FMI à esquerda de Guedes!

A perspectiva de retirada dos estímulos fiscais é um dos fatores que vão restringir o consumo, ao lado dos efeitos persistentes da crise de saúde, diz o FMI.

FMI à esquerda de Guedes!

FMI à esquerda de Guedes!

 

Sergio Lamucci (Valor, 03/12/2020) informa: o Brasil deve manter o teto de gastos em 2021, mas ao mesmo tempo estar preparado para oferecer apoio fiscal adicional se as condições econômicas se mostrarem mais fracas do que o esperado, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). A instituição espera uma queda do PIB de -5,8% neste ano e uma “recuperação parcial” no ano que vem, com uma expansão de +2,8%.

A perspectiva de retirada dos estímulos fiscais é um dos fatores que vão restringir o consumo, ao lado dos efeitos persistentes da crise de saúde, diz o FMI. O investimento, por sua vez, tem a grande capacidade ociosa e a incerteza elevada como entraves.

No seu relatório anual sobre a economia brasileira, divulgado no início de dezembro, a diretoria- executiva do FMI cumprimenta as autoridades do país pelo compromisso de preservar o teto de gastos como uma âncora fiscal para sustentar a confiança do mercado. Ao mesmo tempo, se a situação da economia estiver significativamente pior do que o projetado, o governo brasileiro deve estar preparado para oferecer sustentação adicional bem focalizada, segundo a maior parte dos diretores, que veem com bons olhos a disposição das autoridades do país em considerar essa possibilidade.

Alguns diretores também alertaram contra uma retirada abrupta dos estímulos fiscais, diz o documento do FMI. A equipe econômica, liderada pelo ministro Paulo Guedes, insiste que o teto de gastos será respeitado em 2021, apesar das pressões dentro do próprio governo por maiores despesas públicas no ano que vem.

No relatório, o Fundo também afirma que é importante realocar recursos dentro do teto de gastos para fortalecer a rede de proteção social de modo permanente, além de enfatizar a necessidade de o país avançar com reformas que levem à consolidação fiscal no médio prazo. “Depois da forte resposta à pandemia, as políticas devem se concentrar em assegurar a sustentabilidade da dívida”, afirma o FMI, destacando também ser fundamental limitar os efeitos mais duradouros da doença, de modo a promover um recuperação econômica mais robusta e inclusiva.

O Fundo observa que a dívida bruta deve ficar próxima de 100% do PIB, devido a uma deterioração de 10,6 pontos percentuais do PIB do déficit primário neste ano, e continuar a subir nos próximos cinco anos. “O nível elevado da dívida expõe o Brasil a choques de confiança”, diz o documento, avaliando que aprovar reformas estruturais no Congresso que aumentem o crescimento potencial continua desafiador. A média do endividamento dos países emergentes deve ficar em 62,2% do PIB neste ano, estima o Fundo.

 

Para o FMI, é preciso perseguir com urgência mudanças estruturais que tornem a economia mais competitiva, aberta aos negócios e ao comércio e atraente ao investimento. “A criação de empregos é necessária para acabar com a extrema pobreza de modo duradouro”, afirma o Fundo.

Outra das recomendações do documento é o Banco Central (BC) continuar a cortar os juros básicos e a usar a política de diretriz futura (“forward guidance”) desde que a inflação e as expectativas inflacionárias permaneçam abaixo da meta. Além disso, o Fundo enfatiza a importância de monitorar de perto os riscos à estabilidade financeira.

O FMI manteve as projeções de crescimento para a economia brasileira anunciadas em 5 de outubro, quando foi divulgado um comunicado sucinto da missão da instituição ao país.

No relatório, o FMI diz que a resposta do governo à crise provocada pela covid-19 foi rápida e significativa. Nas estimativas do Fundo, as medidas fiscais e quase-fiscais (envolvendo bancos públicos) totalizaram 18% do PIB, elevando o déficit primário de 1% do PIB em 2019 para cerca de 12% do PIB em 2020.

O FMI destaca que as autoridades implementaram programas emergências de transferência de renda e de retenção de empregos, aumentaram os gastos com saúde, ofereceram apoio financeiro a governos subnacionais e estenderam linhas de crédito com garantia do governo a pequenas empresas. Além disso, o BC reduziu rapidamente os juros em 2,25 pontos percentuais, levando a Selic para 2% ao ano, anunciando ainda medidas amplas de liquidez e alívio de capital.

Segundo o FMI, a resposta à crise evitou uma piora mais profunda da economia, estabilizou os mercados financeiros e amorteceu a perda de renda para os mais pobres. “A atividade no varejo e na indústria voltaram aos níveis pré-covid no terceiro trimestre, mas o setor de serviços permanece deprimido, com um impacto negativo sobre o emprego.”

Na visão do FMI, “boas políticas” haviam posicionado a economia brasileira para decolar em 2020, mas a covid-19 teve um impacto forte sobre a atividade.

Assis Moreira (Valor, 03/12/2020) informa: a pandemia de covid-19 provocou queda ou crescimento mais lento dos salários no primeiro semestre deste ano em dois terços dos países dos quais a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem dados oficiais, segundo o “Relatório Mundial Sobre os Salários 2020-21”.

A previsão é que a crise deverá continuar pressionando fortemente as remunerações para baixo, num contexto já complicado do ponto de vista sanitário, econômico e social.

Além disso, em vários países, como Brasil, Canadá, EUA e França, os salários médios parecem ter aumentado de “maneira amplamente artificial”, mas se trata do chamado efeito composição. Nesses países, a média salarial visivelmente cresceu em razão da supressão de emprego. Ela atingiu essencialmente os que tinham remuneração mais baixa. Essa situação falseou a curva média dos pagamentos.

“No Brasil, os dados mostram artificialmente que os salários aumentaram, mas houve um aumento significativo de demissões na faixa mais baixa de salários, e muitos que continuam no mercado de trabalho estão sobretudo nas faixas do meio e alta”, afirmou Rosália Vasquez-Alvarez, economista da OIT especializada em salários.

Na outra ponta, a pressão à baixa dos salários foi observada em países como Coreia do Sul, Japão e Reino Unido.

Globalmente, o valor do salário médio mensal em 2019 foi de US$ 486 pelo critério de paridade do poder de compra (PPC, que reflete melhor o custo de vida de cada país). Varia de US$ 5 por mês em Uganda a US$ 2.433 em Luxemburgo. Nas Américas, o salário mínimo médio era de US$ 668 (PPC), variando de US$ 289 no México a US$ 1.612 no Canadá.

No Brasil, o salário mínimo em PPC era de US$ 443o quarto mais baixo entre 32 países pesquisados nas Américas.

Também há diferenças entre remuneração mínima em determinadas profissões. Assim, segundo a OIT, um advogado no Rio de Janeiro tem direito a um salário mínimo que excede o salário mínimo federal nos EUA.

Para a OIT, a pandemia continua a amplificar as desigualdades e pobreza entre países e no interior dos países, porque nem todos os trabalhadores foram atingidos pela crise de maneira idêntica. As consequências para as mulheres, por exemplo, têm sido mais graves. Uma estimativa baseada em dados de 28 países europeus mostra que, sem subvenção salarial, as mulheres teriam perdido 8,1% de seu salário no segundo trimestre de 2020, ante 5,4% para os homens.

A crise atingiu de maneira desproporcional também os trabalhadores com salários mais baixos, agravando as desigualdades, inclusive nos países desenvolvidos.

salário mínimo existe em 90% dos 187 países-membros da OIT. No mundo, dos 327 milhões de assalariados com remuneração igual ou inferior ao salário mínimo, nada menos de 266 milhões (15% dos assalariados globalmente) recebem abaixo do pagamento mínimo em vigor, porque a legislação não é aplicada ou porque eles foram excluídos.

Fabio Graner (Valor, 02/12/2020) informa a estratégia da atual equipe econômica composta de “austríacos”, i.é, de adeptos da Escola Austríaca ultraliberal.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vendeu 31 milhões de ações da Vale em pregões normais desde agosto até meados de novembro, além das duas grandes vendas em bloco realizadas nesses meses. Com isso, a participação da BNDESPar no capital da mineradora caiu para 2,22%, de acordo com ofício enviado pelo banco à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no mês passado, logo após a segunda venda em bloco.

As vendas de participações como a da Vale têm por objetivo reforçar o caixa do banco estatal. Além de permitirem que o BNDES redirecione recursos para outros setores de atuação, na área econômica há a leitura de que isso vai permitir à instituição devolver mais recursos de empréstimos tomados do Tesouro Nacional, durante os governos do PT, para atuação anticíclica, atitude não tomada na atual Grande Depressão.

Outras vendas de participações pelo banco estatal também estariam na mira e poderiam já estar até ocorrendo, aproveitando a alta do mercado, embora a instituição não tenha informado se isso ocorreu em novembro, após procurada pela reportagem. O banco também não informou até o momento qual foi o valor obtido com a venda pulverizada dessas 31 milhões de ações. Quando vendeu as 40 milhões de ações no último dia 16, o valor obtido foi de cerca de R$ 2,5 bilhões.

No ofício enviado à CVM, a BNDESPar esclareceu “que, na condição de companhia aberta e de relevante investidora institucional do mercado de capitais brasileiro, examina permanentemente oportunidades de investimento e desinvestimento de seu portfólio”.

“Com as alienações realizadas a partir de 5 de agosto de 2020, a participação da BNDESPar no capital social da companhia, que correspondia a 3,57%, foi reduzida para 2,22%, de modo que essas alienações não consistiram, nos termos do artigo 12, §1o, da instrução CVM no 358/02, em uma negociação relevante, que ensejaria a obrigação de emissão de um comunicado ao mercado”, explicou.

A equipe econômica negocia com o BNDES a devolução de mais R$ 100 bilhões em recursos para o próximo ano. A preferência é isso ocorrer já nos primeiros meses de 2021, de forma a dar mais conforto de caixa para o Tesouro, ao mesmo tempo em que melhora a posição de endividamento do país. Por outro lado, com esses repasses de recursos para a União, o banco perde o poder da alavancagem para fazer empréstimos, reduzindo o seu tamanho e alcance. Isso é parte da estratégia da atual política econômica. Ela prefere abrir espaço para o setor privado atuar.

Além das devoluções do BNDES, a equipe econômica também conta com uma venda parcial de reservas internacionais para reduzir a dívida pública. Com o câmbio mais desvalorizado, o “nível ótimo de reservas” seria mais baixo, permitindo o Banco Central se desfazer de parte desses ativos para melhorar a dívida.

Embora a iminente aprovação de vacinas contra a covid-19 e a redução da incerteza política nos EUA tenham levado as bolsas de Nova York a um novembro altamente positivo, com o Dow Jones registrando seu melhor desempenho mensal desde 1987, especialistas apontam que ainda é cedo para comemorar. Os efeitos da pandemia continuarão sendo notados nas contas de empresas e países durante algum tempo.

“Essa crise deve ser observada por fases e a fase que poderemos chamar de pós- crise deve começar só no terceiro ou quarto trimestre de 2021”, disse ao Valor (03/12/2020) o professor de economia e negócios da Universidade de Michigan, Eric Gordon. Ele lembra: o processo de distribuição das vacinas, após aprovadas, e imunização maciça da população leva tempo.

Segundo o acadêmico, a crise atual é uma das mais graves desde a Grande Depressão, que se arrastou pela década de 1930, e pior do que a de 2008. “A grande crise financeira [de 2008] foi severa, mas a maioria das pessoas não foi afetada diretamente por ela. Quem não trabalhava no sistema financeiro manteve o emprego e assistiu mais como espectador do que hoje”, explicou. “Esta crise afeta grandes e pequenas empresas em mais setores e em todas as localizações geográficas.”

Na visão de Gordon, os bancos estão enfrentando a pandemia em condições aceitáveis graças ao aperto na regulação em consequência da crise anterior, mas outros setores estão sendo duramente atingidos e não voltarão ao que eram antes da covid-19. Aviação civil e hotelaria, segundo ele, são dois dos principais perdedores e devem passar por movimentos de fusão que podem disfarçar a gravidade dos efeitos da pandemia, mas que deixarão menos empregos.

“As companhias aéreas não vão voltar ao normal. A realidade para o setor de aviação civil é especialmente difícil porque não se trata apenas da diminuição da receita, mas também uma mudança no mix dessa receita. Os viajantes de férias geralmente são grandes caçadores de pechinchas e, em um avião, são os que estão voando com a passagem mais barata, enquanto o empresário que viaja a negócios descobriu que aquele deslocamento é caro e talvez desnecessário”, observa Gordon.

Por outro lado, já está em curso um processo de “destruição criativa”, conceito pelo qual o economista austríaco Joseph Schumpeter resumiu o processo de destruição e posterior reconstrução nas economias de mercado, com novos arranjos dentro da sociedade que levam ao progresso econômico. O setor de entretenimento é o melhor exemplo, diz Gordon. “Estamos vendo aceleração da destruição criativa à medida que a tendência é ir cada vez menos aos cinemas e assistir mais Netflix e outras plataformas de streaming, em uma tela bem grande em nossas casas, onde estamos sentados em nossas cadeiras, consumindo nossa comida.”

A percepção que novas oportunidades começam a se colocar à mesa para os mais atentos é compartilhada por agentes do mercado. Na visão do chefe global de investimentos do Credit Suisse, Michael Strobaek, a pandemia continuará a nos ocupar em 2021. “Os governos terão de enfrentar novos surtos e precisarão distribuir uma vacina para sua população assim que ela estiver disponível. Além disso, as pessoas e as empresas precisarão se adaptar ao que acreditamos ser mudanças permanentes na forma como trabalhamos, aprendemos e vivemos”, disse.

Além de estarem atentos aos sinais de quais empresas irão sobreviver, os investidores precisam considerar as consequências dos esforços sem precedentes dos governos para sustentar a economia. Novos estímulos monetários do Fed e do BCE são esperados para este mês e o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, promete um segundo grande pacote fiscal assim que assumir em janeiro.

Não há mágica para lidar com tanta dívida. Depois que a crise passar, os governos vão cortar gastos ou vão dar calote. É dívida demais e, em algum momento, os governos terão que ser tão responsáveis quanto uma família austera na hora de fazer contas, inclusive os de países desenvolvidos”, diz Gordon. Para ele, a inflação vai voltar a subir nos EUA quando a pandemia virar passado, obrigando o Fed a subir juro antes de 2023.

Para países emergentes, com margem de manobra fiscal já reduzida, como é o caso do Brasil, a situação é ainda mais delicada. “Apesar da recuperação encorajadora, o momento sugere um cenário binário à frente. Se o Brasil não conseguir endereçar os problemas fiscais, os preços dos ativos podem se deteriorar mesmo em um ambiente externo favorável. Por outro lado, se conseguir avançar com reformas e controle dos gastos, os ativos domésticos têm espaço para uma performance melhor que a de seus pares”, disse o estrategista-chefe do Mizuho Bank para Brasil e América Latina, Luciano Rostagno.