Num País de desmemoriados, avança manobra para desestabilizar economia, por Lauro Veiga Filho

Num País de desmemoriados, avança manobra para desestabilizar economia, por Lauro Veiga Filho

Num País de desmemoriados, avança manobra para desestabilizar economia, por Lauro Veiga Filho

Setores do mercado, com a ajuda de uma imprensa providencialmente “colaborativa”, têm se dedicado a manipular dados da realidade

 

Redação[email protected]m

 

por Lauro Veiga Filho

O Brasil atravessou momentos dramáticos na área econômica justamente por não dispor de dólares para fazer frente a despesas e honrar compromissos externos, essenciais ao funcionamento de sua economia, nas décadas de 1980 e 1990. A sucessão de crises cambiais naquele período foi um dos fatores centrais a explicar a inflação crônica, na faixa dos dois dígitos ao mês, com impactos destrutivos sobre as famílias e para as empresas, limitando drasticamente as possibilidades de crescimento. Sempre que a economia conseguia engrenar, a falta de dólares, até mesmo para pagar as importações de petróleo, por exemplo, paralisava o País, numa situação que terminou levando à decretação da moratória da dívida externa no começo dos anos 1980 e novamente em meados da década seguinte.

Como parte da atual ofensiva articulada pela “esquadrilha austericida” e pela grande mídia corporativa, o noticiário econômico, análises e editoriais parecem ressuscitar aqueles tempos, de descontrole inflacionário, desta vez supostamente motivado pela “gastança” dos governos – ainda que sobrem dólares no País, o déficit primário (que não considera as despesas com juros) esteja em baixa e a inflação mantenha-se bem-comportada. Numa clara forçada de mão, a chamada “grande” imprensa, seus articulistas e comentaristas, alinhados a correntes mais nefastas do setor financeiro, têm insistido num cenário de derrocada, com avanço inescapável e descontrolado das taxas de inflação.

Como já anotado aqui, há uma evidente dissonância entre aquele tipo de análise e o mundo real, numa “desancoragem” proposital em relação aos dados oferecidos pela realidade. No caso da inflação, a taxa de 4,87% acumulada em 12 meses até novembro, ligeiramente acima do teto da meta (4,50%), foi recebida com tons alarmantes pelo noticiário fomentado pela “esquadrilha”, com o propósito mesmo de gerar comoção e manipular as decisões de política econômica em benefício de setores já privilegiados.

Desmemoriados

Num país de memória curta, deve-se recordar que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia atingido um pico de 12,13% nos 12 meses finalizados em abril de 2022 para fechar 2023 com elevação de 4,62%. A “escalada” atual, com o índice aproximando-se de 4,87%, corresponde a um acréscimo de 0,25 pontos percentuais – o que motivou uma elevação dos juros básicos em 1,75 pontos entre setembro e dezembro, com o Banco Central (BC) já antecipando mais dois pontos percentuais de alta até março do próximo ano, o que levaria os juros para insustentáveis 14,25% ao ano, algo como 9,3% ao ano em termos reais, descontada a inflação projetada em 4,5% para 2025. O cenário na área dos preços sequer poderia ser comparado ao que se teve no País no começo de 1990, por exemplo, quando a taxa mensal (isso mesmo, mensal) havia escalado para nada menos do que 82,39% em março, acumulando incríveis 437,02% em três meses e 6.390,53% em 12 meses.

Mais claramente, o custo médio dos produtos consumidos pelas famílias havia sido multiplicado praticamente 64 vezes em apenas um ano – como se algo que tivesse custado um real em março de 1989 tivesse seu preço remarcado para R$ 64 apenas um ano mais tarde, com remarcações de preços a cada hora nas prateleiras. Atualmente, com toda certeza, não é este o cenário constatado em seu dia-a-dia pelo consumidor nos supermercados.

Um pouco mais de memória. No mês do lançamento do Plano Real, em junho de 1994, a inflação mensal aferida pelo IPCA havia batido em 47,43%, quer dizer, praticamente 10 vezes mais a taxa inflacionária acumulada em 12 meses até novembro deste ano. No segundo trimestre daquele mesmo ano, a inflação havia acumulado elevação de 202,97% e saltou ainda impressionantes 4.922,60% nos 12 meses finalizados em junho, três décadas atrás.

Falsa sensação de caos

Setores do mercado, com a ajuda de uma imprensa providencialmente “colaborativa”, têm se dedicado a manipular dados da realidade para criar a sensação de caos iminente e, por isso, as manchetes e editoriais escondem a real situação das contas no setor público, que tem desmentido as projeções mais catastróficas, além de reafirmar a despesa com juros como grande fator de desequilíbrio fiscal, agravando ainda mais as distorções na economia.

Em sua projeção mais recente, liberada na semana passada, a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado e que tem se aproximado mais do pensamento econômico mais conservador, aponta que a despesa primária do governo central, incluindo gastos do Tesouro Nacional, da Previdência e do BC, deverá experimentar neste ano uma variação de 3,47% em valores não atualizados, ou seja, abaixo da taxa inflacionária esperada para este ano, próxima de 4,9%.

Descontado o gasto com juros, a despesa primária naquela área deverá saiu de alguma coisa abaixo de R$ 2,130 trilhões para R$ 2,204 trilhões, num acréscimo de R$ 74,0 bilhões em grandes números. Em comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), no entanto, deverá haver uma queda (isso mesmo, queda), com a relação saindo de 19,5% no ano passado para algo mais próximo de 18,7% neste ano. Mais claramente, a tal “gastança” tende a se resumir a um corte de 0,8 pontos sobre o PIB estimado pela IFI para este ano. O dado é a negação da “gastança”, na verdade concentrada em outra área, propositadamente “esquecida” por analistas e grande imprensa.

O déficit primário, ou seja, a diferença entre receitas e despesas, excluídas aquelas de caráter financeiro, a exemplo dos juros, deve literalmente despencar de R$ 230,5 bilhões para R$ 49,3 bilhões na previsão da IFI. Espera-se, portanto, não um “descontrole fiscal”, mas uma redução de R$ 181,2 bilhões no rombo, correspondendo a uma queda nominal de 78,61% na comparação entre os dois exercícios. Seria um dado a ser comemorado, não estivesse a imprensa completamente obliterada por sua campanha para desestabilizar a economia e sua gestão.

A verdadeira “gastança”

Ao contrário do que tentam fazer crer parte do mercado e a imprensa corporativa, as despesas com saúde, educação, aposentados, pensionistas e milhões de famílias de baixa renda não representam ameaça real à estabilidade fiscal. Na verdade, o “choque” de juros iniciado pelo BC e a ser reforçado nos próximos meses, salvo mudanças inesperadas de rumo, tende a agravar o endividamento do setor público.

Os gastos com juros atingiram R$ 773,036 bilhões nos 12 meses encerrados em outubro deste ano, apenas na área do governo central, representando crescimento de 25,79% em relação aos valores acumulados no ano passado, na faixa de R$ 614,548 bilhões – uma alta de R$ 158,488 bilhões, duas vezes maior do que a elevação projetada para as despesas primárias. Como proporção do PIB, o gasto com juros deve subir de 5,66% para 6,73%. A gastança tem nome e endereço, portanto. Para a “esquadrilha austericida”, no entanto, os juros sobem porque não há controle da “gastança”, o que produz déficits e mais dívida. O raciocínio parece desconsiderar a lógica dos dados, que mostram outro cenário, com a dívida sendo puxada pela imposição à economia brasileira dos juros reais mais elevados no planeta.

Os dados divulgados na quinta-feira, 26, pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) anotam um avanço de 9,48% para o saldo da dívida pública mobiliária interna, expressa em títulos emitidos pelo próprio Tesouro, entre dezembro do ano passado e novembro deste ano. O estoque daquela dívida saiu de R$ 6,269 trilhões para R$ 6,863 trilhões, num acréscimo de R$ 594,479 bilhões. Ao longo desse período, no entanto, o Tesouro resgatou, quer dizer, comprou de volta, liquidamente, em torno de R$ 18,675 bilhões.

Teoricamente, tudo o mais constante, como gostam os economistas, o saldo da dívida deveria ter recuado em valor equivalente, já que o governo “pagou” para resgatar uma parcela dos títulos que formam a dívida mobiliária. No entanto, o aumento da dívida esteve concentrado precisamente nos juros apropriados pelo saldo da dívida mobiliária interna, que somaram R$ 613,836 bilhões nos 11 primeiros meses deste ano, o que explica todo o crescimento da dívida, com alguma sobra. O custo médio dessa dívida elevou-se de 10,50% ao ano em novembro do ano passado para 11,64% no mesmo mês deste ano, embora o custo médio da “ dívida nova” emitida pelo Tesouro tenha recuado de 11,68% para 10,86% em igual período.

Front externo

Na área externa, embora tenham sofrido baixa para US$ 339,112 bilhões até o dia 23 deste mês, as reservas internacionais ainda representam praticamente 2,6 vezes mais toda a despesa do País com pagamento de juros e amortizações sobre sua dívida externa, num compromisso estimado para este ano em US$ 131,178 bilhões. Mais claramente, a escalada do dólar deveu-se muito mais a movimentos especulativos no mercado. Há sobra de dólares no Brasil.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.