Os brasileiros, servos por dívida

Resumidamente, Graeber conceitua a dívida como algo que vai muito além do aspecto monetário que, nos dias de hoje, normalmente lhe atribuímos.

Os brasileiros, servos por dívida

Os brasileiros, servos por dívida

Daniel S. Kosinski·

 

No livro Debt: the first 5.000 years, o antropólogo David Graeber apresenta um magnífico estudo sobre o fenômeno da dívida, transpassando desde as suas origens remotas até o surgimento e o funcionamento do capitalismo contemporâneo.

Resumidamente, Graeber conceitua a dívida como algo que vai muito além do aspecto monetário que, nos dias de hoje, normalmente lhe atribuímos. Trata-se de uma instituição social profundamente embebida em valores morais como honra e desonra, confiança – daí a palavra crédito, a sua contrapartida – e desconfiança, danação e redenção. Abordando o seu significado antropológico, o autor revela como, de forma quase universal nas culturas de diversas regiões do planeta e diferentes tempos históricos, os sujeitos considerados devedores têm o seu status social reduzido, assim como, frequentemente, os seus familiares e descendentes. Dessa forma, os devedores caem em relações de subordinação e dependência em relação àqueles a quem devem. Enquanto durarem esses vínculos, isto é, enquanto suas dívidas não forem consideradas canceladas, são impelidos a lhes fornecer coisas, como bens e propriedades, prestar serviços ou alienar o seu trabalho. Em casos mais extremos, mas em nada incomuns, são obrigados a ceder até mesmo os seus corpos, a guarda de parentes e filhos, ou mesmo as suas próprias vidas.

Em suma, conforme Graeber mostra, a dívida é, antes de tudo, um instrumento antiquíssimo e extremamente poderoso de dominação. Era assim que, por exemplo, na alta Antiguidade mesopotâmica, de tempos em tempos os camponeses acabavam tão endividados com os senhores que lhes arrendavam terras e instrumentos de trabalho que, incapazes de saldar suas dívidas, acabavam reduzidos à servidão.

Então, oprimidos, organizavam rebeliões e, quando tinham êxito, fugiam, deixando as cidades e os campos desertos. Quando isso acontecia, as colheitas ficavam prejudicadas, os reis não conseguiam recolher impostos ou recrutar soldados para os seus exércitos. Ou seja, a sociedade parava, se desfazia.

Assim, a única solução que os reis tinham para fazer as sociedades que governavam voltarem a funcionar era anular as dívidas existentes, ou ao menos parte delas, através de decretos. Frequentemente, essa era a sua primeira ação quando assumiam seus tronos, demonstrando magnanimidade para com os seus súditos e libertando a população dos vínculos de servidão nos quais havia caído. Com isso, “zeravam” as relações sociais, permitindo aos camponeses retomar suas vidas e estabelecerem novos vínculos.

Milênios depois, em pleno século XXI, a situação da maior parte dos brasileiros remete àqueles tempos longínquos. Segundo pesquisa realizada há poucos dias pelo Serasa, nada menos que 75% das famílias brasileiras estão endividadas nesse momento, um número recorde. A média dessas dívidas é de 4 mil reais, quase duas vezes maior que o rendimento médio real do trabalhador brasileiro, segundo o IBGE. O valor também significa que a vasta maioria dessas dívidas não foi contraída para adquirir patrimônio, apenas para a realização de gastos correntes como alimentação.

Além disso, 88% dos endividados entrevistados afirmaram sentir “muita vergonha” da sua condição. Para 76% deles, ela prejudica as suas atividades profissionais; para 64%, os relacionamentos familiares; para 62%, seus relacionamentos afetivos; e para 84%, a sua vida social como um todo. Um dos entrevistados falou do “orgulho próprio de querer pagar aquela dívida e recomeçar”. Já uma entrevistada disse que “dívida agora só onde o meu passo alcança. Se não der para pagar, eu não faço”. São dados e afirmações que convergem integralmente com as perspectivas de Graeber. Cinco mil anos depois dos primeiros registros escritos de dívidas, o endividamento ainda é visto como uma desonra e ser devedor implica numa posição de inferiorização e submissão. A dívida atua como uma força disciplinadora, constrangedora da liberdade de ação e escolha dos endividados.

É evidente que o quadro encontrado pela pesquisa não pode nos surpreender. Há décadas, convivemos com juros aos consumidores em níveis absurdamente estratosféricos. Os do cartão de crédito e do cheque especial, os mais demandados pelos extratos de baixa renda que sobrevivem no limite dos seus recursos, estão na casa das centenas por cento ao ano. Segundo levantamento feito em 2018 pela mesma Serasa, a média da taxa do rotativo do cartão de crédito no Brasil era de 352,76% ao ano contra menos de 50% em outros países latino-americanos. Em setembro de 2021, o Banco Central do Brasil apontou taxas médias anuais de 339,5% no rotativo do cartão de crédito – alta de 30,1% em 12 meses –; 168,7% no parcelado do cartão de crédito; 128,6% no cheque especial e 77,4% no crédito pessoal não consignado. Já a taxa do crédito pessoal consignado do setor privado era de 31%; e a para aquisição de veículos, 23,9%.

Com juros como esses, qualquer dívida contraída, ainda que pequena, pode se tornar rapidamente incontrolável. O devedor poderá pagar o montante inicial, ou muito mais que isso, que continuará endividado ou se tornará cada vez mais. No financiamento imobiliário, as taxas atualmente praticadas pelos principais bancos, na faixa de 8 a 9% ao ano mais TR, significam que o contratante do empréstimo pagará em juros, em 20 ou 30 anos de financiamento, várias vezes o valor do imóvel adquirido.

Vale registrarmos que não fez nenhuma diferença significativa que a taxa básica de juros, a SELIC, tenha permanecido em seus níveis mais baixos nos últimos dois anos. Levar a SELIC a mínimas históricas era a solução mágica vendida pelos “especialistas” da grande mídia para reduzir os juros aos consumidores a patamares decentes desde quando o governo Lula, por muitos considerado “progressista”, praticava as taxas de juros reais mais elevadas do mundo. Mas ao mesmo tempo em que fazia isso, Lula, buscando ampliar o fornecimento de crédito à população e preferindo alívios paliativos e setoriais às necessárias soluções estruturais como lhe foi típico, aprovou o crédito consignado na folha salarial. Num primeiro momento, isso permitiu a milhões de brasileiros elevar sua capacidade de consumo e mesmo financiar pequenos empreendimentos. Todavia, as altíssimas taxas de juros vigentes resultaram em alta probabilidade de inadimplência futura e puseram em risco a sustentabilidade desse endividamento no longo prazo.

Sua sucessora Dilma Rousseff, numa iniciativa corajosa, vislumbrou enfrentar a agiotagem usando os bancos públicos como instrumento para forçar os juros para baixo. Porém, conforme mostra o cientista político André Singer no livro “O Lulismo em crise”, sua heresia fez com que sofresse uma oposição implacável da mídia, que a acusou de estar “interferindo” indevidamente sobre o “mercado”. Todo o capital também se mobilizou contra ela, até mesmo a sua fração dita “industrial”, em tese a principal beneficiária de juros decentes e que há tempos os demandava. Depois disso entramos nessa crise da qual até hoje não saímos, Dilma sofreu um golpe parlamentar, milhões perderam seus empregos e rendas e tiveram, cada vez mais, que se endividar.

Na campanha eleitoral de 2018, Ciro Gomes destacou-se por propor “tirar os brasileiros do SPC” mediante um arranjo de refinanciamento público das dívidas. Seu objetivo era fornecer créditos sob taxas de juros muito inferiores às praticadas regulamente para que a população pudesse liquidar seus débitos anteriores em favor dos novos, com juros e montantes reduzidos. Assim, pretendia liberar bilhões de reais que a população entregaria os bancos na forma de encargos financeiros para fomentar o consumo e investimentos. De certa forma, Ciro quis agir como o rei mesopotâmico que usava os instrumentos à sua disposição visando libertar a população dos seus fardos e permiti-la voltar a trabalhar e produzir. Por essa audácia, é claro, também foi muito criticado pela mídia, combatido e até ridicularizado por alguns.

 

Em resumo, se denunciar o preço extorsivo do dinheiro no Brasil é uma heresia, se dispor a reduzi-lo é praticamente uma sentença de morte política. Não há, nem de longe, bem ou serviço nesse país que seja tão ou mais caro que o dinheiro para o cidadão comum. No Brasil, sob a chancela das autoridades monetárias, vigora um regime de agiotagem legalizada praticada pelos bancos oficiais, públicos e privados. Quais as explicações para isso? A memória inflacionária? O oligopólio e a falta de concorrência entre os bancos?

Tecnicalidades à parte, prefiro recorrer às explicações sociológicas. O preço proibitivo do dinheiro no Brasil é a forma mais eficaz de manter qualquer perspectiva de aquisição da propriedade distante de 80 ou 90% da população. Dessa forma, só é capaz de constituir patrimônio quem tem fluxos de renda suficientemente elevados para entesourar montantes razoáveis, evitando ao máximo obter empréstimos. É, em suma, um claro instrumento de domínio de classe, de manutenção do poder das oligarquias proprietárias sobre a população despossuída.
O mais impressionante nisso tudo é que esse malicioso instrumento de dominação seja representado pela Economia apenas como um “meio de troca” neutro, apolítico. Já em 1886, num curto parágrafo de What Then Must We Do?, o escritor russo Leon Tolstoi arrematou a questão:

“Li sobre economia política e posso estar firmemente convencido de que todos os homens são livres e que o dinheiro não ocasiona escravidão. Os camponeses sabem há muito tempo que ‘um rublo bate mais forte que um porrete’. Mas os economistas não querem ver isso. Dizer que o dinheiro não causa escravidão é como dizer há meio século que a Lei dos Servos não produzia escravidão. Os economistas dizem que apesar do fato de que a posse do dinheiro permite a um homem escravizar o outro, o dinheiro é um meio de troca inofensivo. Porque alguém não deveria ter dito há meio século que apesar do fato de que a Lei dos Servos podia escravizar um homem, a Lei não era um meio de escravização, mas um meio inofensivo de serviço mútuo? […] Se essa pseudociência, a economia política, não estivesse ocupada […] com inventar desculpas para a violência, ela não poderia evitar tomar nota do estranho fato de que a distribuição da riqueza – a circunstância de que algumas pessoas são privadas de terra e capital e de que alguns homens escravizam outros – é toda dependente do dinheiro, e que apenas por meio do dinheiro um grupo de homens explora o trabalho de outros, isto é, escraviza outros.”

Quão infelizes esses ¾ de brasileiros endividados, levados a essa condição que os envergonha e subordina por uma sociedade sorrateiramente perversa e excludente. Em pleno século XXI, têm tudo para permanecerem, ainda por um longo período, à espera de um rei mesopotâmico que os liberte da sua servidão.