Caso dos 9 chineses: anistia para vítimas da ditadura brasileira é sinal de respeito à China

Caso dos 9 chineses: anistia para vítimas da ditadura brasileira é sinal de respeito à China
CHINA EM FOCO

Caso dos 9 chineses: anistia para vítimas da ditadura brasileira é sinal de respeito à China

Relator da Anistia Coletiva da Missão Chinesa, Manoel Moraes, fala com exclusividade à Revista Fórum sobre impacto da decisão histórica que concede anistia política a cidadãos da China alvos do regime militar do Brasil

Créditos: Arquivo Documentos Revelados - Julgamento de nove chineses vítimas da ditadura militar brasileira

Iara Vidal

Escrito en GLOBAL 

A anistia concedida pelo governo brasileiro a nove cidadãos chineses vítimas de violenta perseguição por parte da ditadura militar foi um evento histórico. A Revista Fórum conversou com exclusividade com Manoel Moraes, integrante da Comissão de Anistia, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e relator da Anistia Coletiva da Missão Chinesa.

 

Acervo pessoal de Manoel Moraes - Relator da Anistia Coletiva da Missão Chinesa, Manoel Moraes

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O cientista político, advogado, professor e doutor é titular da cátedra Unesco/Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara. Também atua como professor da Escola de Ciências Jurídicas da mesma instituição e integra o Conselho Deliberativo do Memorial da Democracia Fernando de Vasconcellos Coelho.

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O episódio sobre o qual ele foi relator na Comissão de Anistia ficou conhecido como o "Caso dos 9 chineses" e, nesta terça-feira (2), foi um dos processos de reparação coletiva julgados pelo colegiado do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, junto com o das comunidades indígenas Krenak e Guyraroká.

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No dia 3 de abril de 1964, a ditadura militar instalada no Brasil cometeu a primeira infração aos direitos humanos com repercussão internacional: a prisão de nove cidadãos chineses no Rio de Janeiro (RJ).

Pedido desculpas do Brasil

Apenas seis décadas depois desse episódio vergonhoso o governo brasileiro deu o primeiro passo para reparar esse episódio triste e revoltante. De que forma a concessão de anistia a esse grupo de chineses presos, torturados e expulsos do Brasil durante o regime militar pode impactar as relações entre China e Brasil 60 anos depois?

Para Moraes, todas as medidas que, no âmbito da justiça de transição, promovem o direito à memória, à verdade e à justiça constroem diálogos e reconhecimento para o nunca mais.

Ele cita que a Lei 10.559/2002 estabeleceu elementos para promover o direito à anistia política e que a decisão que beneficia os nove cidadãos chineses foi a terceira dessa natureza a ser aceita na história da Comissão de Anistia, um órgão constitucional que tem o dever de cumprir medidas e compromissos assumidos pelo Brasil em tratados de direitos humanos,

"A sociedade chinesa, ao saber que reconhecemos e pedimos desculpas pelas arbitrariedades cometidas pela ditadura militar contra Wang Wei Chen, ChunChin Tung, Hou Fa Tseng, Wang Chih, Su Tse Ping, Chang Pau Sheng, Wang Yao Ting, May Yao Tseng, Sung Kuei Pao, pelo princípio internacional da cooperação entre os povos, as duas sociedades podem aproveitar este gesto como forma de reconhecimento mútuo e respeito aos seus nacionais", observou o relator do caso.

Já o efeito prático dessa decisão da Comissão de Anistia, comenta Moraes, vai depender da ação do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, que, no campo das relações internacionais, deve informar o Estado chinês sobre a realização de um ato formal de pedido de desculpas em ato solene e diante de um processo de anistia coletiva.

"Algo inédito nas relações dos dois países. Trata-se de um ato jurídico de Estado, que tem repercussões nas diversas áreas do governo e pode ajudar em outras esferas públicas e internacionais", destaca.

Medalhas desaparecidas

Há ainda pendências do governo brasileiro com os nove chineses injustiçados pela ditadura brasileira. Em 2015, a então presidenta da República, Dilma Rousseff, revogou o decreto que expulsou os chineses do Brasil e concedeu a eles a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta honraria concedida pelo Executivo federal, medalhas que até hoje nunca foram entregues aos chineses. 

A embaixada do Brasil em Pequim ficou incumbida de organizar uma cerimônia para a entrega das medalhas, mas o golpe de 2016 fez o assunto cair no “esquecimento”. Há mais de um ano, um grupo de brasileiros que moram na China tem feito contatos por mensagens eletrônicas e por telefone com o corpo diplomático brasileiro em Pequim, sem sucesso.

Sobre esse capítulo de uma história de vexames e injustiças, Moraes informa que em seu relatório recomendou a entrega das comendas como forma de reparação. Ele acredita que, agora, é possível reparar essa lacuna lamentável.

"É momento de reconstrução e gestos como esse peso podem significar nas relações internacionais um reconhecimento da importância da cultura e do povo chinês para nossa sociedade. Que seja feita a entrega, para que nunca mais, uma pessoa seja presa de forma tão arbitrária e violenta", avalia.

Nesta quarta-feira (3), a Revista Fórum enviou um pedido de esclarecimentos sobre a entrega dessas medalhas à assessoria de imprensa do Itamaraty, em Brasília (DF), por email e mensagem de texto (WhatsApp) e até o momento da publicação desta matéria não obteve resposta. O espaço segue aberto para que a diplomacia brasileira se manifeste.

Anulação de ação penal

As pendências prosseguem. A ação criminal contra os nove chineses foi arquivada em 1965 e permaneceu no esquecimento até 2022, quando João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) sua anulação por meio de um habeas corpus nº 213.791.

No relatório de Moraes para esse caso na Comissão de Anistia, ele recomenda que o STF atenda ao pedido em favor da missão diplomática chinesa e que o Superior Tribunal Militar anule a ação penal.

Bens e dinheiro retidos

Há ainda o pedido de restituir os bens e valores dos chineses que foram indevidamente retidos durante a prisão arbitrária do dia 3 de abril de 1964: 189.022 cruzeiros, 49.277 dólares dos EUA, 2.260 francos suíços, 138 libras, 3 rublos, e 3 kopekas, além de um cheque da Union Bank of Switzerland de 2.500 francos suíços. Corrigido, o dinheiro representaria, em valores atuais, R$ 877.756,61.