Anotações para uma palestra sobre a democracia no Brasil
“… nós estamos, por enquanto, apenas numa democracia política, quando os trabalhadores a têm que completar com a democracia econômica. Getulio Vargas.
Anotações para uma palestra sobre a democracia no Brasil
Por Hora do Povo Publicado em 19 de dezembro de 2021
Em 1954, o povo, no Rio de Janeiro, se despede de seu líder, Getúlio Vargas
O texto abaixo foi a base para a participação do autor na mesa-redonda “Construção de uma nação democrática, próspera e solidária”, terceiro evento do Seminário O Nacional-Desenvolvimentismo e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, promovido pela Fundação Maurício Grabois. Desta mesa-redonda, realizada a 29 de março de 2021, participaram, também, o governador do Maranhão, Flávio Dino, e o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. O vídeo completo, com todas as intervenções, pode ser assistido em https://www.youtube.com/watch?v=J9WPVcjf4OQ.
CARLOS LOPES
Meus amigos, o tema da democracia, mais ainda nos limites e na extensão em que os organizadores do nosso Seminário estabeleceram, é imenso.
Não sei se tenho capacidade para abordar o conjunto. Prefiro fazer algumas observações que possam contribuir com nossa discussão. Deixo claro que essas são conclusões que devem estar, sempre, submetidas à crítica dos companheiros.
Como nosso tema pode ser resumido nas relações entre nacional-desenvolvimentismo e democracia, começo com duas citações, ambas do presidente Getúlio Vargas, e ambas extraídas de discursos pronunciados no segundo semestre de 1946, quando Getúlio, já fora da Presidência da República, se preparava para assumir a cadeira de senador na Assembleia Constituinte, para a qual fora eleito em dois Estados, além de deputado por sete Estados, tal como permitia a legislação eleitoral da época.
O primeiro discurso foi proferido em Porto Alegre, a 2 de setembro de 1946, na sede local do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, que Getúlio fundara.
Disse, então, Vargas:
“… nós estamos, por enquanto, apenas numa democracia política, quando os trabalhadores a têm que completar com a democracia econômica.
“A democracia política e a econômica a que estamos assistindo no momento são ainda os vestígios (…) do velho liberalismo burguês, fora da época e inteiramente fora dos ensinamentos da política moderna.
“Por isso, nós estamos, em matéria política, no regime dos intermediários que, eleitos pelos partidos para um determinado fim e programa a executar, fazem coalizões e reuniões políticas à revelia do povo.
“Os intermediários da economia são os que, em vez de trabalharem pelo bem da comunidade, procuram restabelecer os velhos processos da democracia liberal burguesa, destruindo a economia dirigida, querendo acabar com as autarquias e os institutos que amparavam produtores e consumidores, a fim de que, oprimidos os produtores e desamparados os consumidores, erga-se diante deles o intermediário, que faz o povo oscilar entre a fila e o câmbio negro.
“A democracia econômica não se pode organizar sem o prévio planejamento. Este é que se tem de realizar, não para a economia da coletividade ser desfrutada por meia dúzia de privilegiados. Esse planejamento econômico é que coloca a produção subordinada aos interesses da comunidade e não aos das minorias. Por conseguinte, nós todos devemos nos empenhar em trabalhar para isso, para a organização dessa democracia planificada, a fim de que ela constitua a defesa dos trabalhadores.
“É nessa democracia que me alisto convosco, para conseguirmos realizar o engrandecimento do Brasil e a prosperidade de todos os brasileiros.”
A segunda citação é mais explícita ainda.
É tirada de um discurso, também pronunciado em Porto Alegre, a 29 de novembro de 1946, em um comício da campanha do candidato do PTB ao governo do Rio Grande do Sul, Alberto Pasqualini.
“Impera no Brasil essa democracia capitalista, comodamente instalada na vida, que não sente a desgraça dos que sofrem e não percebem, às vezes, nem mesmo o indispensável para viver.
“Essa democracia facilita o ambiente propício para a criação dos trustes e monopólios, das negociatas e do câmbio negro, que exploram a miséria do povo. Tira o que foi cedido ao Estado para entregar ao monopólio de empresas particulares.
“Ou a democracia capitalista, compreendendo a gravidade do momento, abre mão de suas vantagens e privilégios, facilitando a evolução para o socialismo, ou a luta se travará com os espoliados, que constituem a grande maioria, numa conturbação de resultados imprevisíveis para o futuro.
“Essa espécie de democracia é como uma velha árvore coberta de musgos e folhas secas. O povo um dia pode sacudi-la com o vendaval de sua cólera, para fazê-la reverdecer em nova primavera, cheia de flores e de frutos.
(…)
“A velha democracia liberal e capitalista está em franco declínio porque tem seu fundamento na desigualdade. A ela pertencem, repito, vários partidos com o rótulo diferente e a mesma substância.
“A outra é a democracia socialista, a democracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. Por ela combaterei em benefício da coletividade.”
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Getúlio foi, naturalmente, a principal figura do nacional-desenvolvimentismo inaugurado com a Revolução de 30.
Não vou entrar, exceto quando for inteiramente inevitável, nos aspectos estritamente econômicos desse período histórico – nem na atualização das diretrizes de política econômica.
Outros palestrantes já o fizeram, em parte, e outros irão fazê-lo em mesas que ainda não aconteceram.
Nosso tema, aqui, é a questão da democracia.
Portanto, permitam-me resumir o que o presidente Vargas disse nos trechos acima:
1º) A democracia política sem democracia econômica é uma democracia muito limitada.
2º) A democracia no Brasil – ele estava em 1946, mas é evidente que isso pode ser extensivo a períodos posteriores da nossa História -, a democracia no Brasil, tanto do ponto de vista político quanto econômico, eram os “vestígios” do antiquado e superado liberalismo burguês.
3º) Esse liberalismo burguês era o regime dos intermediários na política, o regime das coalizões sem princípio, com o objetivo de manter-se no poder à custa do povo. Getúlio não está se referindo às coalizões em geral, evidentemente, mas àquelas que sacrificam os interesses do povo e do país.
4º) Na economia, essa democracia também era o regime dos intermediários, dos atravessadores improdutivos, que queriam destruir a economia planificada, ou seja, o que havia de planejamento estatal na economia, em especial, as estatais e os órgãos de planejamento tais como os conselhos e autarquias que existiam no primeiro governo Vargas.
5º) O planejamento, a planificação, portanto, a ação econômica do Estado, é uma premissa da democracia econômica, para que a produção seja colocada a serviço da coletividade, da maioria da população. Por isto, a “democracia planificada” é a maior defesa dos trabalhadores.
6º) A democracia capitalista é o ambiente propício para os monopólios, os cartéis, a circulação de propinas e a agiotagem, que transferem recursos do povo, recursos que estão em poder do Estado, para mãos privadas.
7º) A decadência da democracia liberal e capitalista é devido a que ela está baseada na desigualdade.
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As citações que fizemos, mostram, portanto, a que nível alto de consciência Getúlio chegou, sobre a questão da democracia, a partir do que Álvaro Vieira Pinto chamou “ideologia do desenvolvimento nacional” – o que o ISEB, dirigido pelo mesmo pensador, e por Nelson Werneck Sodré, consagraria como “nacional-desenvolvimentismo”.
Basta frisar que um não marxista, como era o caso do presidente Vargas, chegou a conclusões muito próximas dos marxistas – especialmente do próprio Marx e de Lenin.
Porém, cabe a pergunta: isso quer dizer que Getúlio estivesse propondo que as mudanças, as transformações revolucionárias no Brasil, naquele momento, já tivessem um caráter socialista?
Evidentemente, não.
A prova é a própria ação do seu segundo governo, posterior aos discursos que citamos.
Não há dúvida de que as transformações propostas nas ações e nos projetos do segundo governo Vargas – dos quais a Petrobrás é uma espécie de sumário do plano geral – estão no campo nacional e democrático, ou, se quisermos ser mais exatos, no campo nacional, democrático e popular.
Esta última precisão, em que a palavra popular parece redundante em relação à palavra democrática – pois, afinal, democracia não é o poder do povo? – é necessária pela razão que o próprio Getúlio frisou: para distinguir uma democracia que é apenas uma coleção de vestígios do liberalismo burguês de outra democracia, que está a caminho da democracia socialista, embora não seja, ainda, a democracia socialista.
Em suma, voltando outra vez ao segundo governo de Getúlio, é evidente que as transformações propostas por ele não foram e não são transformações socialistas, mas transformações que tinham por objetivo o desenvolvimento autônomo do país, a independência, a soberania dos brasileiros sobre a sua terra e a sua própria História.
Ou seja, são mudanças ainda no campo do capitalismo, cujo centro é o rompimento com as relações de subordinação do Brasil em relação aos centros imperialistas, em especial ao principal centro imperialista, que naquele momento, após a II Guerra Mundial, se localiza nos Estados Unidos.
O que isso tem a ver com a democracia?
Os acontecimentos que conduziram ao martírio de Getúlio em 24 de agosto de 1954, e o próprio martírio do presidente, assim como os acontecimentos que o sucederam, mostraram de uma forma tão eloquente, tão insofismável, que quase são dispensáveis outros comentários.
Apenas gostaria de sublinhar aqui o óbvio: a subordinação externa do nosso país ao imperialismo é um entrave à democracia interna, na medida em que a interferência estrangeira restringe o poder dos naturais de uma colônia, de uma semi-colônia ou de um país dependente.
Em uma discussão ocorrida há muito tempo, Cláudio Campos comparou a nossa situação, a situação do Brasil, à de um país ocupado militarmente por outro.
A diferença, evidentemente, é que a ocupação do Brasil não é feita por forças militares, tais como às alemãs na França e demais países ocupados pelo imperialismo alemão na 2ª Guerra.
A ocupação do Brasil é feita por forças econômicas e por agentes políticos internos do imperialismo.
Mas, num caso ou no outro, isso constitui uma restrição à democracia dentro do país.
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Entretanto, ao nos concentrar nas concepções de Getúlio Vargas, citamos sobretudo os conceitos que ele emitiu claramente após o seu primeiro governo.
Mas, como a questão da democracia se colocou antes, no primeiro governo Getúlio – e, em geral, sucintamente, na História do Brasil?
Não existe, pelo menos entre nós, dúvida sobre o avanço democrático representado pela Revolução de 30 em relação ao regime oligárquico, ou seja, em relação à República Velha.
O período que vai de novembro de 1930 até novembro de 1937, que inclui a derrota da contrarrevolução de 1932, as eleições de 1933, a Constituinte de 1934, o voto das mulheres e a Justiça Eleitoral, não está sujeito a contestações em nossa historiografia, do ponto de vista da ampliação da democracia.
Não estou me referindo, aqui, a algumas teorias historiográficas que operam um contorcionismo brutal ao negar o caráter progressista da Revolução de 30 – refletindo, no fundo, o ponto de vista das oligarquias derrotadas em 1930, ainda que, às vezes, com uma capa supostamente “de esquerda”.
Estou me referindo ao ponto de vista dos comunistas e nacionalistas-trabalhistas, expresso já há algum tempo.
Porém, se não há dúvidas ou restam poucas dúvidas sobre o período que vai de novembro de 1930 até novembro de 1937, há dúvidas (para dizer o mínimo) em relação ao período seguinte, conhecido como “Estado Novo”, que vai de novembro de 1937 até 1945 – quando, segundo um autor tão respeitável quanto Barbosa Lima Sobrinho, o próprio Getúlio iniciou as mudanças que originariam o regime da Constituinte de 1946, na qual o nosso partido teve participação destacada.
Provavelmente, não existe período da História brasileira mais mal compreendido e mais difamado do que o Estado Novo, o que se explica pelas campanhas reacionárias que foram movidas, em seguida, contra Getúlio e a Era Vargas, campanhas que atingiram não somente o que se chama, habitualmente, de “opinião pública” – que geralmente é apenas a “opinião publicada” – mas, inclusive, a academia.
No entanto, o Estado Novo foi o período em que o Brasil concretamente arrancou para a industrialização, com a implantação da indústria de base – a instalação da primeira grande siderúrgica, a Companhia Siderúrgica Nacional; a estatização da Vale do Rio Doce; a construção da Companhia Nacional de Álcalis; a nacionalização das reservas petrolíferas – e a dinamização do mercado interno, o aumento de renda da população, que começara antes, mas se firmou com a CLT, de 1943.
Somente para destacar um aspecto: o salário mínimo foi instituído em maio de 1938. É, portanto, uma herança – ou, melhor, uma conquista – do Estado Novo, e, evidentemente, uma conquista popular.
Como não tenho tempo, aqui, para desenvolver o tema, sobre a importância econômica do Estado Novo, aconselho aos amigos, que se interessarem pelo assunto, o livro de Sônia Draibe, “Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil, 1930-1960”.
Aqui, o importante é a relação dessas tarefas econômicas com a questão da democracia no Estado Novo.
Começo pela questão que me parece mais nevrálgica para nós: não foi para reprimir os comunistas que o Estado Novo foi decretado a 10 de novembro de 1937.
Alguns companheiros, na mesa anterior, já se referiram, aqui neste nosso Seminário, a nossos erros em 1930, ao não apoiar a Revolução, e em 1935, ao considerar o governo Getúlio como inimigo no campo do fascismo.
Especialmente, lembro nosso companheiro Haroldo Lima, que, em reunião da nossa Comissão Política, referiu-se, com toda razão, a 1935, como “um desastre”. Foi um desastre heroico, mas foi um desastre.
Os comunistas cometem, às vezes, erros. Mas quando os cometem, e percebem esses erros, reconhecem honestamente que os cometeram, pois essa é a condição para corrigi-los e superá-los. Nada mais antagônico ao marxismo do que passar por cima dos erros, como se acertássemos sempre, como se fôssemos portadores de um dogma – e não de uma teoria científica, que se enriquece e se modifica com a prática, inclusive quanto à avaliação dos fatos passados.
O governo Vargas, em 1937, não necessitava do Estado Novo para reprimir os comunistas. Estes haviam sido reprimidos em 1935 e 1936. Não eram uma ameaça, concretamente, ao governo.
Posteriormente falou-se – e propagandeou-se muito – a lenda do “Plano Cohen”, que teria servido de pretexto para a decretação do Estado Novo.
Essa é uma falsificação que passou do integralismo galinha-verde para a ala lacerdista da UDN – e daí, infelizmente, influenciou gente muito melhor intencionada.
O “Plano Cohen”, suposto plano de “golpe comunista”, foi uma fraude integralista, forjada pelo mesmo Olímpio Mourão Filho que, em 1964, seria chefe da quartelada de 1º de abril em seus momentos iniciais.
Mas não foi por causa do “Plano Cohen” que o Estado Novo foi decretado.
O discurso de Getúlio, a 10 de novembro de 1937, é, aliás, claro: o objetivo do Estado Novo era impedir que as carcomidas forças oligárquicas, que submetiam o país antes de 1930, voltassem ao poder.
Não é pouco o que isso significava do ponto de vista econômico e de nossa subordinação ao capital bancário estrangeiro, sobretudo inglês.
Pois toda a história da República Velha, desde os governos de Prudente de Moraes e Campos Salles, foi a história do domínio da oligarquia atrasada e da submissão, que ela impôs, do país aos bancos estrangeiros, sobretudo aos ingleses.
Da mesma forma, do ponto de vista democrático, a mentira eleitoral, a fraude, a exclusão do povo das eleições, tão denunciadas por Rui Barbosa, faziam daquele regime uma democracia para meia dúzia de latifundiários, para usar uma imagem que, se não é exata, transmite o espírito daquele, como se disse, “deserto de homens e ideias”.
Era isso o que ameaçava voltar, nas eleições de 1938 – e, diz Getúlio no pronunciamento de novembro de 1937, também por outra via, por aquela que a oligarquia paulista tentou em 1932.
Porém, sempre é possível perguntar: depois de sete anos de revolução, como as oligarquias estavam em condições de retomar o poder?
Pela razão ressaltada várias vezes por Lenin: depois de uma revolução, durante muito tempo, as forças e classes derrotadas, antes dominantes, ainda permanecem mais fortes do que aquelas que as derrotaram.
Isso se dá por muitas razões: entre elas, pelos milhares de laços que essas forças e classes continuam mantendo na sociedade, inclusive no aparelho de estado; pelo poder da propriedade, da qual não foram despojadas; pelo apoio da reação internacional; e até pela simples e terrível força do hábito.
Aqui, até agora, tentei evitar, até onde pude, a abordagem puramente teórica da questão da democracia e da ditadura, tal como se encontra em Marx, Engels, Lenin – e em textos de revolucionários brasileiros, como Maurício Grabois e Cláudio Campos.
Fiz isso porque acho mais importante, para o nosso presente Seminário, conhecer o lado concreto e histórico da questão.
Mas é necessário dizer, brevemente, que o conceito de democracia, para os marxistas, não exclui o conceito de ditadura, considerado este no sentido latino do termo.
O que quer dizer isto?
Primeiro, que a democracia é um Estado.
Segundo, que esse Estado é democracia para uns e ditadura para outros.
Terceiro, que a questão decisiva é se um Estado é democracia para a maioria e ditadura para uma minoria; ou se o Estado é democracia para uma minoria e ditadura para a maioria.
É esta terceira questão que, geralmente, define o uso comum das palavras “democracia” e “ditadura”.
Por que chamamos o regime instalado pelo golpe de 64 de “ditadura”?
Porque ele era ditadura para a maioria esmagadora da população.
Tomemos o regime monárquico que houve em nosso país entre 1822 e 1889. Evidentemente, resumindo de maneira simplificada, ele era uma ditadura para a maioria da população, a começar pelos escravos, e uma democracia para os senhores de escravos e seu entorno.
Nas palavras de Lenin, em seu livro “O Estado e a Revolução”:
“A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista; no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua sempre a ser, mais ou menos, o que foi nas Repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores fundada na escravidão. (…) A democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos – tal é a democracia da sociedade capitalista.”
Ou seja, como observa Lenin, para os demais, para os pobres, para a maioria, essa democracia é uma ditadura.
Neste trecho, como, em geral, em seu livro, Lenin referia-se à democracia como conceito genérico, não especificamente ao caso de um país dependente, como o Brasil, onde as restrições à democracia para a maioria tendem a ser, inclusive, maiores.
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Podemos, agora, analisar o Estado Novo a partir do conceito marxista sobre democracia e ditadura.
Já escrevi sobre isso, mas gostaria de citar, aqui, um autor, que também é um amigo, e, inclusive, é o titular da cátedra Cláudio Campos da Fundação Maurício Grabois.
Em 1989, portanto, há mais de três décadas, Nílson Araújo de Souza escreveu em seu livro “Revolução Brasileira – De Tiradentes a Tancredo”:
“Mesmo do ponto de vista democrático, ou seja, da participação do povo na política, o período do ‘Estado Novo’, particularmente de 1940 em diante, se encontrava em situação mais avançada do que antes de 1930.”
E, mais adiante:
“A eliminação das liberdades formais foi a forma de impedir a provável vitória eleitoral, num momento de confusão e traumatismo nacional, do candidato daquelas forças retrógradas, Armando de Salles Oliveira. Não é à toa que foram principalmente representantes seus que se aliaram aos integralistas, em começos de 1938, para tentar derrubar o governo.”
Acredito que Nílson, do ponto de vista tanto da realidade dos fatos, quanto da teoria marxista, estivesse, como está, plenamente justificado ao escrever tais palavras.
O Estado Novo foi uma ditadura para as forças derrotadas em 1930, que tentavam retomar o poder para liquidar com as conquistas democráticas (inclusive conquistas econômicas) da Revolução.
Nesse sentido, para a maioria da população, o Estado Novo foi uma ampliação da democracia.
Para nós – e eu sou de uma família que esteve com a posição do nosso partido em 1930 e em 1935 – isso às vezes é difícil de admitir. Mas não acho que seja possível outra conclusão, após estudar a História daquele período.
Isso, naturalmente, é o que eu acho. Mas estou disposto a debater qualquer opinião diferente.
Naturalmente, sempre se pode argumentar que isso não foi tão puro quanto descrevemos, que houve Filinto Müller na chefia de polícia, que houve a extradição de Olga Benário – e outros acontecimentos trágicos.
É verdade. Mas nenhum acontecimento histórico é isento de vicissitudes, de equívocos, muitas vezes trágicos. Nem por isso temos o direito de virar esses acontecimentos em cambalhota.
A Conferência da Mantiqueira, realizada em agosto de 1943 pelo nosso partido, portanto, sob o Estado Novo, mostra a consciência a que chegamos naquela época.
Segundo Maurício Grabois, que pronunciou o informe político da Conferência da Mantiqueira, houve unidade completa em torno da caracterização da guerra (“guerra de libertação dos povos nacionalmente oprimidos pelo fascismo”); da união nacional em torno do governo; e do apoio incondicional ao presidente Vargas naquele momento (v. Osvaldo Bertolino, “Pedro Pomar – Ideias e batalhas”, p. 108).
Estávamos, ainda, repito, no Estado Novo.
A recusa do partido em coonestar o golpe de 29 de outubro de 1945 contra Getúlio, mostra a coerência dessas ideias.
E não temos dúvida de que uma “Constituinte com Getúlio”, tal como nosso partido propôs na época, teria resultado em uma Constituição bem mais democrática do que aquela que saiu, após o golpe de outubro de 1945.
Para encerrar essa parte, lembraremos que o fim do Estado Novo foi anunciado pelo próprio Getúlio, em novembro de 1943, para logo depois do fim da guerra. Infelizmente, persistem, sobretudo após 1964, as versões udenistas, que atribuem o fim do Estado Novo às ruínas da oligarquia que deambulavam pelo país.
Na verdade, o Estado Novo já cumprira a sua tarefa de impedir o retorno ao poder do atraso que fora removido em 1930.
Por isso, restavam, dessas forças atrasadas, as suas ruínas ideológicas, que assumiriam importância como instrumentos da nova subordinação ao imperialismo, dessa vez aos EUA, e diante de retrocessos posteriores na História do Brasil.
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A abordagem histórica, a própria análise política e econômica, conduzem à conclusão de que a construção do Estado nacional brasileiro é também a construção da democracia para a maioria do povo brasileiro.
Aliás, há uma coisa que é fácil observar. A democracia é, como dissemos, um Estado. Não por acaso, todas as vezes em que o Estado nacional, no Brasil, foi atingido, restrito em sua ação ou em parte destruído, houve uma restrição ou diminuição da democracia para a maioria do povo brasileiro.
Podemos abordar essa questão diretamente pela democracia econômica: que aumento da democracia nos trouxeram as privatizações da siderurgia, das telecomunicações, da mineração ou da eletricidade?
Nenhuma. Muito ao contrário.
Do ponto de vista da democracia política, a diminuição do poder econômico do Estado – aquilo que Getúlio chamou de economia planificada ou, até mesmo, “democracia planificada” – também levou a um maior abuso do poder econômico nas eleições, portanto, a uma restrição maior da democracia, vista sob o ângulo da maioria da população.
Porém, nada deixou mais claro o caráter democrático do nacional-desenvolvimentismo, se assim posso me expressar, e o caráter antidemocrático dos seus inimigos, do que o golpe de 64 e a ditadura que o sucedeu, sobretudo o período de 10 anos do Ato Institucional nº 5, o AI-5.
Não preciso dizer o que foi essa ditadura, o que foi o regime da tortura, dos assassinatos e das cassações de mandatos e direitos políticos.
Os mais veteranos, aqui, conheceram muito bem esse regime. Os menos veteranos também sabem o que esse regime foi.
Pois tratava-se de um regime antinacional e antidemocrático que se propunha, desde o seu primeiro momento, a ser o oposto do getulismo, cujo herdeiro o golpe de 64 destituíra, rasgando a Constituição, e, de resto, todas as leis, inclusive fechando todos os partidos, mutilando todas as instituições.
Os anos em que a ditadura, no governo Geisel, foi obrigada pela crise a empreender um caminho mais nacional, os anos do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que vão de 1975 a 1979, foi um tempo de intenso conflito dentro da própria ditadura – com a vitória final dos inimigos do II PND, e, portanto, com a vitória dos inimigos do nacional-desenvolvimentismo no governo Figueiredo.
A reentronização pela ditadura, em 1979, de Delfim Netto na direção da política econômica, com a imposição de um corte brutal de investimentos públicos e de salários, no momento em que as taxas de juros internacionais decolavam para o espaço e os termos de troca das nossas mercadorias se deterioravam, foi o estrangulamento do II PND.
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Resta dizer que o debate sobre a questão democrática no Brasil teve, antes da ditadura e depois do golpe de 64, alguns momentos importantes.
O primeiro, ainda antes de 1964, foi a luta de Maurício Grabois, João Amazonas, Pedro Pomar, Carlos Danielli e outros companheiros contra as teses da então maioria da direção do PCB.
Em todos os escritos dessa polêmica, em especial “Duas Concepções, Duas Orientações Políticas”, de Maurício Grabois, escrito na preparação ao V Congresso do Partido Comunista do Brasil, a questão democrática aparece delineada como central na revolução brasileira, tanto do ponto de vista estratégico quanto tático.
Vejamos como, em 1960, Maurício Grabois colocava a questão da democracia, no documento que citamos:
“Nas condições atuais, as forças progressistas devem utilizar o mais possível as formas legais de luta e defender, como questão vital para o povo brasileiro, a ampliação e a consolidação da democracia no país.
“A existência de um clima democrático estável é de primordial importância para o mais rápido desenvolvimento e fortalecimento da frente única e para alcançar êxitos na luta pela conquista de um poder democrático e anti-imperialista.
“Isto impõe a necessidade de combater quaisquer retrocessos antidemocráticos e salvaguardar as liberdades públicas para favorecer a ação independente das massas trabalhadoras e populares.
“Neste sentido, as eleições são um meio importante para fortalecer as posições das correntes democráticas e anti-imperialistas.
“Na luta pela realização das transformações radicais não é inevitável a luta armada e a guerra civil. A revolução brasileira poderá trilhar por um caminho pacífico.
“Mas a via pacífica só será possível se, entre outros fatores, vigorar no país a plena democracia, se nas forças armadas predominarem os patriotas e democratas e se a frente única se consolidar sob a direção da classe operária.
“Será de grande significação a conquista de uma sólida maioria democrática e anti-imperialista num parlamento, eleito sem quaisquer restrições antidemocráticas.”
Além dos comunistas, houve intensa discussão entre as outras forças progressistas, sobretudo durante o ano de 1963. Por falta de tempo, não nos estenderemos, além de dizer que muitas das obras sobre o Brasil que debatemos até hoje, foram escritas ou publicadas naquele ano, o último antes do golpe de Estado e da ditadura.
O segundo momento de discussão intensa da questão democrática foi após o término da resistência armada contra a ditadura, na década de 70 do século passado, quando era necessário desbravar o caminho pacífico de oposição ao regime ditatorial.
Havia, na época, aqueles que negavam o papel da luta pela democracia ainda no terreno democrático-burguês, isto é, diziam que a luta pela democracia, sob a ditadura, não devia ser empreendida, porque era “meramente” uma luta por “liberdades democráticas burguesas”, como se isso fosse pouco, num momento em que brasileiros eram presos, torturados, assassinados e cassados por razões políticas.
Do ponto de vista tático, isso representava uma renúncia a lutar contra a ditadura, cujo principal aspecto político era, precisamente, seu aspecto antidemocrático.
Quanto ao ângulo estratégico, é evidente que é impossível chegar a qualquer socialismo – sobretudo a um socialismo que seja realmente socialismo – sem lutar pela democracia ainda dentro dos limites do capitalismo, ou seja, sem lutar por liberdades democráticas burguesas, sobretudo quando elas não existem ou são muito restritas, o que era, precisamente, o caso do Brasil até 1978, quando o AI-5, debaixo da pressão geral pelas liberdades democráticas, foi revogado.
Foi durante essa luta que o patrono da nossa cátedra, Cláudio Campos, escreveu dois textos que seriam, ao nosso ver, decisivos: “Contra o Doutrinarismo e o Economicismo – Por uma Tática Proletária de Combate à Ditadura” (1975), sobre o aspecto tático da luta pelas liberdades democráticas, e “Socialismo e Liberdades Democráticas” (1976), sobre a relação da luta pelas liberdades democráticas ainda dentro da sociedade capitalista e a luta pelo socialismo.
Porém, além do lado histórico, existem aquelas conquistas teóricas, conquistas de conhecimento, que são importantes também para os dias de hoje. Não são novidades, mas obtiveram uma formulação clara no período final da luta contra a ditadura, em 1982.
A questão é, precisamente, em que constitui o conteúdo democrático da revolução brasileira.
A resposta é: exatamente, em seu conteúdo nacional.
Nas palavras de Cláudio Campos, em “Unir a Nação e Romper a Dependência”, de 1982:
“… no Brasil de hoje, a questão nacional é exatamente o cerne e o centro da questão democrática.
“O regime atual não é democrático, não é a ‘dominação do povo’, justamente porque é, no fundamental, expressão política de interesses externos, isto é, trata-se de um Estado descomprometido com a Nação e, portanto, com o povo. A tarefa democrática central, é, pois, exatamente, a ruptura com esse Estado e a constituição de um Estado efetivamente nacional” (grifos no original).
Logo em seguida, Cláudio coloca essa questão, destacando como ela se desenvolveu dentro do marxismo:
“… um salto qualitativo da democracia é a questão política chave em qualquer revolução verdadeira. (…) Isso é verdadeiro em todas as revoluções.
“O que distingue uma revolução concreta de outra é justamente qual a tarefa democrática que está na ordem do dia, qual o caráter central e o conteúdo de classe da democracia que se faz necessária.
“Na revolução democrática burguesa dos países centrais foi a ruptura com o autoritarismo feudal ou escravagista, e a constituição de um Estado democrático burguês, sob a hegemonia da burguesia ou da aliança operário-camponesa.
“Na revolução socialista, a constituição de uma democracia proletária.
“Na revolução nacional e democrática dos países dependentes – caso particular da revolução democrático-burguesa – a ruptura com Estados submissos aos interesses do imperialismo e a constituição de Estados efetivamente nacionais e democráticos.
(…)
“… a nível político – superestrutural – o que está em causa em nossa revolução atual é, também, a ‘conquista da democracia’, mais concretamente, no nosso caso, a constituição de um Estado nacional e democrático”.
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É a partir dessas colocações que eu gostaria de analisar o nosso processo democrático nos últimos anos.
Mas existe uma questão, nesse processo, que é mesmo anterior a ele: o papel das Forças Armadas na História brasileira.
Nelson Werneck Sodré, que além de historiador, pensador desenvolvimentista e marxista, era general, escreveu, sobre a nossa História no século XIX, que “Caxias, mais do que D. Pedro II, foi o Segundo Império”.
É verdade, e é lamentável que até hoje a correspondência de Caxias, depositada no Arquivo Nacional, não tenha sido publicada. Pois, tudo indica, pelo que dizem os que já tiveram acesso a essa correspondência, que teríamos um Caxias muito diferente daquele que aparece em certas lendas que são hoje difundidas – algumas, há muito tempo.
Mas o fato é que as Forças Armadas – em especial, o Exército – tiveram participação progressista em vários dos acontecimentos mais decisivos da História nacional.
Nesse sentido, tentou-se apagar esse caráter progressista especialmente na Proclamação da República, ao chamar de golpe o que foi uma revolução, a revolução abolicionista-republicana, pois a monarquia perdera a razão de ser, exatamente, porque era a superestrutura da economia escravista.
É interessante que a narrativa da Proclamação como um “golpe” era a versão da monarquia, em especial do visconde de Ouro Preto, deposto em 15 de novembro de 1889, no livro que escreveu e publicou em seu exílio na Europa.
Portanto, o que se exumou nos últimos tempos, nesse sentido, é apenas a versão mais reacionária possível, não por acaso, adotada também pela gang mais chegada a Bolsonaro.
Mas não me estenderei mais sobre essa questão – até porque já escrevi sobre isso, bem extensamente, em outro lugar.
Mais próximos de nós, o tenentismo, a Revolução de 30, o contragolpe de 11 de novembro de 1955 – que garantiu a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, e de seu vice-presidente, João Goulart -, a ação do III Exército para evitar o golpe de Estado após a renúncia de Jânio Quadros, e, inclusive, a resistência de boa parte dos militares ao golpe de 64 e o caminho escolhido ao fim da ditadura, mostram que a atitude do Exército foi, em vários momentos, e momentos dos mais importantes, progressista.
As Forças Armadas são instituições. Considerá-las uma espécie de “partido” da reação, além de não corresponder aos fatos, significa dispensá-las de participar de qualquer processo de mudança democrática e nacional.
Para ser mais exato, significa considerá-las inimigas, no campo oposto à construção de um Estado nacional e democrático.
Vamos ser mais precisos ainda: significa considerar que as Forças Armadas – e estamos nos referindo inclusive à maioria de seus altos mandos – não pode ser ganha para a defesa da Nação e a tarefa de recuperar e completar a construção de um Estado democrático e nacional em nosso país.
Uma tal consideração praticamente elimina a possibilidade dessa construção – ou seja, da própria revolução nacional e democrática -, exceto se admitirmos a destruição das Forças Armadas atuais, ou, no mínimo, a sua divisão, como premissa.
Porém, não existe razão alguma para tal pregação – tanto não existe, que esta não é a nossa política, e não é por acaso.
Sem falar em outros companheiros, muito mais credenciados do que eu para falar sobre o assunto, devo lembrar do convite que, durante anos, a Escola Superior de Guerra (ESG) dirigiu ao jornal Hora do Povo, para seus cursos anuais. Eu mesmo compareci, como diretor do jornal, tenho um diploma da ESG, e fui muito bem tratado pelos nossos militares, mesmo quando divergia deles.
Parecia passada a época em que alguns setores das Forças Armadas foram utilizados para reprimir o povo brasileiro – e para vertebrar um regime autoritário.
O fato de que a situação atual não é mais esta, que acabo de descrever, somente significa que precisamos trabalhar para que ela mude.
Pois, seja como for, não é possível pensar na construção de um Estado nacional, democrático e popular sem a participação das Forças Armadas, que são integrantes do próprio Estado.
Nem é possível pensar que a constituição das nossas Forças Armadas seja de elementos que não pertencem ao povo brasileiro, inclusive em seus altos mandos. Tal concepção, simplesmente, seria falsa.
Aqui, apenas anotaremos, de passagem, que Bolsonaro é o que pode haver de mais oposto à história, às tradições, ao espírito e à bravura de nossas Forças Armadas.
O que pode haver de comum entre Bolsonaro e Benjamin Constant?
Ou entre Bolsonaro e Siqueira Campos – ou Lott, ou Machado Lopes?
Aliás, não há nada em comum entre ele e um contemporâneo, como o general Leônidas Pires Gonçalves, que encaminhou sua expulsão do Exército.
9
Por fim, a questão dos últimos anos.
Na imprensa é habitual aparecer que a chamada “Nova República”, inaugurada com a derrubada da ditadura e a eleição de Tancredo Neves e José Sarney, acabou com a eleição de Bolsonaro.
Minha opinião é que isso é completamente arbitrário, inexato – e errado.
Ao nome “Nova República” correspondeu aquele período, após a ditadura, em que houve uma expansão da democracia, e, portanto, das conquistas nacionais que são o “cerne e o centro” da questão democrática no Brasil.
Esse período tem como seu principal documento a Constituição de 1988, sobretudo em sua forma original.
A rigor, esse período vai até a eleição de Collor, quando se inicia um processo de destruição do Estado nacional, e de deformação da Constituição, que, embora mais contido em alguns momentos, permanece até hoje – com idas e vindas ao longo de 30 anos.
Já irei examinar algumas questões desse período político longo, mas, antes, é preciso responder à pergunta: por que o período de expansão da democracia e das conquistas nacionais durou tão pouco tempo, após o fim da ditadura?
Sabemos que a morte de Tancredo debilitou a Nação, em um momento decisivo.
Sabemos das resistências internas, em especial daquelas dos monopólios e cartéis financeiros externos, que já dominavam parte ponderável da economia brasileira.
Sabemos que a questão da submissão à matriz imperialista, que na época expressava-se, principalmente, na sangria dos juros da dívida externa, não foi enfrentada pelo governo Sarney. Assim, a tentativa feita pelo Plano Cruzado continuou incompleta e com um flanco muito frágil, na medida em que essa sangria das riquezas e recursos do país não foi estancada.
Mas houve um fator, que, embora condicionante, porque externo ao país, teve uma grande importância no retrocesso que se seguiu: os acontecimentos no Leste Europeu, em especial na União Soviética, com a tentativa do imperialismo norte-americano de estabelecer aquilo que o primeiro Bush chamou “nova ordem mundial”.
Agora, que a China ascendeu entre os países do mundo, a situação é diferente daquela época, notória pelo famoso e falso “Consenso de Washington”, o neoliberalismo como suposto “pensamento único”, em suma, a privatização desbragada, o escancaramento ao capital especulativo, a desregulamentação geral, a derrubada da proteção à economia nacional, o aperto fiscal em prol dos juros, as taxas de câmbio favoráveis à importação ou falsamente flutuantes.
Como os companheiros sabem, do ponto de vista prático, ainda não superamos essa época no Brasil, mas, do ponto de vista ideológico, hoje é ridículo dizer que não há outra alternativa, o que não deixa de ser um avanço decisivo para a nossa luta.
Porém, retornando ao nosso tema, é mais do que evidente que, coerente com a visão que expusemos sobre a democracia no Brasil, nada disso resultou em maior democracia, ou mais profunda, para o povo brasileiro.
Os sucessivos parlamentos, cada um pior que o outro, e cada um com maior influência do poder financeiro, são uma amostra de como tal situação e tal política pode ser restritiva para com a democracia.
Esta também é uma limitação dos governos Lula e Dilma.
Permitam-me apenas lembrar que a condução econômica dos tucanos – o famoso “tripé econômico” (metas de inflação, câmbio flutuante e suposta “responsabilidade” fiscal) – foi mantida, como também o Banco Central, sob Henrique Meirelles, foi tão ou mais intocável do que sob Armínio Fraga, no que concerne à determinação da taxa básica de juros – que o diga o saudoso vice-presidente José Alencar, que denunciou os juros escorchantes do primeiro ao último dia do governo de que fazia parte, pode-se dizer, até o último dia de sua vida.
Não entrarei em detalhes, pois me falta tempo, e outros certamente poderão fazê-lo.
Apenas frisaria uma questão: o proclamado “social-desenvolvimentismo”, pregado pelo ministro Mantega, era diretamente uma negação do nacional-desenvolvimentismo.
Qual a diferença que estes termos implicam?
É sabido – e aqui estou falando esquematicamente, para ser melhor compreendido – que o nacional-desenvolvimentismo é baseado no capital nacional, privado e estatal. Esta é a ideia de desenvolvimento nacional, desde os tempos de Getúlio.
Já o social-desenvolvimentismo, é a ideia de que podemos ter desenvolvimento baseado no investimento direto estrangeiro, isto é, no capital estrangeiro investido em empresas, desde que isso redunde ou possa redundar em mais empregos ou mais carteiras-assinadas, ou seja, mais emprego formal.
Essa ideia, sem o nome “social-desenvolvimentismo”, já fora aplicada no governo Fernando Henrique Cardoso, onde seu grande profeta foi o tresloucado Gustavo Franco.
Na época, redundou em uma grande onda de desnacionalizações de empresas brasileiras, compradas em massa pelo dinheiro estrangeiro, e em crescimento econômico pífio.
Sobre isso, a melhor obra que conhecemos foi escrita – e proferida – pelo nosso inesquecível camarada Haroldo Lima. Trata-se do Informe especial sobre a desnacionalização, que Haroldo pronunciou no 10º Congresso de nosso partido, em dezembro de 2001.
Gostaríamos de ter tempo para expor esse documento cardinal da luta anti-imperialista em nosso país. Como não temos esse tempo, nos contentamos em repetir a observação de Haroldo de que o dinheiro estrangeiro entrou para adquirir empresas prontas, sem quase qualquer investimento novo. Foi, portanto, uma transferência de propriedade sem nenhum benefício para o país – pelo contrário, uma parte importante dessas empresas foram fechadas ou se transformaram em balcões improdutivos, após sua aquisição pelo capital externo.
Porém, houve uma segunda onda de desnacionalizações na época de Mantega, também devido à entrada caudalosa de investimento direto estrangeiro.
Não abordarei os problemas cambiais decorrentes do incensado “tripé macroeconômico”. Apenas, acho, vale observar que o crescimento que obtivemos naquela época não foi devido a essa onda de desnacionalizações, mas aos méritos do Plano de Aceleração do Crescimento.
Portanto, não se pode nos acusar de não enxergarmos algo de positivo naquela época, até porque todos nós, inclusive os egressos do PPL, como é o meu caso, apoiamos, e tínhamos razão em apoiar, a política do governo Lula, por seus aspectos progressistas, ainda que criticássemos outros aspectos, como a taxa de juros, a taxa de câmbio, a desnacionalização, a desindustrialização e a primarização das exportações em meio ao boom das commodities.
Entretanto, o que houve, nessa época, quanto à democracia política?
Claro que, comparado a Bolsonaro, haverá quem sinta aquela época como um paraíso democrático.
Entretanto, é quase um lugar-comum que, durante esse tempo, não tivemos qualquer reforma política, exceto uma “reforma eleitoral”, em 2017, no governo Temer, com a Emenda 97, que estabeleceu a proibição das coligações proporcionais, a cláusula de barreira, a restrição ao acesso à TV e rádio, e aos fundos partidário e eleitoral, para a maioria dos partidos.
Em suma, a única reforma que tivemos foi no sentido de restringir a democracia e não de aumentá-la.
Independente das intenções de seus autores, esse foi o resultado, e nosso partido o sabe melhor do que nenhum outro.
No momento, nossa abordagem sobre a democracia resume-se em resistir ao fascismo, a impedir que Bolsonaro e sua gang implantem uma ditadura obscurantista no país. Por isso, precisamos constituir uma ampla frente que o isole e o tire do governo, antes ou nas eleições – e, desde que delineamos esse caminho, já avançamos nele, ainda que precisemos avançar mais.
No entanto, isso não nos dispensa de, examinando os problemas dos últimos anos, apontar aquilo que, em nossa opinião, precisa mudar.
Não nos deteremos no desenho das instituições, pois essa não é uma questão que possamos adiantar agora, no momento em que o objetivo de Bolsonaro é achincalhar com essas instituições. Por exemplo, o modelo em que se baseia o Supremo Tribunal Federal (STF), que vem da época em que o marquês de São Vicente era o maior jurista do Império, está superado. Mas essa é apenas a minha opinião. Outros podem ter opinião diferente. Portanto, precisamos discutir. E, mais importante do que isso, hoje é mais importante defender o STF contra a gang de Bolsonaro, do que reformá-lo – até porque isso é impossível.
Mas existem outras questões que são mais evidentes – e mais insuportáveis.
Por exemplo, o alto preço das eleições no Brasil.
O abuso do poder econômico é a maior restrição à democracia que temos hoje – e o que foi feito no sentido de diminuir esse preço, no malfadado governo Temer, beira o ridículo.
Vejamos alguns dados, já consolidados:
Entre as eleições de 2002 e as de 2010, os gastos eleitorais oficiais (ou seja, sem contar o caixa 2) triplicaram – (ou seja, aumentaram 200%), enquanto a inflação, pelo IPCA, variou apenas 76,27% (cf. Ana Luiza Backes e Luiz Cláudio Pires dos Santos, “Gastos em campanhas eleitorais no Brasil”, Cadernos Asleg, no 46, maio/agosto 2012, p. 57).
Observemos que apesar desse aumento de gastos já ser impressionante, houve um outro pulo nas eleições de 2014.
Se tomarmos como comparação as eleições de 2002 e 2014, os gastos das campanhas presidenciais aumentaram 588,16%, contra uma inflação acumulada de apenas 158,22%.
Mas esses são os gastos das eleições presidenciais.
Vejamos os gastos totais de todos os candidatos a todos os cargos nas eleições: houve um aumento de 571,69% nos gastos eleitorais totais dos candidatos entre 2002 e 2014, também para uma inflação de 158,22%.
Acho que esses dados já são suficientes para que vejamos como as eleições no Brasil se tornaram, em muita medida, uma falsificação operada pelo poder econômico, eliminando candidatos populares e progressistas pelo mero esmagamento de suas campanhas, através do poder financeiro de candidatos reacionários, muitas vezes obscurantistas até um ponto que o grande Copérnico, falecido há quase 500 anos, acharia delirante.
Esse é, aliás, o segredo da permanência do “Centrão” como algo tão importante na política do país, atravessando, com algumas composições diversas, todo o período que sucedeu a ditadura, o mais das vezes formando com quem está no governo.
Então, a principal questão, na minha opinião, é discutir como baratear as eleições, como ter um sistema que permita aos candidatos saídos do povo, e com caráter popular, ter alguma chance nas eleições, ao invés da margem a que eles estão hoje relegados.
Não vou entrar, aqui, em questões sobre como o sistema atual, além do mais, é um estímulo à corrupção, porque não acho que seja necessário. Todos estamos conscientes deste problema.
Quanto à legislação eleitoral, ela é hoje muito antidemocrática.
Não estou me referindo apenas à Emenda 97, que citei acima. É claro que a proibição de coligações proporcionais e a cláusula de barreira aumentaram as restrições à democracia.
A própria Lei Orgânica dos Partidos Políticos, que é da época do governo Fernando Henrique Cardoso, lembra, para um velho jogador de xadrez, como é o meu caso, aquelas combinações que parecem eternizar uma posição no tabuleiro, embora sempre se aproximando de uma ruptura.
A Lei dos Partidos parece ter como objetivo eternizar uma determinada composição de partidos no Executivo e Legislativo, portanto, também nos órgãos superiores do Judiciário.
Isso não quer dizer que, sob essa lei, um partido não possa ser derrotado, como o PSDB foi em 2002. Mas também no xadrez isso acontece.
No caso da Lei dos Partidos – combinada com as leis eleitorais – o resultado tem sido uma permanência legislativa de uma maioria medíocre, e, a cada eleição, mais medíocre, em detrimento do povo brasileiro.