Belluzzo: o Brasil é um Ford bigode

"Você não tinha rentismo na China, para ganhar tinha que investir na produção"

Belluzzo: o Brasil é um Ford bigode

Belluzzo: o Brasil é um Ford bigode

"Você não tinha rentismo na China, para ganhar tinha que investir na produção"

 

Por César Locatelli

 

27/06/2021 11:47

1908 - O Modelo T começou a ser vendido no Brasil. Logo caiu no gosto popular e ganhou o carinhoso apelido de Ford Bigode, devido às duas alavancas na barra de direção. (Reprodução ford.com.br)

Créditos da foto: 1908 - O Modelo T começou a ser vendido no Brasil. Logo caiu no gosto popular e ganhou o carinhoso apelido de Ford Bigode, devido às duas alavancas na barra de direção. (Reprodução ford.com.br)

 

O simpático carrinho, usado pelo professor Belluzzo para definir o estágio atual da economia brasileira, era o que havia de mais avançado no início do século XX. Há mais de 100 anos, portanto. Sua afirmação completa, no entanto, foi que “o Brasil é um Ford bigode dirigido por um motorista bêbado”. Simbolizando não somente a regressão do desenvolvimento brasileiro, mas a condução das políticas econômicas e o lugar onde o debate econômico no país está enclausurado: completamente fora do que acontece no mundo.

Luiz Gonzaga Belluzzo ministrou a última aula do curso Decifrando o economês e desmontando o mito da austeridade fiscal, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e buscou mostrar alternativas sustentáveis e inclusivas para a economia brasileira.

Para exemplificar e mostrar a guinada do governo dos Estados Unidos na direção de um protagonismo sensivelmente maior do Estado, ele citou um importante relatório divulgado há poucos dias, pelo governo norte-americano, com a tarefa de recomendar ações para “construir cadeias de suprimentos resilientes” no país.

A pandemia deixou evidente a dependência de produtos finais e intermediários manufaturados no exterior. O relatório é resultado de uma ordem executiva de Biden que determinou a análise de cadeias críticas para identificar riscos, encaminhar soluções para as vulnerabilidades e desenvolver uma estratégia para promover a resiliência.

Em suas 250 páginas, o relatório, não por acaso, menciona a China mais de 400 vezes, aclarando o incômodo com a escalada chinesa. O relatório resume seus resultados:

“Dividimos as recomendações em seis categorias:

1) reconstruir nossas capacidades de produção e inovação;

2) apoiar o desenvolvimento de mercados com alto padrão de produção, de trabalho e de qualidade do produto;

3) alavancar o papel do governo como participante do mercado;

4) fortalecer as regras de comércio internacional, incluindo mecanismos de fiscalização do comércio;

5) trabalhar com aliados e parceiros para diminuir vulnerabilidades nas cadeias de abastecimento globais; e

6) estabelecer parceria com a indústria para tomar medidas imediatas para lidar com a escassez existente.

Se por um lado os EUA parecem caminhar para uma decisiva intervenção do Estado para a correção da rota neoliberal dos últimos 40 anos, os governantes brasileiros, assim como a mídia, não se empenham em discutir nossa regressão a um país meramente exportador de bens agrícolas e primários, extremamente dependente da importação, até mesmo de fármacos básicos.

Belluzzo se revela aflito com o grau de desorganização do esquema institucional que garantiu nosso crescimento e desenvolvimento dos anos 1930 aos anos 1980. “Houve uma continuada desarticulação das políticas que garantiram o crescimento brasileiro de 7% ao ano, destruições estruturais na forma que organizávamos o crescimento. Havia um ecossistema composto pelo setor público, pelo setor privado, por bancos públicos”.

“A participação da indústria de transformação no PIB brasileiro caiu de 35% para 11% hoje. Perdemos indústrias de peças e componentes. Perdemos até empresas estrangeiras de bens de capital que vinham de diversos países do mundo. Tínhamos um sistema industrial integrado e o perdemos”, complementa ele.

No setor eletroeletrônico nosso retrocesso é elevado ao quadrado: além da destruição da indústria que tínhamos, não acompanhamos o salto tecnológico dos anos recentes. A imagem do “fordinho” de 1908 volta à mente: “a regressão da economia brasileira foi dolorosa, estávamos no estado da arte e hoje temos deficiências graves de articulação entre os setores. E a preocupação revelada por essa administração é privatizar, enquanto o mundo tenta restabelecer as relações entre o setor público e o setor privado com planejamento, com política industrial”.

Voltando ao relatório do governo norte-americano, Belluzo reforça nosso descompasso com as transformações por que passa o mundo. “O documento da Casa Branca foca quatro cadeias críticas: semicondutores, baterias de alta capacidade, minerais e matéria primas críticas e produtos farmacêuticos e insumos farmacêuticos ativos.”

Além do impacto causado pela incapacidade norte-americana de atender a demanda provocada pela pandemia por respiradores, equipamentos de proteção individual etc., a administração Biden-Harris inquieta-se com a China, que, segundo o relatório:

- refina 60% do lítio mundial e 80% do cobalto, essenciais para baterias de alta capacidade, por exemplo para carros elétricos;

- controla 55% da minas de terras raras e 80% do seu refino;

- detém mais de 75% da capacidade fabricação de baterias avançadas; e

- compete com a Índia pelo mercado norte-americano de remédios, mas é a origem de 70% da importação indiana de insumos farmacêuticos ativos.

O protagonismo dos rentistas, pessoas cuja renda provém exclusivamente de aplicações financeiras, na determinação das políticas econômicas brasileiras está na origem do nosso atraso: “no Brasil, o rentismo quer continuar mandando. Isso é a terceira via. A afirmação dos economistas conservadores brasileiros de que a indústria não tem importância é incompatível com um país de mais de 210 milhões de habitantes”.

Belluzzo acrescenta a crítica de que Guedes não menciona a indústria e, ainda, reduz tarifas de importação para, pretensamente, “oxigenar” a indústria e aumentar a produtividade: “aumentar a produtividade é uma expressão vazia, não se faz sem avanço tecnológico.” Ou como dia o relatório da Casa Branca: “quando a manufatura ruma para o exterior, a inovação a segue”.

“O foco na maximização dos retornos de capital de curto prazo levou ao subinvestimento do setor privado em buscar a resiliência de longo prazo. Por exemplo, as empresas no Índice S&P 500 distribuíram 91 por cento do lucro líquido aos acionistas em recompras de ações ou dividendos entre 2009 e 2018. Isso significou um declínio da parcela da receita corporativa destinada a pesquisa e desenvolvimento, novas instalações ou processos de produção resilientes”, afirma o relatório norte-americano.

Belluzo criticou duramente os economistas ligados ao setor financeiro, praticamento os únicos a frequentar com assiduidade os meios de comunicação corporativos brasileiros: “o pessoal da Faria Lima não entende nada, eles são de baixo nível mesmo”. E completa: “a discussão no Brasil é deplorável, só se discute a gestão de curto prazo”.

“Eu vivi a época em que havia a expectativa que o país ia dar certo. Tínhamos uma classe dirigente comprometida com o desenvolvimento do país. Depois da crise da dívida isso foi se dissolvendo. O Plano Real, celebrado pela queda da inflação, marca o começo da destruição da indústria. Impossível sobreviver com uma taxa de juros real de 22% ao ano.”

Lembrando a “política de fabricar o fabricante”, a que Gramsci se referia, ele lamenta que os empresários produzidos por Getúlio Vargas tenham desaparecido: “nosso processo liberal e tão atrasado”. Ele brinca que a letra “i”, de FIESP, agora quer dizer importadores: “o Brasil perdeu o bonde e a China montou no bonde”.

“Você não tinha rentismo na China, para ganhar tinha que investir na produção”.