Mary Poppins em Silicon Valley: O Caso do SVB
Mary Poppins em Silicon Valley: O Caso do SVB
Entendendo o tiro de uma crise bancária clássica no coração das empresas de tecnologia e biotecnologia, com direito ao Twitter no meio.
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Crédito: Imagem criada por mim utilizando a ferramenta DALL.E.
It's supercalifragilisticexpialidoc
Even though the sound of it is something quite atrocious
If you say it loud enough you'll always sound precocious
Supercalifragilisticexpialidoc
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Ah, Mary Poppins. O filme clássico que tantas vezes vi e que talvez tenha sido o primeiro a trazer as imagens daquilo que mais tarde se tornaria uma das minhas áreas de especialização. Há duzentos mil anos, na verdade um pouco menos, escrevi minha tese de doutorado na London School of Economics sobre crises bancárias. Dois anos depois pousaria no Fundo Monetário Internacional, ainda que não voando de guarda-chuva, para trabalhar diretamente com elas.
Antes de explicar a vocês o que aconteceu com o Silicon Valley Bank, é fundamental que todos saibam a origem da palavra de Mary Poppins. Ela não é de Mary Poppins ou de Julie Andrews, desafortunadamente. Nem de Dick Van Dyke. Ela foi primeiro usada pela jornalista Helen Herman na publicação The Syracuse Daily Orange, no dia 10 de março de 1931. O filme e sua música são de 1964. Contudo, nada disso tira a graça da palavra, seu som inusitado, e a alusão ao inverossímel. Nada disso tira da palavra o fato de ter sido ela inventada exatos 92 anos antes da falência do Silicon Valley Bank.
A crise bancária de Silicon Valley tem um componente inverossímel. Ela ocorreu no Vale do Silício, na região mais rica e sofisticada dos Estados Unidos, onde estão localizadas todas as grandes empresas de tecnologia, além de muitas empresas de biotecnologia. Também lá estão as empresas startups e de venture capital, aquelas que sonham com o Olímpio. Muitas dessas empresas eram atendidas pelo Silicon Valley Bank, conhecido pela sigla SVB, estabelecido em 1983. O SVB não era considerado um banco “sistemicamente importante”, isto é, capaz de arrastar outras instituições consigo caso enfrentasse problemas financeiros. Por essa razão, o banco era regulado por supervisores e reguladores estaduais — o sistema de regulação e supervisão bancária nos Estados Unidos é bastante fragmentado, diferentemente do que ocorre no Brasil.
Os clientes do SVB eram sofisticados. E, ricos. Há 40 anos o banco se especializava em atender a clientela tech, sobretudo as startups, o motor do setor. Mas, como todo banco, o SVB tinha descasamentos no seu balanço. Bancos não são bancos sem alguns desses descasamentos. Na verdade, o descasamento que caracteriza um banco por excelência é o descasamento de maturidades. Bancos tomam dinheiro de curto prazo na forma de depósitos e investem uma parte desses recursos em ativos de prazo mais longo, como empréstimos para outras empresas e títulos variados, em particular, títulos da dívida emitidos pelo governo. O que esse descasamento significa é que o banco está sempre funcionando com algum grau de iliquidez, isto é, se todos resolverem sacar seus depósitos simultaneamente, uma parte dos depositantes nada receberá porque investimentos de prazo mais longo levam tempo para serem liquidados. Ou, quando são liquidados mais rapidamente, tipicamente o valor recebido é menor do que o valor original do empréstimo ou do título, com efeitos negativos sobre o balanço do banco.
O SVB recebia depósitos de startups. Há bastante tempo o mercado para essas empresas anda bem complicado devido a fatores diversos, inclusive ao próprio ciclo de aumento de juros feito pelo Fed, o banco central dos EUA. Com as dificuldades que vinham enfrentando, as empresas já estavam sacando depósitos em volume maior do que antes havia alguns meses. Por outro lado, o SVB havia investido bilhões de dólares em títulos do Tesouro norte-americano. Embora esses sejam ativos de baixo risco, ou mesmo de risco zero, razão para que o banco não tenha feito muitas provisões, o SVB ignorou as consequências de um acelerado aumento das taxas de juros pelo Fed em razão da inflação. Em 2022, o Fed fez o aumento de juros mais rápido da história econômica recente dos Estados Unidos. Isso foi um baque e tanto.
Quando os juros aumentam, o preço dos títulos públicos, ativos de renda fixa, caem. Por que? Porque ativos de renda fixa prometem entregar um valor fixo, por definição, ao término do contrato. Isso significa, necessariamente, que quando seu rendimento sobe com a elevação dos juros, os preços nos mercados secundários de títulos caem — caso contrário, esses ativos não retornariam ao investidor um valor fixo ao final da maturidade, mas um valor variável, tornando-os membros de outra categoria de ativos. Como o SVB detinha tais títulos do Tesouro em sua carteira de ativos, quando o preço começou a cair em função da elevação dos juros, o banco foi obrigado a marcá-los a mercado. É dizer, o banco foi obrigado a reduzir o valor imediato desses títulos, refletindo a queda de preços do que detinha. Caso o banco os detivesse não como investimento, mas como equity, isto é, caso o SVB tivesse a intenção de segurar esses títulos até a maturidade, não precisaria marcá-los a mercado. Contudo, não era esse o caso.
Aqui aparece a primeira ironia: como um banco com clientela tão sofisticada quanto o SVB não foi capaz de prever os aumentos de juros por parte do Fed e fazer as provisões necessárias para proteger a sua carteira de títulos da perda imediata de valor? E, porque os reguladores não estavam monitorando essa falta de provisionamento adequado? Supercalifragilisticexpealidoc
A segunda ironia é que os depositantes sofisticados tampouco estavam de olho no que se passava no banco. Lembrem: esses não eram depositantes quaisquer, não eram pessoas com suas pequenas contas e dinheirinho na poupança. Esses eram os mais engenhosos investidores, responsáveis pela revolução tech. Foi preciso que o banco dissesse às claras, na quarta-feira do Dia Internacional das Mulheres, que estava com problemas para que de súbito todos se dessem conta do tamanho do buraco potencial. E, o que fizeram? Fizeram o óbvio: correram para sacar os seus depósitos. E, o que fizeram de ainda mais óbvio? Tuitaram. Tuítes e mais tuítes, viralizando a corrida aos olhos de todos. De notável, essa corrida bancária clássica — um tanto antiga, até — só tem o fato de ter ocorrido, em parte, em uma rede socia e de ter sido amplificada por ela. Está aí mais um exemplo de como essas redes saem do virtual para o real em um piscar de tuíte. Está aí mais um caso claro para a necessidade de sua regulação.
Diante do descasamento natural de maturidades nos balanços bancários, é esse seu calcanhar de Aquiles. Quando os clientes resolvem achar que seus depósitos não serão ressarcidos, o destino do banco está selado. O SVB faliu devido aos temores de sua clientela, à amplificação desses temores no Twitter, e aos seus próprios erros de conduta e de monitoramento internos.
E agora? O SVB sofreu uma rápida intervenção dos reguladores e, em seguida, foi para as mãos do FDIC — a Federal Deposit Insurance Corporation. A instituição é agora a responsável pelo processo de liquidação do banco e do ressarcimento dos US$ 250 mil para cada depositante do SVB — esse é o volume máximo sob garantia da FDIC. As empresas que tinham bilhões em depósitos no SVB? Bem, elas agora terão de aguardar o lento processo de liquidação e resgate de valores. Algumas jamais receberão o montante depositado.
Há implicações sistêmicas? Algumas, sim. Contudo, a falência do SVB não haverá de se transformar em uma crise bancária nos Estados Unidos pois, ainda que fosse grandinho, esse era um banco de nicho. Haverá, por certo, reverberações no nicho, como já estão ocorrendo.
E o Brasil? Por ora o Brasil não tem nada a ver com isso. Mas, nunca é demais aprender com os outros. E, claro, ouvir as palavras sensatas de Mary Poppins.
A Spoonful of sugar helps the medicine go down
The medicine go down-wown
The medicine go down
Just a spoonful of sugar helps the medicine go down
In a most delightful way
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