Impeachment: golpe ou soberania popular?

É preciso reformar o mecanismo, pois caso de Dilma demonstrou: lei atual dá ao presidente da Câmara poder de chantagem. Há vários pontos a serem alterados. Mas o fundamental é devolver ao povo, por meio de referendo, a decisão final

Impeachment: golpe ou soberania popular?

Impeachment: golpe ou soberania popular?

É preciso reformar o mecanismo, pois caso de Dilma demonstrou: lei atual dá ao presidente da Câmara poder de chantagem. Há vários pontos a serem alterados. Mas o fundamental é devolver ao povo, por meio de referendo, a decisão final

OUTRASPALAVRAS

ESTADO EM DISPUTA

Por 

 

Mais de cinco anos se passaram desde que a presidenta Dilma Rousseff foi impedida por decisão final do Senado Federal no dia 31 de agosto de 2016. Mesmo antes da sua abertura, a esfera pública se mobilizou em torno de uma série de questionamentos relevantes relacionados à legalidade, legitimidade e constitucionalidade desse processo, seja quanto ao mérito das acusações formuladas contra a presidenta, seja quanto ao procedimento adotado no interior das casas congressuais. Esses questionamentos foram levados à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, de lá para cá, impera o mais absoluto silêncio institucional sobre essas questões. À exceção da ADPF nº 378, ajuizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para que a Lei nº 1.079/50 fosse recepcionada de modo adequado pela Constituição de 1988, nenhuma das ações ajuizadas teve o seu mérito analisado pelo STF. Aliás, é bom que se diga que a ADPF nº 378 somente teve o seu mérito apreciado em virtude da conversão do julgamento das medidas cautelares nela requeridas em julgamento de mérito pelo Plenário do STF.1

Sendo assim, a legalidade desse processo, a sua legitimidade e constitucionalidade permanecem abertas à discussão cidadã nos termos de uma disputa interpretativa com sentido normativo acerca da compatibilidade desse processo com as disposições constitucionais e legais que disciplinam a normativa do impeachment no direito brasileiro.2 Na esteira desses acontecimentos, ainda hoje o tema do impeachment permanece em pauta no debate público nacional.

Soma-se ao silêncio das instituições do sistema de justiça do país sobre a legalidade, legitimidade e constitucionalidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff o mais absoluto silêncio do presidente da Câmara dos Deputados sobre mais de uma centena de denúncias por crime de responsabilidade apresentadas contra o atual presidente da República, a quem compete o juízo preliminar de recebimento ou arquivamento dessas peças acusatórias. Se algo de positivo pode ser extraído desse estado de coisas é que o tema do impeachment passou a ser objeto de maiores reflexões pelo conjunto dos cidadãos e cidadãs brasileiros.

Nesse sentido, além da formação de um cenário propício para que a teoria constitucional pudesse revisitar o instituto,3 forças político-sociais se organizaram em torno de propostas para rever a sua conformação legal.

O presidente do Senado Federal criou uma Comissão de Juristas, em 11 de fevereiro de 2022, destinada a reformar a Lei nº 1.079/1950.4 Reconhecendo que a legislação regulamentadora do instituto foi apenas parcialmente recepcionada pela Constituição de 1988, assim como o fato de que, quando aplicado, o instituto teria suscitado diversas dúvidas quanto à constitucionalidade no procedimento adotado, a tônica dada pelo ato do presidente do Senado seria, em princípio, o aperfeiçoamento legislativo do impeachment no Brasil.

Recentemente, dentro do esforço para contribuir com o aperfeiçoamento do instituto, Rafael Mafei publicou pequeno texto em torno da defesa da ideia da reforma do impeachment. Em sua opinião, a reforma deveria focar, em primeiro lugar, no papel destinado ao presidente da Câmara dos Deputados no exercício da admissibilidade da denúncia apresentada por qualquer cidadão. Diz Mafei que a Lei nº 1.079/50, em sua redação original, previa o despacho automático da denúncia para uma Comissão Especial, onde o mérito seria julgado. Teria sido apenas depois disso que se passou ao entendimento de que o presidente da Câmara dos Deputados poderia arquivar as denúncias ineptas, cabendo recurso ao plenário. Em suma, em nenhum momento a lei regulamentadora pretendeu dar ao presidente da Câmara a discricionariedade arbitrária do recebimento da denúncia. Esse entendimento seria uma deturpação do sentido original do texto normativo que precisaria ser reformado, inclusive na regulamentação do cabimento de recursos, para evitar a continuidade dessa prática que se transformou em arma de chantagem política do presidente da Câmara dos Deputados contra o presidente da República.5

Outro ponto que merece destaque, seguindo a argumentação de Mafei, é que o impeachment teria, na opinião dele, uma natureza essencialmente política, cabendo aos deputados e senadores o julgamento do mérito. Dessa maneira, a reforma deveria enfrentar a forma do julgamento e não o seu mérito. Como, em geral, a acusação envolve múltiplos fatos, o julgamento não deveria ser um mero exercício de “sim” ou “não”. Nessa toada, as garantias procedimentais forneceriam o padrão de estabilidade a conferir a necessária segurança jurídica.6

Contudo, Mafei se mostra cético quanto ao potencial de uma possível reforma da Lei nº 1.079/50. Ele alerta que “há objetivos de uma possível reforma do impeachment que tendem a ser frustrados pela dinâmica essencialmente política do instituto”. Na sua visão, como os “juízes do impeachment são deputados e senadores, é ilusório imaginar que uma lei mais detalhada mudará o destino dos acusados”. Para confirmar seu argumento, Mafei se vale do exemplo da reforma realizada na própria Lei nº 1.079/50 no ano 2000. Essa reforma, segundo ele, pretendeu, “entre outras coisas, detalhar crimes fiscais. Nada disso impediu que uma acusação juridicamente bamba prosperasse contra a ex-presidente Dilma Rousseff”.7

É preciso cuidado com tais afirmações, pois, do contrário, assumindo como verdadeiras essas premissas, de pouco ou nada adiantaria o próprio debate proposto nesses termos por Mafei. Pois se tudo se passa no campo da política, enquanto terreno supostamente desprovido de qualquer constrangimento legal ou constitucional, então, não haveria, enfim, qualquer distinção entre impeachment e voto de desconfiança. As disposições normativas que disciplinam o processo de impeachment não seriam capazes, nesse sentido, de constranger as autoridades responsáveis por conduzi-lo. O destino do processo, assim como da presidência da República, ficaria ao sabor das maiorias políticas eventuais do Congresso Nacional. Nada poderia ser feito contra a vontade dessas maiorias políticas que eventualmente se dispusessem a desconsiderar os limites impostos a elas mesmas pela normativa do impeachment. Esse deveria ser o preço a ser pago pela suposta natureza essencialmente política do instituto, interpretação com a qual não concordamos.

Sendo assim, o que faz Mafei acreditar que um maior detalhamento do procedimento pudesse impedir abusos de poder por parte dessas autoridades? Esses não seriam também um preço a ser pago pela natureza essencialmente política do instituto?

É preciso estarmos atentos à exigência de juridicidade própria do impeachment que o distingue do voto de desconfiança do sistema parlamentarista de governo. Essa é uma exigência da qual não se pode se afastar, não apenas com relação à definição dos crimes de responsabilidade, como também durante todas as etapas processuais destinadas à admissibilidade, ao processo e ao julgamento da imputação formulada contra o presidente da República.

Com isso, não pretendemos eliminar a presença do elemento “político” que é próprio do exercício das funções típicas e atípicas de qualquer órgão legislativo. O que queremos ressaltar é que, sem a exigência de juridicidade própria do impeachment, não há como sequer cogitar da possibilidade de afastamento do presidente da República, mesmo que um suposto juízo de oportunidade e conveniência da maioria política da ocasião aponte nesse sentido.

Portanto, não são equiparáveis situações nas quais, apesar de demonstradas as eventuais ilicitudes cometidas pelo presidente da República, segundo os tipos incriminadores da Lei nº 1.079/50, optar-se pelo não recebimento da denúncia, pela não instauração do processo ou pela absolvição do presidente da República, com situações nas quais não havendo demonstração da tipicidade da conduta presidencial, conforme estabelecido pela Lei nº 1.079/50, optar-se por instaurar cada uma das fases do processo e, ao final, concluir pela condenação do acusado.

Assim como não pretendemos eliminar do impeachment o seu caráter “político”, também não cabe ser ingênuos ao ponto de acreditar que a exigência de juridicidade própria ao impeachment, que deve embasar a denúncia por crime de responsabilidade, bem como todas as etapas do procedimento destinadas à sua apuração, seja por si só capaz de evitar que processos de impeachment ilegais e inconstitucionais ocorram.

Textos de normas, sozinhos, não podem fazer muito, sendo apenas o início, todavia o princípio indispensável, do processo de concretização normativa. Mas, como bem lembra Friedrich Müller, a textificação do direito moderno é “uma faca de dois gumes”8, porque ela pode ser desvirtuada no sentido de um “constitucionalismo simbólico”, mas também pode ser levada a sério, ou, nas palavras do grande jurista alemão, “ao pé da letra”:

“Todo e qualquer sistema político necessita de legitimidade interna bem como externa. Quanto maior a frequência com que se interprete a constituição efetivamente ao pé da letra – contrariando certas tradições do passado – e quanto mais frequente(mente) isso ocorra publicamente, com ressonância no plano internacional, tanto mais o próprio sistema políticodeverá a longo prazo aceitar que ele mesmo seja tomado cada vez mais ao pé da letra, com base na sua própria constituição.”9

Como Müller também chama atenção, tão bem lembrado por Lenio Streck, textos normativos podem “bater de volta”, podem “revidar”.10 E, no caso aqui discutido, eles podem indicar a exigência de seguirmos sustentando que somente a defesa da legalidade constitucional própria em matéria de impeachment do presidente da República é que permite uma saída adequada ao Estado de Direito e ao sistema de governo presidencialista.

Essa posição possui o mérito de fornecer fundamentos para a cidadania voltar-se criticamente contra as práticas e procedimentos institucionais que se distanciarem das condições necessárias para a válida e regular deflagração e tramitação de um processo de impeachment, levando em consideração a perspectiva de um projeto constitucional aberto ao porvir que, apesar de tropeços e retrocessos, é capaz de se autocorrigir, como aprendizagem social de longo prazo com o Direito e com a política. Não fosse assim, isto é, se esses fragmentos e vestígios de uma racionalidade normativa não estivessem eles mesmos imersos na própria realidade social e política, não seria possível a crítica ao exercício disfuncional de poder pelas autoridades responsáveis pela condução de processos de impeachment em face do presidente da República.11

Reconhecemos a importância do respeito ao devido processo legislativo12 com a ampla concretização do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa que, na tramitação do processo, é condição de possibilidade para a legitimidade constitucional-democrática do exercício do poder de responsabilização política pelo impeachment. E, no entanto, pensar na totalidade do instituto do impeachment na ordem constitucional do Estado Democrático de Direito requer irmos além dos aspectos processuais-democráticos para também refletir sobre os seus efeitos e suas consequências para a ordem constitucional-democrática.

Nesse sentido, em outra contribuição para o debate, Fabio Konder Comparato bem diagnostica que, na América Latina, o instituto, embora formalmente aplicado como previsto nas constituições, acabou servindo mais como mecanismo de resolução de conflitos entre facções oligárquicas, não contando com a participação popular, do que propriamente para o exercício legítimo de responsabilização política. Assim, o autor busca recuperar o impeachment em um regime democrático, o que significaria estabelecer que a soberania pertence ao povo com o respeito aos princípios da liberdade e igualdade.13

Sua interessante proposta é que o impeachment seja realizado em duas fases. A primeira é de aplicação das regras tradicionais na qual o órgão constitucionalmente encarregado de realizar o juízo de responsabilização tome sua decisão. Após, em uma segunda fase, essa decisão deveria ser submetida a um referendo, vez que se o próprio povo elege o presidente não há razão para que outro órgão pudesse destituí-lo. Aduz que, no Brasil, esse procedimento não necessitaria de nenhuma alteração constitucional, bastando a aplicação do disposto no art. 14, II, que prevê o referendo como exercício da soberania popular.14

Pretendemos, aqui, também contribuir com algumas questões para extrair as potencialidades democráticas do impeachment. Assim, em outro momento, foi analisada a interessante adoção da chamada “Morte Cruzada” pela Constituição do Equador, de 2008.15 Em breve síntese, os documentos constitucionais do chamado “Novo Constitucionalismo Latino-Americano” não foram insensíveis ao problema da utilização do impeachment como mecanismo de provocação de instabilidade política, econômica e social que grasse em nossa região, sobretudo pela remoção antidemocrática de governos progressistas.16

Dessa forma, a Constituição do Equador de 2008, tanto quanto a da Bolívia de 2009, articulam conjuntamente mecanismos institucionais e formas de participação democrática como, por exemplo, a revogação dos mandatos e o referendo. A “Morte Cruzada” é um desses mecanismos institucionais que deve ser lido como uma tentativa de solução de crise política severa, por meio da participação democrática. Consiste, basicamente, na possibilidade de o presidente da República dissolver a Assembleia Nacional e também a Assembleia Nacional destituir o presidente da República nas hipóteses constitucionalmente previstas, tendo sido assegurada, em certas hipóteses, a possibilidade de controle prévio de constitucionalidade, no que implicará a própria “morte cruzada” do órgão que tomou iniciativa da destituição ou dissolução do outro órgão, com a convocação de eleições gerais. É interessante observar que esse excepcional mecanismo de solução de conflitos só poderá ser usado uma única vez nos três primeiros anos do mandato.17

Se o impeachment é uma “arma nuclear constitucional”,18 ou seja, serve como mecanismo de dissuasão ou impedimento do abuso de poder por parte de autoridades constitucionais, a “morte cruzada” também concretiza, dentre as suas hipóteses, essa perspectiva para servir como uma forma de evitar eventuais abusos na relação entre Poder Legislativo e Poder Executivo.

Lado outro, poder-se-ia perguntar o que foi feito, então, do impeachment no constitucionalismo equatoriano? Houve a manutenção da sua previsão (art. 12919) para delitos cometidos pelo presidente e vice-presidente da República, desde que com prévio juízo de admissibilidade pela Corte Constitucional. A manutenção do impeachment em conjunto com a “morte cruzada” determina que a responsabilização do presidente da República não tem natureza puramente política, como pretendem atribuir alguns pensadores políticos e juristas. Em verdade, atribuir natureza puramente política ao crime de responsabilidade é desconsiderar sua história e sua própria finalidade. Sua natureza jurídica é também penal e, por isso, atribui-se à Corte Constitucional o prévio exame de admissibilidade.

De qualquer sorte, é interessante observar que, no caso da “morte cruzada”, a consequência para a grave crise política que se instaura entre Poder Legislativo e Executivo é remeter sua solução para a soberania popular através da convocação de eleições gerais.

Essa experiência, mais do que um mero exercício de reflexão acadêmica, nos ajuda a pensar um cenário de aperfeiçoamento constitucional e democrático para o impeachment no Brasil. Assim, no que toca ao juízo preliminar de admissibilidade da denúncia por parte do presidente da Câmara dos Deputados, deveríamos pensar na possibilidade de um prévio controle de constitucionalidade por parte do STF que analisaria, além dos aspectos formais da denúncia, a presença da “justa causa”. Essa previsão teria dois méritos: estabelecer que o crime de responsabilidade tem natureza jurídico-política e, ademais, engajar o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade na fiscalização da separação de poderes.

Após o juízo preliminar de admissibilidade, a denúncia seria recebida e ocorreria a instalação da Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Manter-se-ia, assim, o juízo de admissibilidade constitucionalmente previsto pela Câmara dos Deputados. O julgamento também seria feito pelo Senado Federal, mantendo-se a previsão da presidência por um ministro do STF. Quanto aos aspectos processuais, obviamente deve haver o respeito às garantias do acusado, desde o recebimento da denúncia, assegurando-se a possibilidade de controle do devido processo por parte do Poder Judiciário.

Com o julgamento de procedência e o afastamento definitivo do presidente da República, o vice-presidente deveria assumir temporariamente e ser obrigado, em qualquer hipótese, a convocar imediatamente eleições gerais. É bom salientar que já há uma Proposta de Emenda à Constituição, a de n.º 37/2019, de iniciativa do deputado Henrique Fontana do PT/RS e outros, em trâmite com essa previsão.20

Além de dissuadir a utilização do impeachment como forma de solução de impasse político, determinar o respeito aos direitos e garantias fundamentais na sua tramitação, estabelecer a natureza jurídica e não puramente política do crime de responsabilidade, essa proposta institucionaliza uma história de lutas pelo fortalecimento da soberania popular que tem início, pelo menos, com o movimento Diretas Já! e que possibilita que a cidadania exerça, enfim, o seu próprio juízo político.