Rubens Paiva investigou financiamento dos EUA em articulação golpista nas eleições de 1962 no Brasil

Rubens Paiva investigou financiamento dos EUA em articulação golpista nas eleições de 1962 no Brasil

Rubens Paiva investigou financiamento dos EUA em articulação golpista nas eleições de 1962 no Brasil

Deputado morto pela ditadura guiou CPI que revelou financiamento estadunidense a candidatos conservadores

Leandro Melito e Duda Blumer

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 

Desaparecido em 1971, durante a ditadura militar, o engenheiro civil Rubens Paiva foi eleito deputado federal em 1962 pelo PTB - Reprodução - Arquivo pessoal

A figura de Rubens Paiva, ex-deputado federal brasileiro, assassinado pela ditadura militar brasileira (1964-1985), popularizou-se após o lançamento do filme Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles e protagonizado por Selton Mello no papel de Rubens e Fernanda Torres na interpretação de sua esposa, Eunice Paiva.

Por sua atuação, Fernanda Torres foi premiada na categoria de Melhor Atriz do Globo de Ouro, e o filme recebeu outras três indicações ao Oscar, na quinta-feira (23): melhor atriz para Fernanda Torres, além de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional.

Anterior à trama exibida nas telas, a trajetória parlamentar de Rubens Paiva revela uma atuação política de enfrentamento às forças reacionárias no país que, apoiadas pelo governo dos Estados Unidos, articularam o golpe militar de 1964, com a derrubada do presidente João Goulart.

Eleito deputado federal em 1962 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mesmo do então presidente Jango, Paiva teve papel central na luta contra a articulação golpista que já se formava em 1963: foi vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instalada para apurar as denúncias contra as atividades de financiamento dos Estados Unidos a políticos conservadores para desestabilizar e derrubar o governo Goulart (1919-1976).

Esse financiamento foi intermediado por meio de duas organizações: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad).

“Centenas de candidatos haviam recebido vultosa ajuda financeira do Ibad em vários estados”, aponta o jornalista Jason Tércio, autor dos livros Segredo de Estado: o desaparecimento de Rubens Paiva (2010) e Perfil parlamentar de Rubens Paiva (Câmara dos Deputados, 2014).

O dinheiro teria sido utilizado para propaganda eleitoral de diversos tipos: propagandas na imprensa, confecção e distribuição de cartazes, faixas, cédulas eleitorais e folhetos, gravação de jingles e de programas de rádio e televisão, aluguéis de avião, de veículos e de aparelhos sonoros.

"O Ibad era um órgão ligado à bancada parlamentar e canalizou essa verba toda no Brasil para candidatos conservadores e o Rubens Paiva foi o mais atuante, como vice-presidente. Ele estava muito empenhado nisso, era uma pessoa entusiasmada em seu primeiro mandato", disse Tércio ao Brasil de Fato.

Após diversas investigações e interrogatórios, muitos deles conduzidos por Rubens Paiva, a CPI levantou indícios de que o Ibad "havia injetado dinheiro e ajuda material na campanha de pelo menos 600 candidatos a deputados estaduais e 250 candidatos a deputados federais, além de alguns candidatos a governadores e vice-governadores”, revela Tércio em seu livro.

A CPI ouviu 34 depoimentos que subsidiaram um relatório apontando os culpados pela corrupção eleitoral, mas ninguém foi punido. Após parte das conclusões da comissão, o presidente Goulart decretou a suspensão das atividades do Ibad e da Adep por três meses. O Ipes, por sua vez, não foi responsabilizado.

“Com a suspensão das atividades dos órgãos que estavam sendo investigados, a CPI também suspendeu suas atividades temporariamente. Depois de três meses os trabalhos foram retomados, mas com outros membros e o Rubens Paiva não participou mais”, detalhou Tércio ao Brasil De Fato.

Apesar da impunidade, não se deve excluir que a CPI da qual Rubens Paiva não apenas fez parte, mas ajudou a presidir, “teve repercussão nacional e por isso ele ficou bastante visado”, explica Tércio.

"Acho inteiramente espúrio se criar neste país, à sombra de grande poder econômico, sobretudo das indústrias estrangeiras, agências econômicas de grandes monopólios estrangeiros, essas siglas todas que constituem o próspero parque industrial da indústria anticomunista que, ao que estamos vendo, é talvez daquelas mais rendosas, que dispõem de maiores recursos", declarou Rubens Paiva durante a sessão da CPI no dia 3 de agosto de 1963.

No dia anterior, o deputado Amaral Neto, da União Democrática Nacional (UDN), principal partido de oposição ao governo Jango, tinha admitido publicamente ter sido beneficiado pelo Ibad e reconheceu ignorar a origem do dinheiro que utilizou em sua campanha com veículos, faixas cartazes e patrocínio de programas no rádio e na TV.

Durante uma sessão da CPI em 9 de agosto de 1963, em resposta ao ataque do deputado mineiro e ex-integralista Abel Rafael, do Partido Republicano Progressista (PRP), Rubens Paiva destacou a importância do trabalho da comissão.

"O que ocorre é que faço parte [...] da comissão que investiga as atividades do Ibad, esta chaga, este antro, esta instituição que está procurando corromper a vida política do país derramando rios de dinheiro, nacional e estrangeiro, para tentar tumultuar o processo eleitoral e impingir ao Brasil um terrorismo ideológico".

Na análise de Jason Tércio, Rubens Paiva teve “uma atitude bastante corajosa”, além do “grande mérito de ser uma figura combativa, coerente, que queria o bem do Brasil”. “Ele era um nacionalista, e na verdade, nunca foi um comunista, até porque era empresário do ramo da engenharia civil”, afirma.

Com o golpe em andamento, o deputado discursou ao vivo na Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, denunciando o caráter fascista do movimento militar e chamando a resistência de sindicatos e trabalhadores. 

"Me dirijo especialmente a todos os trabalhadores, todos os estudantes, e a todo o povo de São Paulo tão infelicitado por este governo fascista e golpista que neste momento vem traindo seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação", discursou o deputado.

Ouça o discurso na íntegra:

 

00:00

05:22

Download

 

Com o golpe consumado,  Rubens Paiva teve o mandato cassado em 10 de abril de 1964 e entrou para a lista dos mortos e desaparecidos políticos em janeiro de 1971. Em 1996, Eunice Paiva conseguiu que o país emitisse o atestado de óbito do seu marido. 


O ex-deputado federal Rubens Paiva e a esposa, Eunice Paiva / Foto: Acervo Família Rubens Paiva/Divulgação

Os esquemas do Ibad e do Ipes

Instalada em 30 de maio por meio da Resolução nº 10/1963, a CPI foi criada com prazo de seis meses para apurar a origem dos recursos financeiros e o envolvimento das duas organizações na campanha eleitoral de 1962, com eleições diretas para Senado, Câmara, Assembleias Legislativas, governo dos estados, prefeitos e vereadores.

Sediado no Rio de Janeiro, o Ibad era comandado pelo economista Ivan Hasslocher, se definia como uma organização da sociedade civil com objetivo de estimular o “desenvolvimento da livre-empresa”. A forma que ela fazia isso era, inicialmente, propagando a ideologia liberal em meios de comunicação e por meio de simpósios.

Em 1962, Tércio aponta que Hasslocher "vislumbrara uma boa oportunidade de ganhar muito dinheiro e dera um passo adiante", criando a Ação Democrática Popular (Adep), sociedade civil com a função de operar o esquema de arrecadação de verbas para as campanhas, feitas pela agência de publicidade, explica no livro.

A ilegalidade da Ibad e da Adep se concretizava no momento em que as organizações estabeleceram uma rede nacional de arrecadação clandestina com dinheiro de empresários. O financiamento era depositado nas contas bancárias da agência de publicidade S/A Incrementadora de Vendas Promotion, criada por Hasslocher no início de sua carreira, gerenciador por ele mesmo e direcionado para as campanhas dos candidatos.

No entanto, não era qualquer candidato que poderia fazer parte do esquema, mas apenas os que se comprometessem com os princípios da Adep: “Lutar contra a infiltração comunista em nossa pátria, que se esforça, com palavras, para seduzir o povo, pregando reformas sociais a cuja execução os próprios comunistas constituem o maior entrave, por sabermos que jamais conseguiram o poder onde existia a justiça social e econômica”.

Por sua vez, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), fundado em 1º de fevereiro de 1962 por empresários de São Paulo e do Rio de Janeiro, que eram coordenados pelo coronel do Exército Golbery do Couto e Silva.

De forma similar ao Ibad, “o objetivo oficial do Ipes era defender os valores do capitalismo liberal e da iniciativa privada”. Mas fazia isso combatendo movimentos populares anti-liberais por meio de “seminários, cursos intensivos e conferências, artigos e matérias pagas na imprensa, financiava a produção de filmes de propaganda que exaltavam a democracia liberal e diziam que o Brasil estava ameaçado pelo comunismo”, escreve Tércio.

O Ipes acabou em 1971, sem ter sido arrolado na CPI.  O fundador do Ibad, Ivan Hasslocher, se mudou em Genebra, Suíça, em 1965, ano seguinte ao golpe que derrubou Goulart.. Em 1976, se mudou para Londres e depois foi para os Estados Unidos, onde morreu em 5 de março de 2000, aos 79 anos.


 

Edição: Nathallia Fonseca