Os juristas do boi, da bala e da bíblia

É necessária a construção de uma agenda de pesquisas brasileira sobre as mobilizações jurídicas de coalisões conservadoras

Os juristas do boi, da bala e da bíblia

Os juristas do boi, da bala e da bíblia

É necessária a construção de uma agenda de pesquisas brasileira sobre as mobilizações jurídicas de coalisões conservadoras

 

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Crédito: Seapa

“O Direito é ontologicamente conservador?” Eis uma das perguntas centrais dos estudos sócio-políticos sobre o Direito. Como estrutura, ele compõe um emaranhado de relações marcadas por forte desigualdade. Como função, é inescapável seu caráter mantenedor da estabilidade e da “segurança jurídica”. Como sistema, sua semiautonomia o mantém deveras autorreferenciado, pouco poroso às mudanças sociais.

 

No entanto, como interação, o Direito nada mais é que contextual, local, contingente e situacional. Podemos afirmar que uma determinada situação é jurídica quando conta com ao menos um jurista reivindicando eficazmente um monopólio profissional. Se quisermos ir um pouco além, é jurídico todo o contexto em que pessoas fazem referência à ação concreta de atores legais para atribuir sentido a qualquer objeto. Tal abordagem constrange definitivamente os postulados do Direito sobre si mesmo e sua validade, pois, além de separar o doutor da sua doutrina, desarticula a retórica das fontes do direito, não as buscando em outro lugar que na vida cotidiana, sobretudo na dos juristas.

Foi com base nas três primeiras abordagens que a literatura clássica dos estudos sócio-políticos se desenvolveu. Com uma complexificada daqui, uma explicitação de nuances dali, quatro décadas de estudos reiteram o caráter conservador do Direito, tanto no tocante à sua impermeabilidade às mudanças sociais, quanto no que concerne sua tendência política ao status quo.

Foi nos anos 1970 que o interacionismo e os métodos qualitativos começaram a interpelar os estudiosos dos fenômenos jurídicos. A publicação de “The Politics of Rights” em 1975, de Stuart Scheingold, foi um grande marco na compreensão sociológica de que o Direito não é elemento externo à política e para além, de que o Direito pode ser objeto de usos e mobilizações políticas por qualquer grupo que se mobilize e se coordene visando este objetivo. O autor visava apontar que ao lado do já conhecido mito dos direitos, se deveria observar igualmente a não tão estudada política dos direitos.

O quadro empírico de Scheingold era o da luta dos movimentos pelos direitos civis da segunda metade do século XX nos EUA. Nos vinte anos que se seguiram uma volumosa corrente de estudos se debruçou sobre a compreensão dos usos políticos do Direito por parte de movimentos pela igualdade racial, de gênero, salarial, meio ambiente, liberação do uso de drogas, do aborto e das uniões homoafetivas.

Pode-se dizer que esta corrente de estudos conheceu seu ápice na polêmica entre Gerald Rosenberg (1991) e Michael McCann (1994). Em um estudo quantitativo, Rosenberg demonstrou que eram nos tribunais que os movimentos sociais encontravam menor eficácia para a realização prática de suas pautas, enfatizando seu caráter constrito, não dinâmico, em alusão à porosidade às mudanças sociais pela via da ação coletiva. McCann, em um estudo qualitativo, demonstrou o caráter catalizador dos usos políticos do Direito pela via dos tribunais, sobretudo na relação entre a emergência do advogado militante e o robustecimento das organizações engajadas nos direitos civis.

Na França, o desafio do pressuposto do caráter ontologicamente conservador do Direito foi observado na polêmica entre Alain Bancaud (2004) e Liora Israël (2005). Diferentemente da mudança social, o contexto dos autores franceses era o de crise política. Os impressionava o fato de que o mesmo corpo judiciário que aderiu ao governo Pétain no período de Vichy, também foi o principal operador da posterior depuração dos colaboradores do nazismo. Em estudo documental, Bancaud demonstra como o judiciário se reorganizou, em várias dimensões, diante da abraçada tarefa de condenar resistentes à morte e deportar judeus, num contexto de forte radicalização política e ideológica. Por outro lado, é Israël, num estudo se valendo de fontes históricas outras que os documentos oficiais, pôs em evidência alguns padrões de atuação de juízes e advogados em franca resistência ao nazismo, desde o desenvolvimento de sofisticadas teses de defesa até a destruição de provas e o vazamento de informações que permitissem o resgate de condenados.

No Brasil, a nova Sociologia Política do Direito tem muito se debruçado sobre os usos e mobilizações políticas dos tribunais por parte de coalizões progressistas. Tanto no contexto empírico de crises políticas (resistência ao Estado Novo e ao regime autoritário pós-1964) quanto no de mudança social (engajamento de juristas nos movimentos sociais organizados). Todos os articulistas desta coluna são notáveis exemplos, mas não os únicos, de pesquisadores que vem se dedicando à esta temática.

No entanto, uma pergunta fica: ao desafiar o caráter ontologicamente conservador do Direito, não se pode imaginar uma literatura pregressa informada apenas pelos usos políticos empreendidos por coalisões conservadoras? Em outras palavras: o advento das resistências pelo Direito e usos progressistas por parte de movimentos sociais não desafiou apenas o caráter ontologicamente conservador do Direito em termos histórico-concretos. Demonstrou que ele nunca existiu!

Isto nos coloca dois desafios. Em primeiro lugar, é necessário rever as operações “clássicas” do que se concebe como jurídico, remontando à infância dos Estados-Nação, como verdadeiros usos e mobilizações políticas do Direito. Em segundo lugar, é necessária a construção de uma agenda de pesquisas brasileira sobre as mobilizações jurídicas de coalisões conservadoras.

Nos EUA, já é emergente a corrente de estudos que se vale da tradição de Scheingold para compreender a ação organizada por juristas pela via dos tribunais que converge com as pautas nucleares, supremacistas, antivacinação, religiosas, enfim, ligadas à virada conservadora por lá observada recentemente. Ann Southworth (2008) e Jefferson Decker (2016) são dois de seus principais autores.

Por razões evidentes, o segundo desafio proposto urge entre nós brasileiros: investigar os eventuais usos e mobilizações políticas relacionadas a coalisões componentes da nossa virada conservadora. Este é um dos principais objetivos atuais do DECISO – Núcleo de Estudos em Direito e Ciências Sociais do IESP-UERJ. Assim, a proposta de reversão de agenda de pesquisa via objeto de estudo não diverge de muitos estudos sérios até aqui realizados, mas pretende, pela via de uma empiria inusual, desafiar e tensionar limites heurísticos da contemporânea Sociologia Política do Direito brasileira.

Desta forma, três teses se preparam no âmbito do DECISO levando esta proposta à sério. No lugar de compreender as associações progressistas de várias corporações jurídicas ou a advocacia engajada em pautas dos mais diversos movimentos sociais, se dedicam ao estudo dos juristas do “boi”, da “bala” e da “bíblia”. Aqui fazemos clara alusão ao apelido que ganharam três frentes parlamentares reivindicadamente conservadoras: a do agronegócio, a das forças de ordem, e a dos religiosos.

Os juristas do “boi” serão observados a partir da análise da atuação dos “advogados do agronegócio”. Investindo na criação de uma nova sub-área do Direito, o Direito do Agronegócio, esses advogados têm atuado na formulação de políticas públicas para o setor, com grande centralidade do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA). Há, noutra frente, um investimento em ações judicias junto aos Tribunais Superiores, capitaneado, sobretudo, pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A partir da reivindicação de uma competência profissional, esses advogados evidenciam formas de um profissionalismo militante, um compromisso militante com o agronegócio que se concretiza a partir do uso político do direito.

Os juristas da “bala” serão observados a partir da atuação de dois movimentos conservadores oriundos do Ministério Público e da magistratura: Movimento de Combate à Impunidade (MCI) e a Associação Nacional Ministério Público Pró-Sociedade (MPPS). Apesar da ainda incipiente mobilização do direito no que diz respeito à litigância, tais grupos se organizam principalmente em torno da tarefa de gerar, legitimar e difundir ideias que suportem a mudança legal, em especial no que se refere a esfera do direito penal. Em suas atividades, defendem a necessidade de implementação de um direito penal mais severo, além de criticar e deslegitimar ideologias que são vistas por seus membros como perniciosas para o sistema de justiça criminal, uma vez que fomentariam a impunidade e a desordem social.

Os juristas da “bíblia” serão vistos, principalmente, a partir da análise da atuação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), que se destaca no âmbito da mobilização religiosa do direito, tanto na litigância em processos centrais da esfera pública, quanto na formação e orientação de um corpo de membros que compartilham de sua mesma cosmovisão.