"O silêncio que canta por liberdade" é a nova série documental sobre a censura na música brasileira

Gilberto Gil e Gal Costa, entre outros cantores brasileiros de carreira internacional, revisitam a censura na música, na nova série "O Silêncio que Canta por Liberdade", dirigida por Úrsula Corona.

"O silêncio que canta por liberdade" é a nova série documental sobre a censura na música brasileira

Gilberto Gil e Gal Costa, entre outros cantores brasileiros de carreira internacional, revisitam a censura na música, na nova série "O Silêncio que Canta por Liberdade", dirigida por Úrsula Corona.

Tanques do exército brasileiro chegam ao Palácio da Guanabara, dia 01 de abril de 1964, no Rio de Janeiro, durante o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart. ©Getty ImagesTanques do exército brasileiro chegam ao Palácio da Guanabara, dia 01 de abril de 1964, no Rio de Janeiro, durante o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart. ©Getty Images

Gilberto Gil e Gal Costa, entre outros cantores brasileiros de carreira internacional, resgatam a memória da censura da ditadura militar na música, na nova série documental O Silêncio que Canta por Liberdade.  A série, que já está em produção, é realizada pela atriz Úrsula Corona e tem estreia mundial programada para o segundo semestre de 2021. Estruturada a partir de documentos originais extraídos de órgãos brasileiros de censura e imagens de arquivos, a série vai contar  também com os depoimentos de músicos, produtores e compositores. 

Foi a 2 de abril de 1964 que os militares, apoiados pelos Estados Unidos, derrubaram o governo de João Goulart e tomaram o poder. Estava instaurada a Ditadura Militar no Brasil. Milhares de pessoas foram agredidas, torturadas e assassinadas e outras tantas desapareceram. Sob o pretexto nacionalista de redemocratizar o país limpando-o da escória (como comunistas e outros seres pensantes que se afiguravam possíveis ameaças à ditadura), inaugurou-se um período de terror (e vergonha) nas terras de Vera Cruz. Na luta contra a opressão estavam os artistas: atores, músicos, cineastas, artistas plásticos, poetas, escritores... Cada um contribuía com a sua arte, questionando os factos e informando a população, apesar de censurados pelos órgãos opressores. E, como bons artistas, os músicos populares brasileiros descreveram os horrores da ditadura até ao último detalhe. Descrições que perpetuam até os dias atuais, trazendo à tona toda a cobardia aplicada contra o povo brasileiro, e que não deixam esquecer as atrocidades cometidas. 

Na década de 60, a censura tentou calar quem tinha algo a dizer. Mas alguns músicos encontraram uma brecha e deixaram para a posterioridade o seu pesar. Um dos mais ilustres artistas militantes foi Chico Buarque. Ao lado de Gilberto Gil, compuseram a canção Cálice, que reflete a situação que se vivia na época. Cálice traz referências ao Santo Cálice de Cristo e a uma passagem bíblica ("Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue"), mas é uma metáfora com o verbo “calar”. Foi a forma que os músicos encontraram de dizer ao mundo que a liberdade de expressão lhes tinha sido roubada. “Qualquer solto som pode dar tudo errado”, alertou o letrista Paulo César Pinheiro no poema Cautela. “É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”, cantava Maria Bethânia na canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. Palavras codificadas, expressões metafóricas, mas claras para quem as ouvia - de revolta e desacordo à repressão do governo brasileiro.

Gilberto Gil com a diretora da série Úrsula Corona. Gilberto Gil com a diretora da série Úrsula Corona.

Este contexto histórico apresenta características que merecem um sentimento de orgulho, pois conseguiu provar às gerações posteriores que a luta pela liberdade e pelos direitos de todos continua. No período do regime militar, qualquer forma de manifestação contra o sistema vigente era considerada subversiva, e os seus veiculadores poderiam sofrer sanções como censura, prisão, tortura, deportação, exílio e até a morte. Nesse contexto, muitos artistas foram perseguidos em nome da ordem nacional. Com o cerceamento cada vez mais implacável, restava aos artistas encontrar formas mais subtis de passar as suas mensagens políticas. Em entrevista para a nova série O silêncio que Canta por liberdade, o baiano Gilberto Gil relembra factos marcantes do exílio em Londres entre os anos 1969 e 1971 ao qual foi submetido. Na capital de Inglaterra acabou por gravar discos que lhe renderam fama e reconhecimento em todo o mundo. Entre as músicas com evidente cunho político, destacam-se Refazenda (“Abacateiro / acataremos teu ato”) e a canção pré-exílio Aquele Abraço. Gil também marcou posição ao soletrar as palavras Brasil, Fuzil e Canhão em Miserere Nobis (1968), dele e de Capinan, e ao gritar, discretamente, “Ma-Ma-Marighella!” (político, escritor e guerrilheiro comunista) na música Alfômega, gravada no disco de Caetano, de 1969. 

Noutro episódio desta produção, Gal Costa - diva e porta-voz da Tropicália - defende o livre arbítrio da população ao refletir sobre tendências autoritárias no atual governo brasileiro. A artista também comenta sobre o seu início na música em 1964 ao lado de Caetano Veloso e Maria Bethânia, além do próprio Gilberto Gil. Gal contou ao site brasileiro Heloisa Tolipan, numa entrevista publicada em 2015, que, em julho de 1969, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil se foram exilar em Inglaterra, ela não pôde seguir o mesmo destino e ficou à mercê da periculosidade da ditadura. “Quando Caetano e Gil se exilaram, eu fiquei aqui, porque não tinha dinheiro para ir. E eu tinha que cuidar da minha mãe [Mariah Costa Pena, que veio a falecer em 1993]. Mas fiquei no meu país defendendo as ideias deles, as nossas, cantando e passando a mensagem. Acabei tomando esse posto de ‘porta-voz’ do Tropicalismo”, relembrou. O Tropicalismo ou Tropicália, musicalmente falando, foi um movimento cultural brasileiro que surgiu sob a influência das correntes artísticas da vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, misturando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. É claro que, pelo contexto político da época, uma parte do movimento passou a servir-se das suas letras e melodias para criticar a postura dos militares.

Gal Costa e Úrsula Corona. Gal Costa e Úrsula Corona.

Na direção desta série, que promete um olhar profundo sobre o contexto musical da ditadura militar brasileira, está Úrsula Corona - uma das atrizes brasileiras mais bem-sucedidas da teledramaturgia portuguesa. É conhecida por personagens inesquecíveis em novelas lusitanas e exibições de obras brasileiras, entre as quais: Na Corda Bamba (2020), Ouro Verde (2017), Totalmente Demais (2016) e O Astro (2011). O documentário é idealizado pelo produtor cultural Omar Marzagão, que iniciou a sua carreira profissional na emissora mexicana Televisa. O seu pai, Augusto Marzargão, foi criador do Festival Internacional da Canção Popular, realizado no Rio de Janeiro no final da década de 60 e responsável por revelar e projetar algumas lendas da Música Popular Brasileira.

Nunca se aplaudiu um artista como naquela época; mas também nunca se 'zombou' de um artista como naquela época. Entre violões destruídos e esperanças de um futuro melhor, os músicos desta série juntos quiseram recuperar a voz e a liberdade. Ficaram as grandes canções para serem ouvidas, apreciadas e compreendidas. E agora os seus testemunhos numa série documental que aguardamos com expetativa.