rússia os quais haviam cooperado com a comunidade dos serviços de inteligência americanos desde a Guerra do Vietname. Desde então, ele mereceu confiança total. “Ele é a luva que se adapta à mão americana”, disse a fonte.
De volta a Washington, os planeadores sabiam que tinham de ir à Noruega. “Eles odiavam os russos, e a marinha norueguesa estava cheia de excelentes marinheiros e mergulhadores que tinham gerações de experiência na exploração altamente rentável de petróleo e gás em alto mar”, disse a fonte. Também se podia confiar neles para manter a missão em segredo. (Os noruegueses podem também ter tido outros interesses. A destruição do Nord Stream – se os norte-americanos conseguissem fazê-lo – permitiria à Noruega vender muito mais do seu próprio gás natural à Europa).
Em algum momento em março, alguns membros da equipa voaram para a Noruega para se encontrarem com os Serviços Secretos e a Marinha norueguesa. Uma das questões-chave era onde exatamente no Mar Báltico estava o melhor local para plantar os explosivos. O Nord Stream 1 e 2, cada um com dois conjuntos de tubagens, estavam separados por pouco mais de 1.600 metros na trajetória para o porto de Greifswald, no extremo nordeste da Alemanha.
A marinha norueguesa encontrou rapidamente o ponto certo, nas águas rasas do mar Báltico, a poucos quilómetros da ilha de Bornholm, da Dinamarca. Os gasodutos corriam a mais de 1600 metros de distância ao longo de um fundo do mar que tinha apenas 80 metros de profundidade. Isso estaria bem dentro do alcance dos mergulhadores, que, operando a partir de um caçador de minas norueguês de classe Alta, mergulhariam com uma mistura de oxigénio, nitrogénio e hélio a fluírem dos seus tanques, e cargas C4 em forma de planta sobre os quatro gasodutos com coberturas protetoras de betam. Seria um trabalho fastidioso, demorado e perigoso, mas as águas de Bornholm tinham outra vantagem: não existiam grandes correntes de maré, o que teria tornado a tarefa de mergulhar muito mais difícil.
Depois de alguma investigação, os americanos estiveram todos de acordo.
Nesta altura, o obscuro grupo de mergulho profundo da Marinha na Cidade do Panamá entrou mais uma vez em jogo. As escolas de mergulho profundo na Cidade do Panamá, cujos estagiários participaram em Ivy Bells, são vistas como umas indesejáveis periféricas (backwater) pelos graduados de elite da Academia Naval em Annapolis, que tipicamente procuram a glória de serem designados como Seals, pilotos de caça, ou submarinistas. Se alguém tem de se tornar um “Sapato Negro” – isto é, um membro da parte menos desejável de um navio de superfície – há sempre pelo menos uma responsabilidade num destroier, cruzador ou navio anfíbio. O menos glamoroso de todos é um draga-minas. Os seus mergulhadores nunca aparecem em filmes de Hollywood nem na capa de revistas populares.
“Os melhores mergulhadores com qualificações de mergulho profundo são uma comunidade restrita, e apenas os melhores são recrutados para a operação e instruídos para estarem preparados para serem convocados para a CIA em Washington”, disse a fonte.
Os noruegueses e americanos tinham uma localização e os operacionais, mas havia outra preocupação: qualquer atividade subaquática fora do comum nas águas ao largo de Bornholm poderia chamar a atenção das marinhas sueca ou dinamarquesa, que poderiam relatá-las.
A Dinamarca também fora um dos signatários originais da NATO e era conhecida na comunidade dos serviços secretos pelos seus laços especiais com o Reino Unido. A Suécia havia-se candidatado à adesão à NATO, e havia demonstrado a sua grande habilidade na gestão dos seus sistemas de som e sensores magnéticos subaquáticos que seguiam com êxito os submarinos russos que ocasionalmente apareciam em águas remotas do arquipélago sueco e eram forçados a vir para a superfície.
Os noruegueses insistiram junto aos americanos que alguns altos responsáveis na Dinamarca e na Suécia tinham de ser informados em termos gerais sobre possíveis atividades de mergulho na área. Desta forma, alguém superior poderia intervir e manter um relatório fora da cadeia de comando, isolando assim a operação do gasoduto. “O que lhes foi dito e o que eles sabiam era propositadamente diferente”, disse-me a fonte (a embaixada norueguesa, pedida para comentar esta história, não respondeu).
Os noruegueses foram a chave para resolver outros obstáculos. A marinha russa era conhecida por possuir tecnologia de vigilância capaz de detectar, e despoletar, minas submarinas. Os dispositivos explosivos americanos precisavam de ser camuflados de uma forma que os fizesse parecer ao sistema russo como parte do fundo natural – algo que exigiu uma adaptação à salinidade específica da água. Os noruegueses tinham uma solução.
Os noruegueses também tinham uma solução para a questão crucial de quando a operação deveria ter lugar. Todos os anos em junho, nos últimos 21 anos, a Sexta Frota Americana, cujo navio principal está baseado em Gaeta, Itália, a sul de Roma, tem patrocinado um importante exercício da OTAN no Mar Báltico, envolvendo dezenas de navios aliados em toda a região. O exercício atual, realizado em Junho, seria conhecido como Baltic Operations 22, ou BALTOPS 22. Os noruegueses propuseram que isto seria a cobertura ideal para implantar as minas.
Os americanos forneceram um elemento vital: convenceram os planeadores da Sexta Frota a acrescentar um exercício de investigação e desenvolvimento ao programa. O exercício, como tornado público pela Marinha, envolveu a Sexta Frota em colaboração com os “centros de investigação e guerra” da Marinha. O evento no mar seria realizado ao largo da costa da Ilha de Bornholm e envolveria equipas de mergulhadores da NATO a implantar minas, com equipas concorrentes utilizando a mais recente tecnologia subaquática para as encontrar e destruir.
Foi ao mesmo tempo um exercício útil e uma cobertura engenhosa. Os rapazes da Cidade do Panamá fariam o seu trabalho e os explosivos C4 estariam no local no final do BALTOPS22, com um temporizador de 48 horas ligado. Todos os americanos e noruegueses já teriam desaparecido há muito na altura da primeira explosão.
Os dias estavam em contagem decrescente. “O relógio estava a contar, e estávamos prestes a cumprir a missão”, disse a fonte.
E então: Washington teve segundos pensamentos. As bombas ainda seriam implantadas durante o BALTOPS, mas a Casa Branca receava que uma janela de dois dias para a sua detonação estivesse demasiado próxima do fim do exercício e seria óbvio que a América estivera envolvida.
Em vez disso, a Casa Branca tinha um novo pedido: “Poderão os rapazes no terreno arranjar alguma forma de rebentar os gasodutos mais tarde sob comando?”
Alguns membros da equipa de planeamento ficaram indignados e frustrados com a aparente indecisão do Presidente. Os mergulhadores da Cidade do Panamá tinham praticado repetidamente a implantação do C4 em pipelines, como fariam durante a BALTOPS, mas agora a equipa na Noruega tinha de arranjar uma forma de dar a Biden o que ele queria – a capacidade de emitir uma ordem de execução bem sucedida num momento da sua escolha.
Ser incumbido de uma mudança arbitrária e de última hora era algo que a CIA estava habituada a gerir. Mas isto também renovou as preocupações que alguns partilhavam sobre a necessidade, e a legalidade, de toda a operação.
As ordens secretas do Presidente também evocaram o dilema da CIA nos dias da Guerra do Vietname, quando o Presidente Johnson, confrontado com o crescente sentimento anti-Guerra do Vietname, ordenou que a Agência violasse a sua carta – a qual especificamente a impedir de operar dentro da América – espionando os líderes anti-guerra para determinar se eles estavam a ser controlados pela Rússia comunista.
A Agência acabou por concordar, e ao longo dos anos 70 tornou-se claro até onde estava disposta a ir. Houve revelações posteriores nos jornais, no rescaldo dos escândalos do Watergate, acerca da espionagem da Agência a cidadãos americanos, do seu envolvimento no assassinato de líderes estrangeiros e no seu enfraquecimento do governo socialista de Salvador Allende.
Aquelas revelações levaram a uma série dramática de audiências em meados dos anos 70 no Senado, lideradas por Frank Church of Idaho, que deixaram claro que Richard Helms, o diretor da Agência na altura, aceitou que tinha a obrigação de fazer o que o Presidente queria, mesmo que isso significasse violar a lei.
Em testemunho não publicado e a portas fechadas, Helms explicou com pesar que “quase se tem uma Imaculada Conceição quando se faz algo” sob ordens secretas de um Presidente. “Quer esteja certo que a tenha, ou errado que a tenha, [a CIA] funciona sob regras e regras básicas diferentes das de qualquer outra parte do governo”. Ele essencialmente dizia aos senadores que, como chefe da CIA, compreendia que tinha estado a trabalhar para a Coroa e não para a Constituição.
Os americanos a atuarem na Noruega operavam sob a mesma dinâmica, e começaram a trabalhar no novo problema – como detonar remotamente os explosivos C4 por ordem de Biden. Era uma tarefa muito mais exigente do que aqueles que em Washington compreendiam. Não havia maneira de a equipa na Noruega saber quando é que o Presidente poderia pressionar o botão. Seria em poucas semanas, em muitos meses ou em meio ano ou mais?
O C4 atado às tubagens seria disparado por uma boia de sonar lançada por um avião a breve prazo, mas o procedimento envolvia a mais avançada tecnologia de processamento de sinais. Uma vez no lugar, os dispositivos de temporização retardada ligados a qualquer uma das quatro condutas poderia ser acidentalmente acionada pela complexa mistura de ruídos de fundo oceânico em todo o Mar Báltico com forte tráfego – desde navios próximos e distantes, perfuração submarina, eventos sísmicos, ondas e mesmo criaturas marinhas. Para evitar isto, a boia de sonar, uma vez instalada, emitiria uma sequência de sons tonais únicos de baixa frequência – tais como os emitidos por uma flauta ou um piano – que seriam reconhecidos pelo dispositivo de cronometragem e, após horas pré-definidas de atraso, disparariam os explosivos. (“Querem um sinal suficientemente robusto de modo a que nenhum outro sinal possa acidentalmente enviar um impulso que detone os explosivos”, foi-me dito pelo Dr. Theodore Postol, professor emérito da ciência, tecnologia e política de segurança nacional no MIT. Postol, que serviu como conselheiro científico do Chefe de Operações Navais do Pentágono, disse que a questão que o grupo enfrentava na Noruega devido ao atraso de Biden era uma questão de sorte: “Quanto mais tempo os explosivos permanecerem na água, maior será o risco de um sinal aleatório que lançaria as bombas”).
A 26 de Setembro de 2022, um avião de vigilância P8 da Marinha norueguesa fez um voo aparentemente de rotina e lançou uma boia de sonar. O sinal espalhou-se debaixo de água, inicialmente para o Nord Stream 2 e depois para o Nord Stream 1. Algumas horas mais tarde, os explosivos C4 de alta potência foram ativados e três dos quatro oleodutos foram colocados fora de serviço. Em poucos minutos, as poças de gás metano que ficaram nas condutas fechadas puderam ser vistas a espalhar-se na superfície da água e o mundo soube que algo irreversível tinha acontecido.
CONSEQUÊNCIAS (FALLOUT)
Na sequência imediata do bombardeamento do gasoduto, os media americanos trataram-no como um mistério não resolvido. A Rússia foi repetidamente mencionada como provável culpado, impelida por fugas calculadas da Casa Branca – mas sem nunca estabelecer um motivo claro para tal ato de auto-sabotagem, para além da simples retaliação. Alguns meses mais tarde, quando se verificou que as autoridades russas tinham estado a receber calmamente estimativas dos custos de reparação dos gasodutos, o New York Timesdescreveu a notícia como “complicando teorias sobre quem estava por detrás” do ataque. Nenhum grande jornal americano se debruçou sobre as anteriores ameaças aos gasodutos feitas por Biden e a subsecretária de Estado Nuland.
Embora nunca ficasse claro por que razão a Rússia procuraria destruir o seu próprio gasoduto lucrativo, uma lógica mais reveladora para a ação do Presidente veio do secretário de Estado Blinken.
Questionado numa conferência de imprensa em Setembro passado sobre as consequências do agravamento da crise energética na Europa Ocidental, Blinken descreveu o momento como sendo potencialmente bom:
“É uma tremenda oportunidade para eliminar de uma vez por todas a dependência da energia russa e assim retirar de Vladimir Putin a energia como arma a fim de fazer avançar os seus desígnios imperiais. Isso é muito significativo e oferece uma tremenda oportunidade estratégica para os próximos anos, mas, entretanto, estamos determinados a fazer tudo o que pudermos para garantir que as consequências de tudo isto não sejam suportadas pelos cidadãos dos nossos países ou, aliás, de todo o mundo”.
Mais recentemente, Victoria Nuland exprimiu satisfação com o desaparecimento do mais recente dos gasodutos. A testemunhar numa audiência da Comissão de Relações Externas do Senado no final de Janeiro, disse ao Senador Ted Cruz: “Tal como vós, estou, e penso que a Administração está, muito satisfeita por saber que o Nord Stream 2 é agora, como gostais de dizer, um pedaço de metal no fundo do mar”.
A fonte tinha uma visão muito mais de rua da decisão de Biden de sabotar mais de 2400 km do gasoduto da Gazprom no momento em que o Inverno se aproximava. “Bem”, disse ele, falando do Presidente, “tenho de admitir que o tipo tem um par de bolas”. Ele disse que o ia fazer, e fê-lo”.
Perguntado porque pensava que os russos deixaram de responder, ele disse cinicamente: “Talvez eles queiram a capacidade de fazer as mesmas coisas que os EUA fizeram”.
“Foi uma bela história de capa”, prosseguiu ele. “Por trás foi uma operação encoberta que colocou peritos no terreno e equipamento que funcionou com um sinal encoberto”.
O Centro de Mergulho e Salvamento da Marinha dos EUA pode ser encontrado num local tão obscuro quanto o seu nome – no que outrora fora uma estrada rural na cidade de Panamá, uma cidade turística agora próspero no sudoeste da Florida, 113 km ao sul da fronteira do Alabama. O complexo do centro é tão indefinível quanto a sua localização – uma insípida estrutura de betam pós Segunda Guerra Mundial que tem a aparência de uma escola secundária profissional no lado ocidental de Chicago. Uma lavandaria operada por moedas e uma escola de dança atravessam o que é agora uma estrada de quatro faixas.
O centro tem treinado há décadas mergulhadores de águas profundas altamente qualificados que, uma vez destacados para unidades militares americanas em todo o mundo, são capazes de mergulhar tecnicamente para fazer o bem – usando explosivos C4 para limpar portos e praias de detritos e de munições não explodidas – bem como o mau, como explodir plataformas petrolíferas estrangeiras, entupir válvulas de admissão de centrais elétricas submarinas, destruir bloqueios em canais de navegação cruciais. O centro da Cidade do Panamá, que ostenta a segunda maior piscina interior dos EUA, era o local perfeito para recrutar os melhores, e mais taciturnos, licenciados da escola de mergulho que no Verão passado fizeram com êxito o que foram autorizados a fazer a 79 metros abaixo da superfície do Mar Báltico.
Em Junho último, os mergulhadores da Marinha, operando sob a cobertura de um exercício da OTAN conhecido como BALTOPS 22, amplamente divulgado em meados do Verão, plantaram os explosivos acionados à distância que, três meses mais tarde, destruíram três dos quatro gasodutos Nord Stream, de acordo com uma fonte com conhecimento direto do planeamento operacional.
Dois dos gasodutos, que eram conhecidos em conjunto como Nord Stream 1, haviam fornecido à Alemanha e a grande parte da Europa Ocidental gás natural russo barato durante mais de uma década. Um segundo par de gasodutos, denominado Nord Stream 2, fora construído mas ainda não estava operacional. Agora, com as tropas russas a acumularem-se na fronteira ucraniana e a guerra mais sangrenta na Europa desde 1945 a aproximar-se, o Presidente Joseph Biden encarava os gasodutos como um veículo para Vladimir Putin transformar o gás natural em arma para as suas ambições políticas e territoriais.
Solicitada a comentar, Adrienne Watson, porta-voz da Casa Branca, disse num email: “Isto é falso e ficção completa”. Tammy Thorp, porta-voz da Agência Central de Inteligência, escreveu igualmente: “Esta afirmação é total e absolutamente falsa”.
A decisão de Biden de sabotar os gasodutos veio depois de mais de nove meses de debate altamente secreto dentro da comunidade de segurança nacional de Washington acerca da melhor forma de alcançar aquele objetivo. Durante grande parte desse tempo, a questão não era saber se a missão deveria ser cumprida, mas sim como fazê-lo sem qualquer indício claro de quem era o responsável.
Havia uma razão burocrática vital para confiar nos graduados do centro de mergulho extremo da cidade do Panamá. Os mergulhadores eram apenas da Marinha e não membros do Comando de Operações Especiais da América, cujas operações secretas devem ser comunicadas ao Congresso e informadas com antecedência ao Senado e à liderança da Câmara – a chamada Gang of Eight. A Administração Biden estava a fazer todo o possível para evitar fugas, pois o planeamento teve lugar no final de 2021 e durante os primeiros meses de 2022.
O Presidente Biden e a sua equipa de política externa – o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, o secretário de Estado Tony Blinken e Victoria Nuland, a subsecretária de Estado para Política – foram eloquentes e consistentes na sua hostilidade aos dois gasodutos, que corriam lado a lado ao longo de 1207 km sob o Mar Báltico a partir de dois portos diferentes no nordeste da Rússia próximos da fronteira com a Estónia, passando perto da ilha dinamarquesa de Bornholm antes de terminarem no norte da Alemanha.
A rota direta, que contornava qualquer necessidade de transitar pela Ucrânia, fora uma bênção para a economia alemã, a qual usufruía de uma abundância de gás natural russo barato – suficiente para gerir as suas fábricas e aquecer as suas casas, ao mesmo tempo que permitia aos distribuidores alemães venderem o excesso de gás, com lucro, por toda a Europa Ocidental. Uma ação que pudesse ser rastreada até à administração violaria promessas dos EUA de minimizar o conflito direto com a Rússia. O segredo era essencial.
Desde os seus primórdios, o Nord Stream 1 foi encarado por Washington e seus parceiros anti-russos da OTAN como uma ameaça à dominância ocidental. A companhia holding por trás dela, a Nord Stream AG, foi constituída na Suíça em 2005 em parceria com a Gazprom, uma empresa russa cotada na bolsa que produz lucros enormes para os acionistas e que é dominada por oligarcas conhecidas por estarem sob o domínio de Putin. A Gazprom controlava 51% da empresa, com quatro empresas energéticas europeias – uma em França, uma na Holanda e duas na Alemanha – partilhando os restantes 49% das ações, e tendo o direito de controlar as vendas a jusante do gás natural barato a distribuidores locais na Alemanha e na Europa Ocidental. Os lucros da Gazprom eram partilhados com o governo russo e o montante das receitas estatais de gás e petróleo foram estimadas, em alguns anos, em 45 por cento do orçamento anual da Rússia.
Os temores políticos da América eram reais: Putin teria agora uma importante e muito necessária fonte de rendimento adicional, e a Alemanha e o resto da Europa Ocidental ficariam viciados no gás natural de baixo custo fornecido pela Rússia – ao mesmo tempo que diminuiria a dependência europeia em relação à América. Na realidade, foi exatamente isso que aconteceu. Muitos alemães viram o Nord Stream 1 como parte da famosa Ostpolitik theory do antigo Chanceler Willy Brandt, a qual permitiu à Alemanha do pós-guerra, assim como a outras nações europeias destruídas na Segunda Guerra Mundial, recuperar-se utilizando gás russo barato para alimentar um próspero mercado e economia comercial na Europa Ocidental.
O Nord Stream 1 era bastante perigoso, na opinião da OTAN e de Washington, mas o Nord Stream 2, cuja construção fora concluída em Setembro de 2021, iria, se aprovado pelos reguladores alemães, duplicar a quantidade de gás barato que ficaria disponível para a Alemanha e a Europa Ocidental. O segundo gasoduto também forneceria gás suficiente para mais de 50 por cento do consumo anual da Alemanha. As tensões entre a Rússia e a NATO estavam constantemente a aumentar, apoiadas pela política externa agressiva da Administração Biden.
A oposição ao Nord Stream 2 incendiou-se na véspera da posse de Biden em janeiro de 2021, quando os Republicanos do Senado, liderados por Ted Cruz do Texas, levantaram repetidamente a ameaça política do gás natural russo barato durante a audiência de confirmação de Blinken como secretário de Estado. Nessa altura, um Senado unificado havia aprovado com êxito uma lei que, como disse Cruz a Blinken, “travava o caminho [do gasoduto]”. Haveria uma enorme pressão política e económica por parte do governo alemão, então encabeçado por Ângela Merkel, para colocar em serviço o segundo gasoduto.
Será que Biden enfrentaria os alemães? Blinken disse que sim, mas acrescentou que não havia discutido os pontos de vista específicos do novo Presidente. “Conheço a sua forte convicção de que se trata de uma má ideia, o Nord Stream 2”, disse ele. “Sei que ele gostaria que usássemos todas as ferramentas persuasivas que temos para convencer os nossos amigos e parceiros, incluindo a Alemanha, a não avançar com isso”.
Alguns meses mais tarde, quando a construção do segundo gasoduto se aproximava da sua conclusão, Biden piscou os olhos. Em Maio, numa reviravolta espantosa, a administração renunciou às sanções contra a Nord Stream AG, com um responsável do Departamento de Estado a reconhecer que tentar travar o gasoduto através de sanções e diplomacia “fora sempre um tiro no escuro”. Nos bastidores, responsáveis da administração alegadamente instaram o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, a enfrentar então uma ameaça de invasão russa, a não criticar a medida.
Houve consequências imediatas. Os Republicanos do Senado, liderados por Cruz, anunciaram um bloqueio imediato a todos os nomeados para a política externa de Biden e atrasaram a aprovação do projeto de lei anual da defesa durante meses. Posteriormente, a [revista] Politico descreveu a viragem de Biden quanto ao segundo oleoduto russo como “a única decisão, provavelmente mais do que a caótica retirada militar do Afeganistão, que pôs em perigo a agenda de Biden”.
A administração estava a hesitar, apesar de ter obtido um adiamento da crise em meados de Novembro, quando os reguladores de energia da Alemanha suspenderam a aprovação do segundo gasoduto Nord Stream. Os preços do gás natural subiram 8% em poucos dias, em meio a temores crescentes na Alemanha e na Europa de que a suspensão do gasoduto e a possibilidade crescente de uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia levassem a um Inverno frio muito indesejado. Não estava clara para Washington a posição de Olaf Scholz, o recém-nomeado chanceler alemão. Meses antes, após a queda do Afeganistão, Scholtz havia apoiado publicamente o apelo do Presidente francês Emmanuel Macron a uma política externa europeia mais autónoma num discurso em Praga – sugerindo claramente menor confiança em Washington e nas suas ações caprichosas.
Ao longo de tudo isto, as tropas russas estiveram a acumular-se de forma constante e preocupante nas fronteiras da Ucrânia, e no final de Dezembro mais de 100.000 soldados estavam em posição de atacar a partir da Bielorrússia e da Crimeia. O alarme aumentava em Washington, incluindo uma avaliação de Blinken de que o número daquelas tropas poderia ser “duplicado em curto prazo”.
A atenção da administração concentrou-se mais uma vez no Nord Stream. Enquanto a Europa permanecesse dependente dos gasodutos para gás natural barato, Washington receava que países como a Alemanha ficassem relutantes em fornecer à Ucrânia o dinheiro e as armas de que necessitava para derrotar a Rússia.
Foi neste momento de instabilidade que Biden autorizou Jake Sullivan a reunir um grupo inter-agências para elaborar um plano.
Todas as opções deveriam estar em cima da mesa. Mas apenas uma emergiria.
PLANEAMENTO
Em dezembro de 2021, dois meses antes de os primeiros tanques russos entrarem na Ucrânia, Jake Sullivan convocou uma reunião de um grupo de trabalho recentemente constituído – homens e mulheres dos Chefes do Estado-Maior Conjunto, da CIA, e dos Departamentos de Estado e do Tesouro – e pediu recomendações sobre como responder à iminente invasão de Putin.
Esta seria a primeira de uma série de reuniões ultra-secretas, numa sala segura num andar superior do antigo edifício do Gabinete Executivo, adjacente à Casa Branca, que era também a casa do Conselho Consultivo de Informações Externas do Presidente (President’s Foreign Intelligence Advisory Board, PFIAB). Houve as habituais conversas de troca de ideias que acabaram por conduzir a uma questão preliminar crucial: Seria a recomendação transmitida pelo grupo ao Presidente algo reversível – como outra camada de sanções e restrições monetárias – ou irreversível – isto é, ações cinéticas, que não poderiam ser desfeitas?
O que ficou claro para os participantes, segundo a fonte com conhecimento direto do processo, é que Sullivan pretendia que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois gasodutos Nord Stream – e que ele estava a cumprir os desejos do Presidente.
Nas várias reuniões seguintes, os participantes debateram opções para um ataque. A Marinha propôs a utilização de um submarino recentemente encomendado para atacar diretamente o oleoduto. A Força Aérea discutiu o lançamento de bombas com espoletas retardadas que poderiam ser detonadas remotamente. A CIA argumentou que o que quer que fosse feito, teria de ser encoberto. Todos os envolvidos compreenderam o que estava em jogo. “Isto não é coisa de criança”, disse a fonte. Se o ataque fosse rastreável até aos Estados Unidos, “é um ato de guerra”.
Na altura, a CIA era dirigida por William Burns, um antigo embaixador na Rússia de temperamento suave, que havia servido como secretário de Estado adjunto na administração Obama. Burns rapidamente autorizou um grupo de trabalho da Agência cujos membros ad hoc incluíam – por acaso – alguém que estava familiarizado com as capacidades dos mergulhadores de alto-mar da Marinha na Cidade do Panamá. Ao longo das semanas seguintes, membros do grupo de trabalho da CIA começaram a elaborar um plano para uma operação encoberta que utilizaria mergulhadores de alto mar para desencadear uma explosão ao longo do gasoduto.
Algo como isto já fora feito antes. Em 1971, a comunidade de inteligência americana soube de fontes ainda não reveladas que duas importantes unidades da marinha russa estavam a comunicar-se através de um cabo submarino enterrado no mar de Okhotsk, na costa do Extremo Oriente russo. O cabo ligava um comando regional da Marinha ao quartel-general continental em Vladivostok.
Uma equipa escolhida a dedo de agentes da Agência Central de Inteligência e da Agência Nacional de Segurança foi reunida algures na área de Washington, sob cobertura profunda, e elaborou um plano, utilizando mergulhadores da Marinha, submarinos modificados e um veículo de resgate submarino profundo, que conseguiu, após muita tentativa e erro, localizar o cabo russo. Os mergulhadores plantaram um sofisticado dispositivo de escuta no cabo que interceptou com êxito o tráfego russo e o registou num sistema de gravação.
A NSA soube que oficiais superiores da Marinha russa, convencidos da segurança da sua ligação de comunicação, conversavam com os seus pares sem encriptação. O dispositivo de gravação e a sua cassete tinham de ser substituídos mensalmente e o projeto continuou alegremente durante uma década, até ser comprometido por um técnico civil da ANS de quarenta e quatro anos, chamado Ronald Pelton, que era fluente em russo. Pelton foi traído por um desertor russo em 1985 e condenado a uma pena de prisão. Ele recebeu apenas US$5.000 dos russos pelas suas revelações acerca da operação, bem como US$35.000 por outros dados operacionais russos que ele forneceu e que nunca foram tornados públicos.
Aquele êxito debaixo da água, com o nome de código Ivy Bells, foi inovador e arriscado, tendo produzido uma inteligência inestimável acerca das intenções e planeamento da Marinha russa.
Ainda assim, o grupo inter-agências inicialmente foi céptico em relação ao entusiasmo da CIA por um ataque encoberto em alto mar. Havia demasiadas perguntas não respondidas. As águas do Mar Báltico eram fortemente patrulhadas pela Marinha russa e não havia plataformas petrolíferas que pudessem ser utilizadas como cobertura para uma operação de mergulho. Será que os mergulhadores teriam de ir à Estónia, mesmo do outro lado da fronteira das docas de carregamento de gás natural da Rússia, para treinar para a missão? “Seria uma foda de cabra”, foi dito à Agência.
Ao longo de “todo este esquema”, disse a fonte, “alguns tipos trabalhadores da CIA e do Departamento de Estado estavam a dizer: ‘Não faças isto. É uma estupidez e será um pesadelo político se se descobrir”.
No entanto, no início de 2022, o grupo de trabalho da CIA apresentou um relatório ao grupo inter-agências de Sullivan: “Temos uma forma de fazer explodir os gasodutos”.
O que se passou a seguir foi espantoso. A 7 de Fevereiro, menos de três semanas antes da aparentemente inevitável invasão russa da Ucrânia, Biden encontrou-se no seu gabinete da Casa Branca com o Chanceler alemão Olaf Scholz, que, depois de algumas indecisões, se encontrava agora firmemente na equipa americana. Na conferência de imprensa que se seguiu, Biden disse desafiadoramente: “Se a Rússia invadir . . . deixará de haver um Nord Stream 2. Nós poremos um fim a isto”.
Vinte dias antes, a subsecretária Nuland havia transmitido essencialmente a mesma mensagem numa nota do Departamento de Estado, com pouca cobertura por parte da imprensa. “Quero ser muito clara para vós hoje”, disse ela em resposta a uma pergunta. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não avançará“.
Vários dos envolvidos no planeamento da missão do gasoduto ficaram consternados com o que consideraram como referências indiretas ao ataque.
“Foi como colocar uma bomba atómica no solo em Tóquio e dizer aos japoneses que a vamos detonar”, disse a fonte. “O plano era para que as opções fossem executadas após a invasão e não fossem anunciadas publicamente. Biden simplesmente não o recebeu ou ignorou-o”.
A indiscrição de Biden e Nuland, se é que o foi, pode ter frustrado alguns dos planeadores. Mas também criou uma oportunidade. Segundo a fonte, alguns dos altos responsáveis da CIA determinaram que explodir o gasoduto “já não podia mais ser considerado uma opção encoberta porque o Presidente acabou de anunciar que sabíamos como o fazer”.
O plano para explodir a Nord Stream 1 e 2 foi subitamente rebaixado de uma operação encoberta exigindo que o Congresso fosse informado para uma que foi considerada como uma operação de inteligência altamente classificada com o apoio militar dos EUA. Nos termos da lei, a fonte explicou: “Já não havia a obrigação legal de informar o Congresso sobre a operação. Tudo o que tinham de fazer agora era apenas fazê-lo – mas ainda assim tinha de ser secreto”. Os russos têm uma vigilância superlativa do Mar Báltico”.
Os membros do grupo de trabalho da Agência não tinham contacto direto com a Casa Branca e estavam ansiosos por descobrir se o Presidente queria dizer o que disse – isto é, se a missão era agora para ir em frente. A fonte recordou: “Bill Burns regressa e diz: ‘Faça-o'”.
A OPERAÇÃO
A Noruega era o local perfeito para basear a missão.
Nos últimos anos de crise Leste-Oeste, os militares dos EUA expandiram enormemente a sua presença dentro da Noruega, cuja fronteira ocidental se estende por 2.250 km ao longo do Oceano Atlântico Norte e se funde acima do Círculo Ártico com a Rússia. O Pentágono criou empregos e contratos altamente remunerados, no meio de alguma controvérsia local, ao investir centenas de milhões de dólares para modernizar e expandir as instalações da Marinha americana e da Força Aérea na Noruega. As novas obras incluíram, o mais importante, um avançado radar de abertura sintética muito a norte, capaz de penetrar nas profundezas da Rússia e que entrou em serviço exatamente quando a comunidade de inteligência americana perdeu o acesso a uma série de locais de escuta de longo alcance dentro da China.
Em contrapartida, o governo norueguês enfureceu os liberais e alguns moderados no seu parlamento em Novembro passado, ao aprovar o Acordo Suplementar de Cooperação em matéria de Defesa (SDCA). Ao abrigo do novo acordo, o sistema legal estado-unidense teria jurisdição em certas “áreas acordadas” no Norte sobre soldados americanos acusados de crimes fora da base, bem como sobre os cidadãos noruegueses acusados ou suspeitos de interferirem com o trabalho na base.
A Noruega foi um dos signatários originais do Tratado da NATO em 1949, nos primeiros dias da Guerra Fria. Hoje, o comandante supremo da NATO é Jens Stoltenberg, um anti-comunista empenhado, que serviu como primeiro-ministro da Noruega durante oito anos antes de passar para o seu alto cargo na NATO, com o apoio americano, em 2014. Ele foi um radical sobre tudo o que [se referisse a] Putin e a Rússia os quais haviam cooperado com a comunidade dos serviços de inteligência americanos desde a Guerra do Vietname. Desde então, ele mereceu confiança total. “Ele é a luva que se adapta à mão americana”, disse a fonte.
De volta a Washington, os planeadores sabiam que tinham de ir à Noruega. “Eles odiavam os russos, e a marinha norueguesa estava cheia de excelentes marinheiros e mergulhadores que tinham gerações de experiência na exploração altamente rentável de petróleo e gás em alto mar”, disse a fonte. Também se podia confiar neles para manter a missão em segredo. (Os noruegueses podem também ter tido outros interesses. A destruição do Nord Stream – se os norte-americanos conseguissem fazê-lo – permitiria à Noruega vender muito mais do seu próprio gás natural à Europa).
Em algum momento em março, alguns membros da equipa voaram para a Noruega para se encontrarem com os Serviços Secretos e a Marinha norueguesa. Uma das questões-chave era onde exatamente no Mar Báltico estava o melhor local para plantar os explosivos. O Nord Stream 1 e 2, cada um com dois conjuntos de tubagens, estavam separados por pouco mais de 1.600 metros na trajetória para o porto de Greifswald, no extremo nordeste da Alemanha.
A marinha norueguesa encontrou rapidamente o ponto certo, nas águas rasas do mar Báltico, a poucos quilómetros da ilha de Bornholm, da Dinamarca. Os gasodutos corriam a mais de 1600 metros de distância ao longo de um fundo do mar que tinha apenas 80 metros de profundidade. Isso estaria bem dentro do alcance dos mergulhadores, que, operando a partir de um caçador de minas norueguês de classe Alta, mergulhariam com uma mistura de oxigénio, nitrogénio e hélio a fluírem dos seus tanques, e cargas C4 em forma de planta sobre os quatro gasodutos com coberturas protetoras de betam. Seria um trabalho fastidioso, demorado e perigoso, mas as águas de Bornholm tinham outra vantagem: não existiam grandes correntes de maré, o que teria tornado a tarefa de mergulhar muito mais difícil.
Depois de alguma investigação, os americanos estiveram todos de acordo.
Nesta altura, o obscuro grupo de mergulho profundo da Marinha na Cidade do Panamá entrou mais uma vez em jogo. As escolas de mergulho profundo na Cidade do Panamá, cujos estagiários participaram em Ivy Bells, são vistas como umas indesejáveis periféricas (backwater) pelos graduados de elite da Academia Naval em Annapolis, que tipicamente procuram a glória de serem designados como Seals, pilotos de caça, ou submarinistas. Se alguém tem de se tornar um “Sapato Negro” – isto é, um membro da parte menos desejável de um navio de superfície – há sempre pelo menos uma responsabilidade num destroier, cruzador ou navio anfíbio. O menos glamoroso de todos é um draga-minas. Os seus mergulhadores nunca aparecem em filmes de Hollywood nem na capa de revistas populares.
“Os melhores mergulhadores com qualificações de mergulho profundo são uma comunidade restrita, e apenas os melhores são recrutados para a operação e instruídos para estarem preparados para serem convocados para a CIA em Washington”, disse a fonte.
Os noruegueses e americanos tinham uma localização e os operacionais, mas havia outra preocupação: qualquer atividade subaquática fora do comum nas águas ao largo de Bornholm poderia chamar a atenção das marinhas sueca ou dinamarquesa, que poderiam relatá-las.
A Dinamarca também fora um dos signatários originais da NATO e era conhecida na comunidade dos serviços secretos pelos seus laços especiais com o Reino Unido. A Suécia havia-se candidatado à adesão à NATO, e havia demonstrado a sua grande habilidade na gestão dos seus sistemas de som e sensores magnéticos subaquáticos que seguiam com êxito os submarinos russos que ocasionalmente apareciam em águas remotas do arquipélago sueco e eram forçados a vir para a superfície.
Os noruegueses insistiram junto aos americanos que alguns altos responsáveis na Dinamarca e na Suécia tinham de ser informados em termos gerais sobre possíveis atividades de mergulho na área. Desta forma, alguém superior poderia intervir e manter um relatório fora da cadeia de comando, isolando assim a operação do gasoduto. “O que lhes foi dito e o que eles sabiam era propositadamente diferente”, disse-me a fonte (a embaixada norueguesa, pedida para comentar esta história, não respondeu).
Os noruegueses foram a chave para resolver outros obstáculos. A marinha russa era conhecida por possuir tecnologia de vigilância capaz de detectar, e despoletar, minas submarinas. Os dispositivos explosivos americanos precisavam de ser camuflados de uma forma que os fizesse parecer ao sistema russo como parte do fundo natural – algo que exigiu uma adaptação à salinidade específica da água. Os noruegueses tinham uma solução.
Os noruegueses também tinham uma solução para a questão crucial de quando a operação deveria ter lugar. Todos os anos em junho, nos últimos 21 anos, a Sexta Frota Americana, cujo navio principal está baseado em Gaeta, Itália, a sul de Roma, tem patrocinado um importante exercício da OTAN no Mar Báltico, envolvendo dezenas de navios aliados em toda a região. O exercício atual, realizado em Junho, seria conhecido como Baltic Operations 22, ou BALTOPS 22. Os noruegueses propuseram que isto seria a cobertura ideal para implantar as minas.
Os americanos forneceram um elemento vital: convenceram os planeadores da Sexta Frota a acrescentar um exercício de investigação e desenvolvimento ao programa. O exercício, como tornado público pela Marinha, envolveu a Sexta Frota em colaboração com os “centros de investigação e guerra” da Marinha. O evento no mar seria realizado ao largo da costa da Ilha de Bornholm e envolveria equipas de mergulhadores da NATO a implantar minas, com equipas concorrentes utilizando a mais recente tecnologia subaquática para as encontrar e destruir.
Foi ao mesmo tempo um exercício útil e uma cobertura engenhosa. Os rapazes da Cidade do Panamá fariam o seu trabalho e os explosivos C4 estariam no local no final do BALTOPS22, com um temporizador de 48 horas ligado. Todos os americanos e noruegueses já teriam desaparecido há muito na altura da primeira explosão.
Os dias estavam em contagem decrescente. “O relógio estava a contar, e estávamos prestes a cumprir a missão”, disse a fonte.
E então: Washington teve segundos pensamentos. As bombas ainda seriam implantadas durante o BALTOPS, mas a Casa Branca receava que uma janela de dois dias para a sua detonação estivesse demasiado próxima do fim do exercício e seria óbvio que a América estivera envolvida.
Em vez disso, a Casa Branca tinha um novo pedido: “Poderão os rapazes no terreno arranjar alguma forma de rebentar os gasodutos mais tarde sob comando?”
Alguns membros da equipa de planeamento ficaram indignados e frustrados com a aparente indecisão do Presidente. Os mergulhadores da Cidade do Panamá tinham praticado repetidamente a implantação do C4 em pipelines, como fariam durante a BALTOPS, mas agora a equipa na Noruega tinha de arranjar uma forma de dar a Biden o que ele queria – a capacidade de emitir uma ordem de execução bem sucedida num momento da sua escolha.
Ser incumbido de uma mudança arbitrária e de última hora era algo que a CIA estava habituada a gerir. Mas isto também renovou as preocupações que alguns partilhavam sobre a necessidade, e a legalidade, de toda a operação.
As ordens secretas do Presidente também evocaram o dilema da CIA nos dias da Guerra do Vietname, quando o Presidente Johnson, confrontado com o crescente sentimento anti-Guerra do Vietname, ordenou que a Agência violasse a sua carta – a qual especificamente a impedir de operar dentro da América – espionando os líderes anti-guerra para determinar se eles estavam a ser controlados pela Rússia comunista.
A Agência acabou por concordar, e ao longo dos anos 70 tornou-se claro até onde estava disposta a ir. Houve revelações posteriores nos jornais, no rescaldo dos escândalos do Watergate, acerca da espionagem da Agência a cidadãos americanos, do seu envolvimento no assassinato de líderes estrangeiros e no seu enfraquecimento do governo socialista de Salvador Allende.
Aquelas revelações levaram a uma série dramática de audiências em meados dos anos 70 no Senado, lideradas por Frank Church of Idaho, que deixaram claro que Richard Helms, o diretor da Agência na altura, aceitou que tinha a obrigação de fazer o que o Presidente queria, mesmo que isso significasse violar a lei.
Em testemunho não publicado e a portas fechadas, Helms explicou com pesar que “quase se tem uma Imaculada Conceição quando se faz algo” sob ordens secretas de um Presidente. “Quer esteja certo que a tenha, ou errado que a tenha, [a CIA] funciona sob regras e regras básicas diferentes das de qualquer outra parte do governo”. Ele essencialmente dizia aos senadores que, como chefe da CIA, compreendia que tinha estado a trabalhar para a Coroa e não para a Constituição.
Os americanos a atuarem na Noruega operavam sob a mesma dinâmica, e começaram a trabalhar no novo problema – como detonar remotamente os explosivos C4 por ordem de Biden. Era uma tarefa muito mais exigente do que aqueles que em Washington compreendiam. Não havia maneira de a equipa na Noruega saber quando é que o Presidente poderia pressionar o botão. Seria em poucas semanas, em muitos meses ou em meio ano ou mais?
O C4 atado às tubagens seria disparado por uma boia de sonar lançada por um avião a breve prazo, mas o procedimento envolvia a mais avançada tecnologia de processamento de sinais. Uma vez no lugar, os dispositivos de temporização retardada ligados a qualquer uma das quatro condutas poderia ser acidentalmente acionada pela complexa mistura de ruídos de fundo oceânico em todo o Mar Báltico com forte tráfego – desde navios próximos e distantes, perfuração submarina, eventos sísmicos, ondas e mesmo criaturas marinhas. Para evitar isto, a boia de sonar, uma vez instalada, emitiria uma sequência de sons tonais únicos de baixa frequência – tais como os emitidos por uma flauta ou um piano – que seriam reconhecidos pelo dispositivo de cronometragem e, após horas pré-definidas de atraso, disparariam os explosivos. (“Querem um sinal suficientemente robusto de modo a que nenhum outro sinal possa acidentalmente enviar um impulso que detone os explosivos”, foi-me dito pelo Dr. Theodore Postol, professor emérito da ciência, tecnologia e política de segurança nacional no MIT. Postol, que serviu como conselheiro científico do Chefe de Operações Navais do Pentágono, disse que a questão que o grupo enfrentava na Noruega devido ao atraso de Biden era uma questão de sorte: “Quanto mais tempo os explosivos permanecerem na água, maior será o risco de um sinal aleatório que lançaria as bombas”).
A 26 de Setembro de 2022, um avião de vigilância P8 da Marinha norueguesa fez um voo aparentemente de rotina e lançou uma boia de sonar. O sinal espalhou-se debaixo de água, inicialmente para o Nord Stream 2 e depois para o Nord Stream 1. Algumas horas mais tarde, os explosivos C4 de alta potência foram ativados e três dos quatro oleodutos foram colocados fora de serviço. Em poucos minutos, as poças de gás metano que ficaram nas condutas fechadas puderam ser vistas a espalhar-se na superfície da água e o mundo soube que algo irreversível tinha acontecido.
CONSEQUÊNCIAS (FALLOUT)
Na sequência imediata do bombardeamento do gasoduto, os media americanos trataram-no como um mistério não resolvido. A Rússia foi repetidamente mencionada como provável culpado, impelida por fugas calculadas da Casa Branca – mas sem nunca estabelecer um motivo claro para tal ato de auto-sabotagem, para além da simples retaliação. Alguns meses mais tarde, quando se verificou que as autoridades russas tinham estado a receber calmamente estimativas dos custos de reparação dos gasodutos, o New York Timesdescreveu a notícia como “complicando teorias sobre quem estava por detrás” do ataque. Nenhum grande jornal americano se debruçou sobre as anteriores ameaças aos gasodutos feitas por Biden e a subsecretária de Estado Nuland.
Embora nunca ficasse claro por que razão a Rússia procuraria destruir o seu próprio gasoduto lucrativo, uma lógica mais reveladora para a ação do Presidente veio do secretário de Estado Blinken.
Questionado numa conferência de imprensa em Setembro passado sobre as consequências do agravamento da crise energética na Europa Ocidental, Blinken descreveu o momento como sendo potencialmente bom:
“É uma tremenda oportunidade para eliminar de uma vez por todas a dependência da energia russa e assim retirar de Vladimir Putin a energia como arma a fim de fazer avançar os seus desígnios imperiais. Isso é muito significativo e oferece uma tremenda oportunidade estratégica para os próximos anos, mas, entretanto, estamos determinados a fazer tudo o que pudermos para garantir que as consequências de tudo isto não sejam suportadas pelos cidadãos dos nossos países ou, aliás, de todo o mundo”.
Mais recentemente, Victoria Nuland exprimiu satisfação com o desaparecimento do mais recente dos gasodutos. A testemunhar numa audiência da Comissão de Relações Externas do Senado no final de Janeiro, disse ao Senador Ted Cruz: “Tal como vós, estou, e penso que a Administração está, muito satisfeita por saber que o Nord Stream 2 é agora, como gostais de dizer, um pedaço de metal no fundo do mar”.
A fonte tinha uma visão muito mais de rua da decisão de Biden de sabotar mais de 2400 km do gasoduto da Gazprom no momento em que o Inverno se aproximava. “Bem”, disse ele, falando do Presidente, “tenho de admitir que o tipo tem um par de bolas”. Ele disse que o ia fazer, e fê-lo”.
Perguntado porque pensava que os russos deixaram de responder, ele disse cinicamente: “Talvez eles queiram a capacidade de fazer as mesmas coisas que os EUA fizeram”.
“Foi uma bela história de capa”, prosseguiu ele. “Por trás foi uma operação encoberta que colocou peritos no terreno e equipamento que funcionou com um sinal encoberto”.