Qual o preço  da governabilidade?

Qual o preço  da governabilidade?

 

 

Qual o preço  da governabilidade?

 

Roberto Amaral*
 
Nos dois pronunciamentos oficiais proferidos no dia de sua posse, no Congresso Nacional e, já presidente, no Palácio do Planalto, diante de uma multidão em estado de graça, Lula anunciou a  divulgação de um dossiê sobre a situação em que encontrara o país. Algo antecipatório do que poderíamos esperar como pronunciamento oficial sobre o “estado da nação”. Nenhuma das duas expectativas, a anunciada e a desejada, todavia, se confirmou até aqui. Múltiplas podem ser as explicações, e a principal delas é certamente a tentativa de golpe de 8 de janeiro (que deve ser grafado doravante como “dia da infâmia”) e suas consequências, que ainda nos acompanharão por muito tempo, quando sabemos que a crise militar (de que a insurgência protofascista é irmã germana) está longe de ser enfrentada, o que significa que a insegurança institucional permanecerá como a marca nodal da república, que não se livra da maldição de seu nascimento: um golpe de Estado levado a cabo pela oficialidade do exército sediado na Corte, ponto de partida da curatela mantida até hoje pelos fardados sobre a sociedade civil.

Continuamos, assim, na expectativa do pronunciamento presidencial, que requer, hoje, tanto quanto a denúncia do quadro nacional herdado, a exposição didática do projeto de governo: o que fazer,  em face das circunstâncias econômicas, políticas e sociais adversas, ou seja, como enfrentar a velha díade conciliar ou avançar,  quando o mandato que a História lhe impôs foi abrir caminho  para futura  construção  de uma sociedade menos iníqua,  tarefa de realização tão necessária quanto difícil.

Distanciando-se, e muito, dos tempos vividos desde a redemocratização de 1985, e principalmente distanciando-se dos idos de 2022, Lula assume e governará sob condições as mais adversas, comparáveis somente àquelas que acompanharam o segundo governo Vargas (1951-1954) e se anteciparam à posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, precedida de uma tentativa de golpe civil-militar e de seguidas patuscadas levadas a cabo por oficiais da FAB (Aragarças e Jacareacanga), afinal impunes e reincidentes. Mas naquele então ainda sobrevivia entre os fardados, principalmente no exército, um contingente significativo de oficiais e suboficiais identificados como legalistas. Havia mesmo um corpo de esquerda e, nele, um pequeno núcleo comunista. Essa ambiência, que contava ainda com a presença de inumeráveis lideranças fardadas na sua maioria construídas a partir de 1930, proporcionou a emergência do Marechal Lott, oficial conservador mas legalista, que  seria o candidato das esquerdas em 1960, após assegurar a posse de JK (coube-lhe liderar o contragolpe de 11 de novembro  de 1955) e ser seu ministro da guerra. Essas forças foram integralmente dizimadas nas três armas pela ditadura instaurada em 1º de abril de 1964, um dos desdobramentos da conciliação de 1961 - quando, em condições de avanço, as lideranças progressistas optaram por aliar-se à reação e ao golpismo. Refiro-me à aprovação da emenda parlamentarista, pondo por terra os desdobramentos previsíveis da vitoriosa campanha pela legalidade, um dos grandes momentos de manifestação de uma identidade nacional.  O resto são consequências, e elas vêm depois, como lembrava o Conselheiro Acácio.

Vencida a oposição militar, JK comporia com o grande capital (apaziguou-se com a burguesia paulista e se entendeu com o Departamento de Estado estadunidense), e assim logrou, sem maiores percalços, concluir seu mandato de cinco anos, feito que não fôra concedido a Getúlio Vargas, que viu levantar-se contra si uma tríade luciferina: os militares, o imperialismo e a grande burguesia paulista, mobilizando recursos e regendo a manipulação ideológica, a cujo serviço bem remunerado se pôs a grande imprensa.

Ficou a lição: no Brasil, as forças progressistas podem até vencer as eleições, mas para governar precisam se pôr em comunhão com os reais donos do poder, a minoria dos 1% de bilionários que impera sobre a soberania popular. É a verdadeira espada de Dâmocles que a direita agora suspende sobre o governo do presidente Lula, convocado a fraturar  a ordem do atraso.

As eleições de 2002 se realizaram ao termo dos dois mandatos de FHC, de estabilidade monetária e democrática, e de alguns avanços, alimentados ainda pelos ecos da campanha das Diretas Já, a derrota política da ditadura e a grande conquista da constituinte, que nos legaria uma Constituição democrática e em muitos aspectos progressista, a promessa de superação do passado autoritário e a abertura para avanços políticos e sociais. Era a “Carta Cidadã” de que tanto se orgulhava Ulysses Guimarães, o grande líder liberal construído pelo processo histórico. Voltando: a luta contra a ditadura e os governos da Nova República criaram as condições políticas que ensejariam a eleição do um ex-metalúrgico e a inauguração de um governo de centro-esquerda. Havia o que festejar.

O cenário encontrado em 2022, porém, seria assustadoramente inverso. Vivíamos  o auge de um projeto fascista (de cuja herança nefasta ainda não nos livramos), que associava a  essencial base militar ao apoio em significativas camadas populares,  fato novo a registrar. Ao desolador quadro interno se somaria a crise internacional, dominada não apenas pela guerra, mas, e de forma ainda mais condicionante, pela ascensão da extrema-direita, na Europa e nos EUA, e pela agudização da disputa pela hegemonia planetária, da qual a “guerra da Ucrânia” é peça dramática num jogo ainda em seus primeiros lances. 
 
De outra parte, e não menos grave, a caserna, que bem recebeu FHC em 1985, devota ódio hepático ao presidente Lula, que neste seu terceiro mandato enfrenta resistências de toda ordem, a começar  por  inédita  polarização política, e quando o país herdado se vê em face de crise fiscal, crescimento do desemprego e da fome, queda da atividade industrial e destruição do sistema nacional de educação, ciência e tecnologia. E, coroamento inescapável, persistem os brutais desníveis regionais, que ameaçam a federação.


O país que renunciou à industrialização chega a 2003 dependente das exportações de commodities e, principalmente, de alimentos que a concentração de renda imoral nega ao seu povo: segundo dados do IPEA, o agronegócio respondeu por 47,6% do total das exportações brasileiras em 2022. E, assim, reproduzindo no terceiro milênio a alienação que nasce com a Colônia, queda-se dependente do mercado internacional e dos preços impostos pelos importadores, enquanto internamente estimula uma economia crescentemente desapartada da geração de empregos e da inovação tecnológica. Toda a política econômica está, ao fim e ao cabo, subordinada ao império inalcançável de um Banco Central recessivista, cuja política de juros altos, a serviço do grande capital, visa explicitamente a impedir a retomada do desenvolvimento econômico e,  assim, a recuperação do emprego, sem o que o governo de centro-esquerda não terá futuro. A direita sabe disso. Daí a exigência de cortes de gastos e atrofia do Estado. 


Aonde iremos chegar abraçando a tese do andar de cima (também chamado de "mercado") segundo a qual a "responsabilidade econômica" exige a atrofia do Estado? Conseguiremos, nessa toada, realizar um governo minimamente reformista, que ao menos amenize a insatisfação popular e adie o retorno da extrema-direita ao poder?
 
O quadro, tentativamente resumido, grave em face de qualquer governo, revela-se mais e mais desafiador quando Lula se vê garroteado por um Congresso reacionário no qual se encontra em minoria  desesperadora, que coarta qualquer iniciativa, senão ao preço de concessões político-programáticas, coabitação com a direita e liberações de verbas públicas  e outras prebendas que ao final fortalecem o mando eleitoral do conservadorismo, seu adversário por princípio. Surge o novo sátrapa, coronel de paletó e gravata, mais poderoso que o personagem de Victor Nunes Leal, pois mandante em todo o espectro nacional, ultrapassando os limites do campo atrasado, e reinando nas cidades e nas grandes urbes, no Congresso e onde quer que se faça política. O atual presidente da Câmara dos Deputados é o mais qualificado exemplar moderno de agente do atraso, da política do “toma lá dá cá” que expele o interesse público. As concessões políticas, a porta de fuga ao círculo de giz caucasiano imposto ao mandato pela reação, podem, porém, quando conscientemente táticas, e assim condicionadas,  ser vistas como inevitáveis, um determinismo das contingências, pois a prioridade  essencial de qualquer governo é mesmo sua sobrevivência. O preço está sempre em aberto, medido pela correlação de forças políticas e populares. A capacidade de mobilização popular determinará o futuro do governo.

Como tentativa  de abertura de diálogo com o sistema pode ser entendido o arcabouço fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad, dependente do Congresso. Pode ser que conserte o desajuste fiscal, mas dificilmente poderá assegurar o cumprimento das promessas de campanha. Continuaremos longe de uma política de impostos progressivos, e a carga tributária continuará pesando sobre os assalariados e os mais pobres, condenados na compra do arroz e do feijão a pagar o mesmo imposto cobrado à família Marinho e aos especuladores da Faria Lima. É o preço imposto pelo perigoso encontro da fragilidade partidária com a fragilidade política, cujo antídoto disponível na ordem democrática é a mobilização popular, dependente de vida sindical intensa (como essa que se vê presentemente na França, na resistência à reforma da previdência, que passou em calmaria em nosso país), e de partidos e organizações de esquerda, de que tanto carecemos.

São muitos os obstáculos ao avanço necessário após o recuo imposto a partir do golpe de 2016. 
A tragédia brasileira é uma construção social e política consolidada pela ausência de uma vontade revolucionária, nada obstante as oportunidades oferecidas e seguidamente recusadas. É a política vitoriosa da casa-grande construída peça a peça desde a Colônia e persistente em todo o processo político brasileiro, no Império escravagista tanto quanto na República autoritária. Vivemos sua absurdidade. O desmonte dessa ordem não pode ser cobrado do governo recém-instalado, ainda um projeto.

Diferentemente dos governos, justificadamente pragmáticos até na necessidade básica de sobreviver, o movimento social, muito especialmente os partidos de esquerda, deve compreender que, se nem tudo o que nos molesta pode ser mudado, é imperioso que tudo o que nos molesta seja combatido. Esse é o desafio presente. Sem arrefecer a defesa do governo Lula, manter firme a batalha de princípios, até para que as concessões inevitáveis sejam as mínimas possíveis e se possa conservar a resistência ao sistema, construindo também, passo a passo, tijolo por tijolo, a nova sociedade livre da iniquidade das desigualdades sociais.

***

Perguntar não ofende – O que ocorre no terceiro andar do Planalto? Ouvidos que se recusam a ouvir, ou vozes que se calam quando deveriam falar?
 
"Novo” ensino, velha segregação – Agiu acertadamente o ministro da Educação, Camilo Santana, ao anunciar que logo suspenderá o cronograma de implantação do “Novo” Ensino Médio, bem como seus efeitos para o Enem 2024. Carece de sentido um governo liderado pelo PT, partido do professor Paulo Freire, empurrar goela abaixo da sociedade a “reforma” de Temer-Bolsonaro que aprofunda o que o nosso sistema educacional tem de pior, ao condenar o filho do pobre a receber um adestramento de segunda categoria, enquanto os “bem-nascidos” acessam um ensino que os prepara para o exercício da cidadania. Parabéns aos estudantes e educadores que se mobilizaram contra o mostrengo.