Quem é o cidadão de segunda categoria?
Judiciário legitimou que presidente não promova prevenção ao contágio durante maior crise sanitária do século

Judiciário legitimou que presidente não promova prevenção ao contágio durante maior crise sanitária do século
VICTOR NEIVA
Em 1961, o Experimento Milgram, ao verificar pessoas infringirem choques de 450 volts em desconhecidos, estabeleceu uma das mais consistentes verdades científicas sobre comportamento humano: mais de 60% das pessoas tendem a provocar sofrimento em outra se estiverem seguindo orientação de autoridades.
Aqui e agora, essa constatação nos traz uma conclusão inexorável: sem o exemplo de nossos líderes, os esforços para controlar os efeitos da Covid-19 são esvaziados. Eis a razão do ajuizamento, por mim, de ação popular para obrigar o presidente da República a usar máscara de proteção, a União fazer com que seus servidores a usem e o Distrito Federal a fiscalizar o seu uso.
O juiz Renato Borelli, em decisão irretorquível, concedeu a medida liminar afirmando o que deveria ser uma obviedade ululante: “o presidente da República possui obrigação constitucional de observar as leis em vigor no país, bem como de promover o bem geral da população, o que implica adotar as medidas necessárias para resguardar os direitos sanitários e ambientais dos cidadãos, impedindo a propagação de um vírus que se alastra rapidamente”.
A enorme repercussão do caso tornou a causa estratégica para o governo. Assim, o não uso de equipamento para prevenir contágio tornou-se uma das causas mais relevantes da República. Nada menos que o AGU, o PRU da 1ª Região, o PGU e a Coordenadora Geral de Ação Estratégica da AGU assumiram sua defesa.
O AGU então afirmou[1] que “qualquer Poder está dispensado de cumprir uma ordem absurda”, que a decisão judicial tornava o presidente um “cidadão de segunda categoria”, pois “quando se defere uma liminar para obrigar o presidente da República a usar uma máscara, que estamos todos obrigados a usar em dadas circunstâncias, também é menosprezar o presidente da República enquanto cidadão”.
Distribuído o recurso, telefonei pedindo audiência com a desembargadora. Apesar de só poder me atender no dia 7 de julho, a decisão veio bem antes. Olvidando julgados do STJ em entendimento contrário, apoiou-se exclusivamente em precedentes de corte ordinária para desconhecer a ação popular.
Mais do que isso, em teratológica supressão de instância, extinguiu monocraticamente o feito sem julgamento de mérito, sem sequer abrir espaço para o recorrido se manifestar, como manda a lei. Em 20 anos de advocacia em Brasília, nunca vi ou ouvi falar de decisão semelhante.
E assim, “o cidadão de segunda categoria” teve a defesa gratuita pelo Estado e uma atuação vertiginosa do Judiciário para encerrar o assunto, inclusive com um rito processual exclusivo. E tudo isto para legitimar que o líder da nação não promova a prevenção ao contágio durante a maior crise sanitária do século.
Pergunto-me como explicar às mães sem pensão, aos trabalhadores sem salários e aos segurados sem benefício em que categoria eles estão para precisar do Judiciário para ter o cumprimento da lei. Quanto aos adoecidos, nem a indagação é possível, apenas acalento e resignação.