ARTHUR, O MIÚDO

As vaquejadas políticas e as boiadas orçamentárias do presidente da Câmara dos Deputados

ARTHUR, O MIÚDO

 

ANGÉLICA SANTA CRUZ

Jornalista, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo

ARTHUR, O MIÚDO

As vaquejadas políticas e as boiadas orçamentárias do presidente da Câmara dos Deputados

Angélica Santa Cruz|Edição 183, Dezembro 2021

 

Ominúsculo centro histórico da cidade de Penedo, a 146 km de Maceió, é uma belezinha. Tem três igrejas barrocas. O horizonte, formado por um casario neoclássico cuja harmonia só é quebrada pelo prédio feioso do maior hotel da redondeza, está gloriosamente construído em um rochedo banhado pela margem esquerda do Rio São Francisco. Não é forçar a pintura dizer que, quando a tarde vai caindo, os reflexos da luz do sol nas águas do Velho Chico deixam a paisagem com jeito de um lugar encantado. A 3 km desse cenário meio idílico, no bairro de Santa Luzia, fica um conjunto de três prédios com fachadas brancas e telhados pintados em azul-claro que ocupa um quarteirão inteiro. Ali, esconde-se uma amostra das engrenagens mais ativas do poder nacional – a 5SR da Codevasf. A sigla se traduz por 5ª Superintendência Regional da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba.

A 5SR é o epicentro do poder regional de Arthur César Pereira de Lira, presidente da Câmara dos Deputados e um dos atuais mandachuvas do Centrão. Lá se encontra um dos motivos que levam Lira a permanecer confortavelmente sentado em mais de 130 pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. Desde abril passado, o superintendente regional da Codevasf em Alagoas é João José Pereira Filho, o Joãozinho – político, agropecuarista e, mais importante, primo de Lira. Todas terças e quintas-feiras, das 10 às 20 horas, Joãozinho despacha na 5SR. Nesses dias, o pátio do local fica lotado de carros de prefeitos, vereadores e presidentes de associações agrícolas. Todos, sem exceção, aliados políticos da família Lira. Dependendo da conversa, a massa de visitantes sai dali com a promessa de obter para suas bases equipamentos como tratores, retroescavadeiras, batedeiras de cereais, máquinas de ordenha, cacimbas ou diferentes tipos de caminhões, de compactadores de lixo a tanques refrigerados para o transporte de leite.

Nos últimos meses, essa parafernália agrícola começou a chegar em grandes levas no pátio da superintendência da Codevasf. Em tão grande volume que, de vez em quando, falta lugar para tanto equipamento e é preciso levar as máquinas para um galpão da estatal a quase 6 km dali, na zona rural de Penedo. Em uma quinta-feira de outubro, por exemplo, quinze caminhões-pipa estalando de novos lotavam o estacionamento do pátio da 5SR, de modo que cinquenta tratores esperavam por seus futuros donos no galpão fora da cidade. E logo a superlotação seria ainda maior, com a licitação que estava prestes a sair do forno prevendo a compra de mais 150 caminhões compactadores de lixo.

Os três prédios da 5SR são separados da rua apenas por muros com grades baixinhas. Quem passa ali perto vê com facilidade toda a movimentação de políticos, em meio aos equipamentos agrícolas. Joãozinho, o primo de Lira, é dono da JJPZ Agropecuária Pereira, empresa que administra dez fazendas especializadas em genética leiteira, e, como muitos dos prefeitos que o visitam também são ruralistas, o pessoal da vizinhança já apelidou aquele constante entra e sai: “Vaquejada do Centrão.”

A Vaquejada do Centrão é, no dialeto local, a expressão para um modelo atualizado do fisiologismo: dinheiro grosso que o governo federal vem liberando para os parlamentares que o apoiam. Principalmente por meio do “orçamento secreto”, em que os congressistas ganharam o direito de destinar verbas públicas para quem quiserem, como quiserem e – melhor de tudo – sem dar qualquer informação pública a respeito. Usado por Bolsonaro para acorrentar a fidelidade do Centrão, esse esquema já provocou ondas sísmicas em série. Foi  interceptado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que mandou parar o jogo para romper o véu do segredo e mostrar quem pediu os recursos, para quem e para onde – ordem solenemente desobedecida pelo governo federal, que continuou liberando alguns desses recursos furtivos, como mostrou reportagem publicada no site da piauí. Virou duas investigações em curso na Polícia Federal, que quer saber mais sobre a atuação de parlamentares em possíveis desvios dessas verbas. E motivou denúncias feitas pelo deputado federal Delegado Waldir (PSL-GO), ex-bolsonarista de quatro costados, de que cada parlamentar que votou em Lira para a presidência da Câmara teria sido recompensado com 10 milhões de reais em emendas sigilosas. Apesar desses abalos, sabe-se que alguma manobra será feita para que não falte dinheiro para beneficiar a base de apoio ao governo.

Em Penedo, cidade com cerca de 64 mil habitantes, nunca se viu uma dança de equipamentos tão animada. “É coisa de cinema. A sede regional da Codevasf virou um escritório político com aliados, atuais ou em fase de aproximação, entrando e saindo para pedir maquinário e obras de pavimentação em troca de apoio para o grupo de Lira”, descreve uma funcionária que, apesar de ter a estabilidade dos concursados, pediu para ficar anônima para “não ser atazanada depois”.

Até mesmo os comunicados oficiais da Codevasf têm um não sei quê de impudico. Em 8 de setembro passado, quando Arthur Lira, com olhos hesitantes diante de um teleprompter, fez um pronunciamento colocando panos quentes no palavreado golpista de Bolsonaro durante as manifestações do Sete de Setembro, a estatal divulgou uma nota didática: “A Codevasf repassou, ao longo do mês de agosto, máquinas e equipamentos a associações de produtores e prefeituras de vinte municípios alagoanos. […] Os investimentos somam 3,1 milhões de reais e têm origem em emendas parlamentares ao Orçamento Geral da União.”

Os equipamentos dessa leva de presentes chegaram à Codevasf por meio de emendas parlamentares de bancadas ou individuais – aquelas a que todos os congressistas têm direito e que seguem critérios de transparência. Mas, examinando a lista das vinte cidades alagoanas contempladas, constata-se que todas são governadas por partidos do Centrão ou por possíveis aliados na região. Delas, doze estão nas mãos do PP, a legenda de Lira que foi rebatizada como Progressistas. Duas estão com o PL, uma está com o DEM, três são governadas por parceiros do MDB, uma do Cidadania e uma do PSB. Entre os agraciados, estavam Peu Pereira, prefeito de Teotônio Vilela, e Teófilo Pereira, prefeito de Craíbas. Ambos são primos de Lira e de Joãozinho.

A conta de Joãozinho no Instagram (@joaozinhopereiraalagoas) enumera seus encontros semanais com os aliados políticos e, por vezes, noticia quanto eles recebem em equipamentos. De vez em quando, o senador Fernando Collor de Mello (Pros) aparece como patrono de recursos, mas nada comparável à fartura das “emendas parlamentares do amigo, primo e deputado federal Arthur Lira”. No dia 24 de outubro, Joãozinho se empolgou à beça. Mandou a discrição às favas e postou fotos do estande da Codevasf na 71ª edição da Exposição Agropecuária de Produtos e Derivados de Alagoas (Expoagro), o maior evento anual do agronegócio do Nordeste, realizado em Maceió. A poucos metros da tenda branca levantada com dinheiro público, enfeitada com o logotipo do Ministério do Desenvolvimento Regional e do governo federal, via-se um caminhão-pipa ornamentado com a faixa: “Os agricultores alagoanos reconhecem o brilhante trabalho da Codevasf e do presidente da Câmara Arthur Lira pelo bem de Alagoas.”

 

Criada em 1974 para estimular projetos de irrigação no Nordeste, a Codevasf funciona hoje em dez superintendências, que atendem a quinze estados e ao Distrito Federal. Seus funcionários, cerca de 1,5 mil, são concursados e conhecem profundamente os gargalos que dificultam o progresso das cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Mas a cúpula da estatal – o diretor-presidente, os diretores nacionais e os superintendentes regionais – é composta por gente que chegou lá por indicação política. Com esse formato, a empresa foi, ao longo dos anos, sendo loteada entre os partidos do Centrão.

Em setembro de 2017, a família de Arthur Lira introduziu uma inovação que mudou o jogo em Alagoas. Seu pai, Benedito de Lira, na época líder do PP no Senado, conseguiu aprovar uma lei ampliando a área de atuação da Codevasf para 80% dos municípios alagoanos – antes disso, abarcava 40%. Em setembro do ano passado, houve nova ampliação. O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) propôs expandir a abrangência da empresa para todo o Nordeste, Minas Gerais e a região Norte, incluindo, é claro, o Amapá, seu estado natal. O presidente Jair Bolsonaro sancionou o projeto. A mudança transformou a estatal num mamute.

Com isso, a Codevasf passou a atender todos os 102 municípios de Alagoas, inclusive os que não têm qualquer relação com projetos de irrigação. Rapidamente, a estatal se transformou em uma galinha dos ovos de ouro que maneja verbas mais bojudas do que a maioria das secretarias estaduais, sempre em contato – sem intermediários – com prefeitos, vereadores e presidentes de associações agrícolas. É um oceano de votos. Nos últimos meses, os cerca de 160 funcionários de carreira da 5SR em Penedo vêm assistindo à demonstração de como a Codevasf se transformou naquilo que os políticos fisiológicos sempre sonharam: uma agência com bala de prata para executar emendas, comprar e distribuir.

Desovar o dinheiro de emendas parlamentares por meio da Codevasf representa uma vantagem notável. A companhia tem duas formas mais comuns para liberar os recursos: por meio de licitações para projetos de irrigação – que exigem detalhamento técnico e descrição de como e onde serão feitos – ou de licitações para comprar equipamentos agrícolas que podem ser doados para prefeituras ou associações e cooperativas com mais de dois anos de funcionamento. Neste segundo caso, não é preciso especificar as entidades contempladas, nem quando elas receberão a doação dos equipamentos. Basta usar uma destinação genérica como “atendimento a agricultura familiar do estado de Alagoas”. A consequência disso tudo é óbvia: as doações de máquinas explodiram.

Os chefões da 5SR perceberam a porteira que estava se abrindo ainda no governo do ex-presidente Michel Temer, período em que o então senador Benedito de Lira, pai de Arthur Lira, nomeou o superintendente em Penedo. Agora, associando as facilidades burocráticas com as verbas polpudas liberadas por Bolsonaro, a coisa virou uma festa de arromba. Os valores são altíssimos, as compras acontecem em ritmo frenético e, com os galpões e estacionamentos entupidos de maquinário, Lira e apaniguados começam as negociações para distribuir as máquinas.

Nos corredores do Congresso Nacional corria com alguma insistência, no começo da gestão de Arthur Lira, o zum-zum de que ele não estaria à altura do papel institucional de presidir a Câmara dos Deputados, pois se preocupava em excesso com seus cálculos paroquiais em Alagoas. As desconfianças diminuíram um pouco quando Lira passou a se dedicar também ao beija-mão do mercado financeiro e do empresariado concentrado no Sudeste. Por trás desse cuidado, no entanto, os cálculos locais continuaram a mil. Nos fins de semana, Lira reserva para a terra natal um naco grande de sua agenda. Em suas andanças em Alagoas, prefere usar camisas polo escuras, pequeno truque semiótico para diferenciá-lo do senador Renan Calheiros (MDB), seu maior rival, que costuma vestir camisas de um branco imaculado em seus périplos pela região.

Um pequeno panorama da agenda feérica de Lira em Alagoas:

Na noite de 18 de junho, sexta-feira, o presidente da Câmara foi até a cidade de Olho d’Água das Flores, onde entregou uma retroescavadeira e um compactador de lixo. Na manhã seguinte, em São Sebastião, entregou um trator, uma grade aradora e um compactador de lixo. Depois, em Teotônio Vilela, entregou uma retroescavadeira, um trator, uma grade aradora e uma carreta basculante. Na manhã chuvosa de 3 de julho, sábado, passou por Jequiá da Praia, onde entregou um caminhão e três máquinas enfeitadas com balões verdes e brancos. Depois, em Coruripe, entregou um compactador de lixo e um trator. Em Feliz Deserto, entregou outro compactador. Na manhã de 6 de novembro, um sábado, passou pelo município de Roteiro. Entregou uma retroescavadeira, motores para barcos de pescadores, kits para apicultores e anunciou a pavimentação asfáltica de várias ruas. Em todas as visitas, usou camisa polo preta. Todas essas cidades são governadas, imagine só, pelo PP.

Em 28 de agosto, sábado, Lira dedicou-se a outra atividade frequente da Codevasf em Alagoas, além da distribuição de equipamentos. Visitou Arapiraca, o segundo maior município do estado, e assinou convênios de 29,1 milhões de reais para cinquenta obras de pavimentação em bairros urbanos e rurais – dinheiro do “orçamento secreto”. Dessa vez, o contemplado era um prefeito do MDB, mas vale o investimento. Trata-se de Luciano Barbosa, o ex-vice do governador Renan Filho. No final de 2019, a filha e o genro de Barbosa foram presos em uma operação da Polícia Federal que investigava um esquema de desvio de recursos do SUS. Indignado, ele atribuiu as denúncias a um fogo amigo, abandonou o governo e conseguiu se eleger prefeito de Arapiraca. Deixou Renan Filho em uma enrascada, sem um sucessor para assumir o governo caso deixe a cadeira para tentar uma vaga no Senado. E Barbosa caiu no colo de Arthur Lira.

No dia 30 de outubro, o presidente da Câmara voltou a Arapiraca. Durante as comemorações dos 97 anos da cidade, assinou uma ordem de serviço para pavimentação de 45 ruas. Animadíssimo com a festa, o primo Joãozinho, como sempre, entregou o jogo durante a cerimônia: “Através das emendas parlamentares do deputado Arthur Lira, a Codevasf tem sido uma mão amiga para a população de Arapiraca! Este ano, vamos trabalhar aqui com valores na ordem de 150 milhões de reais.” Dessa vez, os recursos serão conveniados diretamente com as prefeituras – o que significa que a estatal entrega o dinheiro e o prefeito faz as licitações.

A entrega mais festiva se deu no dia anterior, 29 de outubro, em São Miguel dos Campos, cidade governada por outro possível aliado do MDB. Sentado em uma cadeira branca e com um laptop apoiado nas pernas, Lira liberou, em tempo real, 17 milhões de reais para obras de drenagem. Enquanto clicava no site do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), o primo da Codevasf narrava a transferência com um microfone nas mãos: “Máquina registradora! Contou? Plim, plim! Dinheiro na conta!” Operação concluída, Lira levantou o notebook e mostrou a tela para a plateia. “Eêêêê!!”, gritou a audiência, batendo palmas.

Um político alagoano que faz parte do círculo de Lira vê zero problema no toró de apetrechos agrícolas que estão chegando ao estado ou no loteamento da estatal para conseguir apoio eleitoral. Argumenta que faz parte do jogo da democracia se movimentar para levar melhorias às bases e, se há um momento propício, é preciso aproveitar. “No final é o povo mesmo que ganha, o pessoal que está ali precisando desses equipamentos e vai poder usar as máquinas em rodízio graças às associações e cooperativas. Quem está no Sudeste fazendo política de gabinete não sabe como funciona o país e como as pessoas precisam de ajuda para trabalhar”, diz ele, que pediu o anonimato porque “crucificam quem fala abertamente o que todo mundo pensa”. Indagado sobre o uso da estatal e do dinheiro público para beneficiar apenas aliados, inclusive parentes, o político responde: “É lógico que, podendo, você ajuda a quem enxerga a política como você. É muito ingênuo achar que algum grupo político não faz isso. Todo, todo grupo faz – e está certo, porque isso é da luta de forças. É como dizem: ‘Você que ficou de fora que lute.’ Em cidade pequena é tudo parente mesmo. Se for dar a quem não é, aí não acha ninguém.”

Um funcionário de décadas da Codevasf, que já trabalhou em quatro regionais, inclusive em Penedo, pensa diferente. “As emendas parlamentares, mesmo as RP9 [emendas de relator], são executadas seguindo as normas e são o jeito mais rápido de financiar projetos da companhia. Alguns no Vale do São Francisco, por exemplo, são excepcionais”, diz ele, que pediu anonimato para não ser prejudicado pelos chefões. “Mas esses caras são hienas que vão destruir a Codevasf, como fizeram com várias outras, porque só entregam a quem vai dar uma resposta eleitoral. Cadê o projeto de desenvolvimento regional? Cadê a implantação de grandes territórios irrigados, que é a razão de ser da estatal? Não tem. Só tem essa gente jogando dinheiro em licitações com valores cada vez mais altos, expandindo a empresa para onde não faz sentido, a fim de ter cabide de emprego e mais cidades onde negociar votos. A Codevasf está virando um prédio torto. Vai cair.” Procurados pela piauí, Arthur Lira e Joãozinho não responderam aos pedidos de entrevista.

 

Mais de 80% das cidades de Alagoas são formadas por pequenos feudos eleitorais com menos de 40 mil habitantes, na maioria das vezes governados por um punhado de famílias que vão espalhando seus integrantes por municípios contíguos. “Parece um tabuleiro do jogo War”, define o cientista político Ranulfo Paranhos, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). São vários clãs, como os Beltrão, do deputado federal Marx Beltrão (PSD), agora meio rachado pela disputa raivosa entre dois primos deputados, que se espraia pelo litoral Sul, a partir de Coruripe. Mais poderosos de todos nesse emaranhado, os Calheiros só têm um prefeito, mas contam com um arco bem amarrado de alianças espalhadas pelo estado, o que explica a incrível longevidade do patriarca Renan na primeira divisão da política local.

joint venture entre os Lira e os Pereira come pelas bordas, governando cidadezinhas que pegam a Zona da Mata e um pouco do Agreste, a partir do município de Junqueiro. Não significa que essas famílias políticas não costurem alianças o tempo inteiro, distribuindo cargos uns para os outros. Mas, para o presidente da Câmara, usar a força do seu cargo – e a boiada orçamentária – para laçar o maior número possível de pequenos municípios é uma questão de sobrevivência.

Seu pai, Benedito de Lira, de 79 anos, passou boa parte de sua trajetória política como um personagem discreto. De origem pobre, começou a vida como secretário de uma escola estadual em Maceió e foi puxando o fio dos cargos eletivos, sempre à direita. Primeiro, foi vereador em Junqueiro, sua cidade natal, eleito pela Arena, o partido que dava sustentação à ditadura militar. Depois, vereador em Maceió, deputado estadual por três mandatos, deputado federal por mais três, até que virou um nome importante do Centrão no Senado, onde foi líder do PP.

Nas eleições de 2010, deu um cavalo de pau em sua imagem pública. Assumiu um nome mais popular, Biu de Lira, e conseguiu a maior votação para o Senado na história de Alagoas. No primeiro turno, faturou 904 mil votos, em um universo de quase 1,5 milhão. Fez uma campanha arrasa-quarteirão em que dançava forró de um jeito hilário nos palanques. E enterrou a rival Heloísa Helena, na época do Psol, ao associá-la a uma personagem chamada Maritaca, que aparecia esculhambando as oligarquias nos filmes da sua campanha, inspirados na literatura de cordel. Depois dessa consagração popular, perdeu uma corrida para o governo do estado, em 2014, e outra para o Senado, em 2018. Mas, nas últimas eleições, surpreendeu até o seu filho ao anunciar que se candidataria à Prefeitura de Barra de São Miguel, cidadezinha a 28 km de Maceió com cerca de 8 mil habitantes e praias de cair o queixo. Ainda na marola do personagem engraçado que fala a linguagem do povo, Biu de Lira foi eleito.

Ruim de palanque, com um jeito enfadonho de passar seu recado, Arthur Lira não faz o perfil popular adotado pelo pai. Não atrai o “voto de opinião”, aquele baseado em princípios, nem o voto por entusiasmo dado a políticos carismáticos. Como definem os analistas locais, transformou-se em um cabra bom de bastidores. Navega muito bem no ambiente me-ajuda-aqui-que-eu-pago-lá-na–frente, tão característico das estrelas do Centrão. É um talento que lhe deu o terceiro mandato consecutivo de deputado federal, depois de ser o segundo mais votado em Alagoas nas eleições de 2018 – o primeiro foi JHC (PSB), como é conhecido João Henrique Caldas, hoje prefeito de Maceió. No plano nacional, a tarimba de Lira para os bastidores apareceu pela primeira vez em sua eleição para a presidência da Câmara, em 1º de fevereiro passado, quando conseguiu cravar a faca nas costas de Rodrigo Maia (sem partido), que se despediu do cargo no plenário chorando, ao ver seu candidato, Baleia Rossi (MDB-SP), ser inapelavelmente abandonado pelos parlamentares.

À frente da Câmara dos Deputados, cargo-chave no presidencialismo de coalizão, Lira tornou-se um dos homens mais poderosos da República. Cultiva um estilo baseado na frase que mais gosta de usar: “Eu cumpro os meus acordos.” Conhece bem os labirintos do Congresso, das manobras regimentais às ambições pessoais – leia-se o apetite por cargos – de seus pares. Teve treinamento ninja nesses meandros, quando atuou em postos estratégicos. Em 2015, foi presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), cargo importante porque analisa todos os projetos de alteração da Constituição. Em 2016, ocupou a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), também educativa porque analisa com lupa a definição dos gastos públicos federais.

Nos encontros políticos, Lira não gosta de conversa fiada, vai direto ao ponto. Quando se irrita, responde de maneira brusca: com uma frase cortante acompanhada de um sorriso insolente, levantando as mãos, como se balançasse um bebê. Assumiu a presidência da Câmara imprimindo um ritmo legislativo tresloucado, com votações repentinas, às vezes durante a madrugada. Muitas delas atropelam os ritos da Casa de modo inclemente, com requerimentos de urgência e outros atalhos, o que permite levar os projetos a jato para o plenário, sem passar por comissões e até mesmo sem que os pares tenham tempo de analisar o tema detidamente.

Foi assim com uma lista de temas polêmicos: a Lei de Improbidade Administrativa, as mudanças na forma de cálculo do ICMS para combustíveis, a reforma do Imposto de Renda ou a PEC que aumentaria o poder de fiscalização do Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público. Esta última ele defendeu com unhas e dentes, mas a tentativa inicial não vingou – e acabou virando sua primeira derrota fenomenal.

A quem pergunta sobre o porquê de tanta pressa, Lira responde como sempre: está honrando seus pactos. O auge da exibição de seu perfil tarefeiro se deu na aprovação da PEC dos Precatórios, o projeto que dá calote em dívidas judiciais da União para garantir o pagamento do Auxílio Brasil. De lambuja, libera 20 bilhões de reais para novas emendas. Foi uma votação tão cheia de soturnas manobras regimentais que a oposição chegou a entrar com três mandados de segurança no STF, pedindo a sua anulação. Mas serviu para o presidente da Câmara cumprir seu papel estratégico: entregar a alguns parlamentares os biscoitos de Jair Bolsonaro, com quem Lira tem relação muito pragmática.

O presidente da República passou perrengues com Rodrigo Maia, a quem apoiou nas eleições para o comando da Câmara em 2019. Depois, o deputado voltou-se contra, apesar de também dormir em cima dos pedidos de impeachment. Bolsonaro acabou achando em Lira um aliado eficiente, que prova a sua boa vontade levando ao plenário inclusive pautas que sabe não terem chances de ir adiante, como a do voto impresso, e, sobretudo, segurando os pedidos de cassação do mandato presidencial. Em troca, Lira e o Centrão ganham cargos-chave no governo e um poder precioso sobre o Orçamento da União.

Na base, nas pequenas cidades de Alagoas, esse acordo já vai fazendo Lira expandir seus limites. Em uma sexta-feira quente de julho, no salão de eventos de um hotel em Maceió, por exemplo, ele participou de uma reunião com 45 prefeitos “aliados e parceiros”, ou seja, com o comando de 44% das cidades do estado. Entre eles estava Luciano Barbosa, o prefeito de Arapiraca. Ali, o presidente da Câmara deu uma prévia dos resultados da Vaquejada do Centrão. De camisa polo preta, com microfone nas mãos e sentado em uma mesa coberta com toalha branca – tendo à sua direita o onipresente Joãozinho, o primo aboletado na Codevasf –, Lira abriu o encontro com alguns prolegômenos. Lá pelo fim do pronunciamento, diante de uma plateia mais e mais interessada – em meio à qual havia dois políticos com chapéu-panamá e dois com sandálias de couro –, chegou ao núcleo duro do seu discurso. Avisou que seu grupo terá um nome viável para disputar o governo do estado nas eleições de 2022 e anunciou que é candidato à reeleição para deputado federal. No âmbito local, o projeto político de Lira é desbancar os ainda poderosíssimos Calheiros. No nacional, ser reconduzido à presidência da Câmara.

No fim das contas, a Vaquejada do Centrão é uma ponta da engrenagem de uma conhecida loja de miudezas eleitorais que, no mapa político brasileiro, está operando no atacado. Em Alagoas, sob a liderança de Lira, o PP cresceu 154,5% nas últimas eleições – fez 28 prefeituras em 2020, contra 11 na disputa de 2016. Só perde para o MDB de Calheiros, que conseguiu 39 municípios em 2020, apenas um a mais em relação à disputa anterior. No Nordeste, o PP é o primeiro em número de prefeitos eleitos, com 287. No país, sob a batuta do ministro Ciro Nogueira, o dono da legenda, é o segundo maior, com 682 prefeituras, atrás apenas do MDB. Na Câmara dos Deputados, é a maior bancada do Centrão e a quarta maior no cômputo geral, com 48 integrantes.

Olhando de perto, é também uma mistura desassombrada entre público e privado que acompanha Lira ao longo de sua trajetória.

 

Orosto de Arthur Lira ainda não tinha nem sinal de barba quando o termo “funcionário-fantasma” apareceu pela primeira vez na sua vida – e era ele mesmo. No começo de 1986, a imprensa de Maceió publicou a denúncia de que era assessor especial da Assembleia Legislativa de Alagoas no gabinete do pai, à época deputado estadual pelo antigo PFL. Lira tinha 17 anos e, de acordo com as notícias, havia sido contratado dois anos antes, com apenas 15. O escândalo lhe rendeu constrangimentos. Nas ruas do local onde vivia, o Loteamento Guaicurus, que acomodava famílias de classe média e média baixa no bairro de Ponta Grossa, ouviu durante meses os xingamentos de garotos da vizinhança – que, escondidos atrás de carros e simulando a voz de papagaios, gritavam para o jovem Arthur: “Corrupto! Corrupto!”

O constrangimento não foi suficiente para evitar que ele continuasse a se envolver em acusações do mesmo tipo. A mais retumbante apareceu duas décadas depois. Em meados de 2005, uma senhora septuagenária estranhou o valor do seu contracheque da Assembleia Legislativa de Alagoas. Indignada, foi reclamar no setor de Recursos Humanos. Achou que a trataram com grosseria e, mais furiosa ainda, resolveu procurar a Polícia Federal. Lá, suas queixas caíram nos ouvidos de investigadores que já estavam encafifados com um fato estranho apontado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda: o movimento nas contas de alguns funcionários da Assembleia Legislativa era incompatível com o que aparecia na folha de pagamento da Casa.

O caso virou uma investigação monumental, batizada de Operação Taturana, em alusão ao inseto que come folhas. Durante um ano e meio, os policiais foram cruzando dados que obtinham de outros órgãos, como a Receita Federal, e acumulando transcrições de escutas telefônicas, fotografias, laudos, documentos e vídeos. Até que, na manhã de 6 de dezembro de 2007, Maceió entrou em transe. Logo cedinho, começou a se espalhar a notícia de que a Polícia Federal estava entrando na casa de deputados, ex-deputados, secretários municipais, prefeitos, funcionários de bancos, parentes de políticos e funcionários da Assembleia. Foi um deus nos acuda. As pessoas se telefonavam para trocar informações sobre quem havia acabado de receber a visita das viaturas. Mais de trezentos agentes, entre eles alguns recrutados em outros estados, apreenderam carros de luxo, lanchas, jet skis, joias, malas com dinheiro e, sobretudo, documentos.

A piada local era que ficara difícil apontar um prédio na orla de Ponta Verde, um bairro abastado da cidade, que não tivesse recebido o rapa da polícia. Entre os visitados, estava Arthur Lira. “Olhe, foi um susto, um horror. Entraram na minha casa, reviraram tudo, apreenderam até meu carro”, lembra Jullyene Cristine Santos Lins, ex-mulher de Lira, que hoje vive engalfinhada com o deputado em processos judiciais e o acusa, inclusive, de agressão física.

A Operação Taturana resultou em um inquérito com 94 325 páginas, divididas em treze volumes. A coleção de materiais apresentados como provas ocupava três prateleiras, que iam de uma parede a outra de uma sala no Ministério Público. Nada menos do que 15 dos 22 deputados estaduais no exercício do mandato foram indiciados, sob acusação de participar do desvio de 302 milhões de reais dos cofres públicos e de cometer crimes como formação de quadrilha, estelionato, peculato, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e contra o sistema financeiro – um tour pelo Código Penal propiciado sobretudo por empréstimos fraudulentos para uso pessoal pagos com dinheiro da Assembleia, listas de funcionários-fantasmas e por aquela prática que, anos depois, seria celebrizada no plano nacional pela família Bolsonaro por meio do termo “rachadinha”.

Por causa do grande número de indiciados, o caso se transformou em uma miríade de processos, embargos, liminares, adiamentos. Como foi primeiro-secretário da mesa diretora da Assembleia Legislativa de Alagoas entre 2003 e 2006 e, portanto, dono da caneta que autorizou os desmandos, Arthur Lira é citado múltiplas vezes nas denúncias. Com outros sete deputados estaduais, ele acabou afastado do mandato por dez meses. Na esfera cível, foi condenado em dois processos, ambos por improbidade administrativa.

A primeira condenação veio em 2012, em primeira instância, por participação no desvio de 150 mil reais do caixa da Assembleia Legislativa para comprar um Pajero Full para outro deputado. Lira recorreu, e o processo subiu para o Tribunal de Justiça de Alagoas, onde está estacionado até hoje e é mantido em segredo de Justiça. A segunda condenação é de 2016. Ficou comprovado seu envolvimento em empréstimos fraudulentos no Banco Rural, contraídos para uso pessoal com a ajuda de funcionários-fantasmas. Nos termos da Lei da Ficha Limpa, Lira ficaria automaticamente impedido de se candidatar em 2018, mas uma liminar do Tribunal de Justiça de Alagoas teve efeito suspensivo – e ele acabou entrando na disputa e se elegendo. Em novembro passado, policiais federais fizeram buscas no gabinete do desembargador que assinou o despacho e salvou o pescoço de Lira, Celyrio Adamastor Tenório Accioly. O juiz está entre os investigados em um esquema para beneficiar uma empresa da área de educação, com decisões favoráveis e atrasos em julgamentos. Lira entrou com um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para tentar reverter essa condenação de 2016, alegando que nunca foi citado para se manifestar no processo.

Na esfera criminal, o processo contra Lira entrou naquele clássico fliperama enlouquecido de sucessivas discussões sobre qual seria a instância adequada para julgá-lo. Do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) subiu para o STF, depois foi parar no STJ e, em 2018, foi despachado de volta para Alagoas. Em dezembro do ano passado, bateu no muro de sempre, em que alguém decreta alguma nulidade, e desabou inteiro. O juiz Carlos Henrique Pita Duarte, da 3ª Vara Criminal de Maceió, anulou as provas colhidas pelos investigadores federais – que incluem indícios cabeludíssimos, como transferências bancárias feitas por assessores de Lira diretamente em sua conta bancária. O juiz o absolveu sumariamente. O magistrado não analisou o mérito, mas argumentou que a investigação não teve validade porque foi feita pela Justiça Federal, quando deveria ser da competência da Justiça Estadual porque tratava de fatos ocorridos na Assembleia Legislativa. O Ministério Público de Alagoas alega que o caso envolve crimes federais contra o sistema financeiro e recorreu da decisão. O recurso ainda não foi julgado.

Em meio ao farto material reunido pelos investigadores da Operação Taturana, há um documento que ficou conhecido em Maceió como Folha 108, nomenclatura que se refere à rubrica usada pelo setor de Recursos Humanos da Assembleia Legislativa de Alagoas para identificar uma folha de pagamento de gaveta, composta não por 108, mas por 128 nomes de funcionários-fantasmas – muitos deles familiares ou laranjas dos deputados investigados. Catorze anos depois, uma análise da Folha 108 mostra que a vida de Lira ainda está intrincadíssima com alguns desses espectros do passado. A saber:

O 19º nome da Folha 108 é o de Ângela Maria Gomes de Almeida, hoje mulher de Lira. Em julho deste ano, ela foi nomeada pelo governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), um dos aliados mais animados de Bolsonaro, para o cargo de secretária adjunta da representação do estado no Distrito Federal. Seu salário líquido é de 14 mil reais.

O 62º nome da lista é o de Jullyene Cristine Santos Lins, à época mulher de Lira. Ouvida pelos policiais durante a investigação, ela confirmou que estava entre os servidores que figuravam na folha de pagamento, mas não apareciam para trabalhar. À piauí, Jullyene Lins reiterou esta versão: “Nesse período, ele já tinha um relacionamento com a atual mulher e colocou na lista dos funcionários-fantasmas o meu nome e o dela. Eu ficava em casa cuidando dos meus filhos e assinava as coisas quando ele pedia.”

O 32º nome é o de Djair Marcelino da Silva. Em depoimento aos promotores da Operação Taturana, um gerente do Bradesco o apontou como o faz-tudo do esquema. Silva foi acusado de ir a uma agência do banco forçar a barra até conseguir descontar “aproximadamente dez cheques nominais” de servidores comissionados no gabinete de Lira na Assembleia Legislativa – uma rachadinha exemplar. Definido pelos que o conhecem em Alagoas como um sujeito boa-praça, que costumava atuar em trabalhos comunitários da igreja que frequentava, Silva continuou circulando no grupo de Lira, apesar da encrenca. Em 2016, foi gravado por Jullyene Lins quando a visitou para repassar um recado de Lira, dias antes do depoimento que ela daria como testemunha na Operação Taturana. “Ele pediu que eu conversasse com você, para ter cuidado no que vai responder, para que não venha a colocar mais lenha na fogueira […]. Você não é nenhuma criança, sabe o que deve dizer e o que não deve dizer”, diz ele, no áudio. Em 2018, em uma ação trabalhista movida por um empregado das fazendas do parlamentar, Silva foi apontado como “uma espécie de secretário-geral, que manda em tudo na parte burocrática do escritório do deputado Arthur Lira”. Em maio do ano passado, Silva foi nomeado secretário parlamentar no gabinete do deputado em Brasília, com salário de 7.509,50 reais.

O 128º nome é o de Wilson Cesar de Lira Santos. Primo de Lira, hoje superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Alagoas, por indicação do deputado Marx Beltrão, aquele do clã cujos membros andam se estranhando. No dia 21 de outubro passado, quinta-feira, ele se reuniu com Joãozinho, o primo de Lira que comanda a Codevasf, para combinar novas cooperações entre a estatal e o Incra.

O 50º nome é o de Jorge Ferreira Cavalcante, pai do hoje braço direito de Arthur Lira, Luciano Cavalcante. O irmão de Luciano, Carlos Jorge Ferreira Cavalcante, é superintendente em Alagoas da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). A mulher de Luciano, Glaucia Maria de Vasconcelos Cavalcante, é gerente regional na CBTU.

E a CBTU é a estatal onde Lira, de acordo com denúncia apresentada em 2018 pela Procuradoria-Geral da República, protagonizou mais uma história de cinema. O deputado é réu em um processo no STF, sob acusação de ter recebido propina de 106 mil reais em 2012, em troca de apoio para manter Francisco Colombo na presidência da CBTU. O dinheiro foi encontrado em notas espalhadas pelos bolsos do paletó, na cintura e nas meias do assessor parlamentar Jaymerson José Gomes de Amorim, quando ele tentava passar pelo raio X  do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, rumo a Brasília. De acordo com a acusação, a passagem foi paga por Lira – e a grana iria para ele.

 

Aos 52 anos, Arthur Lira é definido por alguns colegas congressistas como um sujeito mais para durão. Um dos únicos assuntos capazes de desestabilizá-lo é a pendenga judicial sem fim com a ex-mulher, com quem viveu durante dez anos. Pouco antes de ser eleito presidente da Câmara, foi visto com os olhos marejados no caminho entre um elevador e seu gabinete, depois de saber detalhes de uma entrevista em que ela reafirmava seu conjunto de denúncias. Estava preocupado com o efeito que mais esse round da briga teria no ânimo dos dois filhos e da enteada, que ficou do lado dele. Jullyene Lins diz que, na noite de 5 de novembro de 2006, quando o casal estava recém-separado, Lira apareceu em seu apartamento enfurecido, atacando-a com socos, chutes e pontapés. Ela prestou queixa das agressões e apresentou a mãe, o irmão e uma babá como testemunhas. Em seguida, entrou com processo por lesão corporal.

Em 1º de abril de 2008, Dia da Mentira, quando ainda estava afastado de sua cadeira de deputado estadual por causa da Operação Taturana, Lira foi preso em seu escritório em Maceió por uma equipe da Polícia Civil que cumpria um mandado expedido pelo Tribunal de Justiça. Saiu dirigindo o próprio carro, escoltado e sem algemas. Acusado de ameaçar um oficial de Justiça que fora notificá-lo para ser ouvido no processo movido pela ex-mulher, negou tudo. Horas depois, os colegas parlamentares da Assembleia Legislativa votaram às pressas pelo relaxamento de sua prisão. Lira foi solto. Em 2015, Jullyene Lins voltou atrás na denúncia de agressão, e o STF arquivou o processo. Em 2019, ela mudou outra vez sua versão – e passou a dizer que recuara porque o ex-marido ameaçava tirar a guarda de seus filhos.

Nas respostas que divulga toda vez que o caso ressuscita, Lira reclama que esse é um doloroso assunto familiar que volta à tona sempre que algo de importante está prestes a acontecer em sua carreira. Jullyene Lins responde que é procurada por jornalistas nos momentos em que o ex-marido vira pauta e não vê razões para não falar. Lira retruca que ela é uma “vigarista profissional” e tenta chantageá-lo. Por causa dessas declarações, ela chegou a processá-lo no STF, mas perdeu. Do ponto de vista do interesse público, o que há de digno de nota no imbróglio é que, entre um lance e outro, Jullyene Lins vai fazendo acusações que têm relação com o dinheiro do povo, como a de que o deputado ocultaria patrimônio milionário amealhado por meio de uma rede de propinas e de desvios feitos por funcionários-fantasmas.

Hoje o ex-casal segue em disputa em dois processos na esfera cível. Em um deles, a ex-mulher pede a partilha de bens. Em outro, pensões alimentícias atrasadas. Ambos correm em segredo de Justiça e são cheios de reviravoltas bizarras – como o de uma juíza que, depois de anos à frente do caso, pediu afastamento, alegando questões de “foro íntimo”, e o de um ex-advogado de Jullyene Lins, que ela acusou de perder deliberadamente os prazos processuais e depois disso ter sua esposa nomeada para a assessoria de um parlamentar em Brasília. Que parlamentar? Arthur Lira. A mulher do advogado está no emprego até hoje.

Um dos últimos lances eletrizantes do caso aconteceu em 2018, quando a defesa de Lira anexou aos autos uma declaração em que a ex-mulher afirma ter recebido 499 920 reais para quitar pensões em atraso. O recibo tem data de 2013, mas foi registrado em cartório em 2018. Jullyene Lins diz que assinou o papel, mas nunca viu a cor do dinheiro. A defesa de Lira assegura que ela recebeu e gastou tudo. Mas, agora, os advogados dela pretendem chamar a atenção para outro fato: o de que esses valores não aparecem nas declarações de bens que o parlamentar entregou à Justiça Eleitoral nas eleições que disputou, o que, dizem, caracterizaria “um crime em curso”.

Um terceiro processo, na área trabalhista, tira o sono do ex-casal. Dessa vez foi movido por ex-funcionários de uma empresa chamada Petnorte Indústria e Comércio de Embalagens Plásticas. “Ele abriu essa fábrica e colocou no meu nome e no da mulher de outro deputado. A empresa faliu, e a minha vida virou um inferno de dívidas trabalhistas”, diz Jullyene Lins.

Enquanto seguia o vaivém dessa montanha de processos que sempre esbarra em dinheiro público, Lira virou presidente da Câmara – e conseguiu acelerar a flexibilização da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada na Câmara em 7 de outubro. Entre outros pontos, a versão sancionada em 26 de outubro pelo presidente Bolsonaro define que as ações de improbidade prescrevem após oito anos do fato, ou, em casos de crimes permanentes (que continuaram a ser praticados ao longo do tempo), do dia em que cessou a prática. É uma excelente notícia para Lira. No caso dele, os crimes de improbidade de que é acusado ocorreram entre 2003 e 2006. Já se passaram mais de oito anos. Outro trecho da nova lei diz que um político só pode perder o mandato se ainda ocupar o cargo em que praticou as irregularidades – mais um ponto que pode favorecê-lo em cheio.

 

Bloco que reúne pelo menos nove partidos, o Centrão é uma confederação heterogênea de congressistas. São parlamentares com sotaques, gravatas e origens políticas muito diferentes, mas com algumas características em comum – entre elas, a gula por cargos estratégicos, o costume de pedir sigilo de fonte em conversas com jornalistas antes mesmo de dizer “bom dia” e o uso de uma nuvem semântica cujo termo que mais aparece é “traição”.

Em conversas com os parlamentares do bloco, passam flutuando pelo ar frases como:

“Arthur está traindo Valdemar na escolha da diretoria toda do Banco do Nordeste.” A referência é a Valdemar Costa Neto, chefão do PL e ex-mensalão.

“O Arthur está doido atrás dos traidores da PEC do MP”, em alusão à turma que fez catimba na hora da votação da emenda constitucional que instituiria controle maior sobre o Ministério Público.

“Foi por medo de ser traído pelo Arthur que o Rodrigo fez aliança com o PSL em 2019.” A menção se refere ao deputado Rodrigo Maia, então presidente da Câmara.

“Arthur vai trair o Bolsonaro, pode escrever.” Essa é de uma ex-aliada do deputado, que fala ajeitando os cabelos.

“Todo mundo passou a mão na bunda de todo mundo.” A frase, dita por um político alagoano, alude à apoteose de rasteiras, ocorrida na eleição de Lira para a presidência da Câmara. Ele completa: “O nome do PP deveria ser MB [Mão na Bunda].”

A palavra que danou a alma de Judas também é muito frequente no vocabulário do presidente da Câmara. Dia desses, por exemplo, voltou a circular um vídeo que ele divulgou nas eleições de 2018, no qual aparece agastado com Renan Calheiros, que chamara Biu de Lira de “velhaco”. Com um sorriso cheio de picardia, na varanda de seu apartamento na Praia de Ponta Verde, Lira defende o pai no vídeo: “Velhaco? Velhaco é quem paga amante com dinheiro de empreiteira envolvida na Lava Jato. Renan já traiu Collor, já traiu FHC, já traiu Dilma, já traiu Lula, já traiu Temer, é um professor na arte de mentir e de enganar.”

Nesse teatro de sombras, Lira pode até ser acusado de trair um ou outro integrante do Centrão, mas jamais de trair a agenda do Centrão. “Todos os atos dele na presidência mostram que Lira não está olhando só para Alagoas, está atuando também para o Centrão. O alinhamento de nomes como o de Ciro Nogueira [ministro da Casa Civil] e Flávia Arruda [secretária de governo] para tornar o gabinete da Presidência um lugar de intermediação direta das demandas do Centrão é uma das estratégias desse grupo para fazer o governo andar. Mas andar para o Centrão”, analisa o cientista político Ranulfo Paranhos. De modo geral, é uma lealdade fácil de levar adiante porque os temas caros ao bloco também falam ao coração de Lira.

Além de obter vantagens visíveis em assuntos cascudos como o “orçamento secreto” e a flexibilização da Lei de Improbidade Administrativa, Lira é hoje também ruralista – faz parte daquela turma que aprovou às pressas, de madrugada, o projeto de lei (PL) nº 3729 que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental. Entre outras coisas, dispensa de licenciamento atividades rurais como a pecuária extensiva, semi-intensiva e de pequeno porte. Também prevê o “licenciamento autodeclaratório”, ou seja, basta que o próprio pecuarista declare que está respeitando as regras ambientais para que possa seguir em frente.

 

Opresidente da Câmara nasceu, cresceu e construiu sua carreira política em Maceió, perto de um mar com vários tons de verde. Nesse caminho, viu o pai, político de carreira, ir de pinto a ganso do ponto de vista patrimonial, amealhando punhados fartos de terra. À medida que a experiência de Arthur Lira em cargos eletivos avançava, propriedades rurais foram também aparecendo em seu rol de bens declarados à Justiça Eleitoral. Na última relação, apresentada na campanha de 2018, ele lista parte de um sítio em Pilar, na Região Metropolitana de Maceió, e metade de duas fazendas, a Pedras e a Santa Maria, ambas na cidade de São Sebastião, no Agreste de Alagoas, ambas doadas pelo pai.

Outras duas propriedades rurais são tão difíceis de rastrear como terrenos na Lua. A Fazenda Estrela, em Quipapá, Pernambuco, apareceu pela primeira vez em 2010 na declaração de bens de Biu de Lira à Justiça Eleitoral. Depois sumiu, e voltou em 2020. Mas já foi associada a Arthur Lira. Em depoimento à Polícia Federal, em 2014, um operador financeiro conhecido como Ventola explicou uma dinheirama que transitava entre a sua conta-corrente e a do deputado assegurando que, na verdade, arrendava a Estrela para ele. O argumento não convenceu e foi parar nas acusações contra Lira no processo conhecido como “quadrilhão do PP”, que apontava desvios de recursos na Petrobras e foi arquivado em março deste ano pelo STF.

A Fazenda Taquari, também em Quipapá, é outro enrosco. Constou da declaração de bens entregue por Arthur Lira nas eleições de 2010. Em 2014, foi citada de novo, desta vez transformada em 300 mil reais, justificados com a frase: “Crédito com Eduardo Freire B. Leite referente à devolução da Fazenda Taquari.” Leite é ninguém menos do que o enroladíssimo Ventola. Em 2016, ele foi preso em uma operação que investigou a compra pelo PSB do avião onde morreu, em um acidente, o presidenciável Eduardo Campos. E, por fim, apareceu como delator-chave no indiciamento, em junho passado, de Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo Bolsonaro no Senado e acusado de ter recebido propina de empreiteiras.

Nos negócios e nos hábitos, Arthur Lira se transformou em um homem ligado à agenda do agronegócio. Frequenta ambientes de criadores de gado alagoanos, como a Fazenda Recanto, na cidade de Viçosa. Costuma participar de leilões de cavalos. Adora vaquejadas, atividade em que, basicamente, dois vaqueiros correm atrás de um boi para derrubá-lo pelo rabo. Desde 1999, mantém em suas terras na cidade de Pilar o Parque e Haras Arthur Filho (nome de um de seus filhos). Durante dezessete anos, organizou ali uma competição que fazia parte do Circuito das Vaquejadas. Junto com dois sócios, cobrava ingresso do público, vendia patrocínio, apresentava shows de bandas conhecidas na região e distribuía prêmios em dinheiro aos ganhadores.

Por isso, quando esteve à frente da liderança do PP na Câmara, foi entusiasta da PEC 304, chamada de PEC da Vaquejada, que determina que “as práticas desportivas que utilizem animais não são cruéis se forem registradas como manifestações culturais e bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro”. Durante a tramitação da proposta, gravou vídeos conclamando os defensores da vaguejada a fazer manifestações diante do Congresso. “Todos vocês sabem do meu envolvimento com esse esporte, há quanto tempo eu pratico, quantos eventos eu já fiz. É preciso que todo mundo se mobilize, todos os vaqueiros, os donos de parque, os donos de haras, quem ama cavalo, quem ama vaquejada e quem ama a cultura nordestina. Venha pra Brasília.” Em alguns momentos, como ocorreu em novembro de 2016, a capital federal se encheu de vaqueiros com roupas de couro e berrantes que defendiam a atividade. O texto foi promulgado pelo Senado em 2017, mas é hoje objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade no STF, movida por entidades de defesa dos animais.

Acumular terras durante uma carreira política é expediente comum em estados agrários como Alagoas. Um pouco como demonstração de poder, um pouco para usá-las também como lastro – sempre que os bancos abrem linhas de crédito, os donos de fazendas correm para fazer empréstimos. Com o pai, Arthur Lira já enfrentou tensão no campo por causa deste último costume.

No dia 3 de maio de 2008, cerca de trinta famílias de agricultores entraram com objetos pessoais, enxadas, facões e lonas pretas de plástico na Fazenda Boa Esperança – uma área de 580 mil hectares na zona rural do município de Major Izidoro, no semiárido alagoano. Não foi uma invasão, mas uma ação combinada entre o então dono do lugar, Benedito de Lira, e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município. A ideia de arranque era que fosse uma operação boa para todo mundo. A fazenda, improdutiva, havia virado uma batata quente nas mãos dos Lira porque tinha 4 milhões de reais em dívidas com o Banco do Nordeste. Com a presença dos camponeses lá dentro, seria mais fácil tentar obter uma das modalidades de compra feitas pelo Incra, como definida pelo decreto nº 433/1992. Nesse caso, os próprios donos oferecem a terra e, se depois de uma vistoria os técnicos avaliam que há interesse nela, o Incra a compra pelo valor de mercado para disponibilizá-la para assentamentos. E, se a área está no centro de alguma tensão social, com trabalhadores rurais reivindicando o local improdutivo, as chances de a venda para o Incra prosperar aumentam.

“Fui procurado pelo pessoal do sindicato rural, que me disse que Benedito de Lira tinha deixado que as famílias entrassem. Avaliamos a fazenda e começamos as negociações”, lembra Gilberto Coutinho Freire, na época superintendente regional do Incra em Alagoas. “O Arthur Lira foi indicado pelo pai para tratar disso comigo. A conversa estava tão adiantada que perguntei: posso ir ao Banco do Nordeste negociar a dívida de vocês? Ele disse: ‘Sim.’ Então comecei a encaminhar as coisas para que o débito da fazenda fosse pago com o dinheiro do processo de compra e venda.”

Depois que as dívidas foram negociadas, Arthur Lira mudou de ideia: encontrou um comprador para a Fazenda Boa Esperança e pediu que os camponeses saíssem imediatamente. O Incra não tinha como obrigá-lo a prosseguir, porque não se tratava de uma desapropriação. E os camponeses, que a essa altura já viviam ali criando animais e cultivando uma pequena plantação de palmas e uma horta à beira de um riacho, avisaram que não iriam embora. O impasse virou um conflito agrário – que chegou a ter ação de despejo das famílias e polícia indo até os limites da fazenda. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) começou a acompanhar o caso e conseguiu, na ouvidoria nacional do Incra, a suspensão do despejo.

Entre uma audiência e outra na 29ª Vara Cível de Maceió, que trata de conflitos agrários, os camponeses fizeram relatos de que estavam sofrendo ameaça de capangas que, alojados em antigas casas de moradores da fazenda, rondavam a área sem camisa, mostrando armas na cintura. O caso rendeu quatro audiências em que Arthur Lira sentou-se com o juiz e o promotor agrários, policiais militares do Grupo de Gerenciamento de Crises, representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário, coordenadores da CPT, o ouvidor agrário nacional e o superintendente regional do Incra. “Três audiências foram tranquilas, mas a última foi muito tensa, porque ele queria que as famílias saíssem logo para que pudesse vender as terras. Nessa ele foi áspero em palavras, me chamava de mentiroso, dizia que não havia feito acordo nenhum, um negócio terrível”, diz Coutinho.

O impasse se resolveu quando um proprietário da região, que administrava os bens de uma viúva, apareceu oferecendo para o Incra uma fazenda próxima dali, a São Felix. Em 2010, as 28 famílias que estavam nas terras de Lira foram transferidas em um ônibus para a São Felix e, dois anos depois, oficialmente assentadas. Mas em 2014 a Boa Esperança ainda aparecia na declaração de bens entregue pelo pai de Lira ao TSE, quando se candidatou ao governo de Alagoas.

Em 2018, o assentamento de São Felix acabou recebendo um trator por meio de emendas parlamentares de Benedito de Lira, liberadas via Codevasf. “Aí a gente não sabia se ria ou se chorava”, brinca uma das assentadas.