O carro velho vendido por site inconfiável
Está-se falando do "plebiscito branco", sugerido por Lira e apoiado por Gilmar, para aprovar a troca do regime presidencialista para semipresidencialista
O carro velho vendido por site inconfiável
Está-se falando do "plebiscito branco", sugerido por Lira e apoiado por Gilmar, para aprovar a troca do regime presidencialista para semipresidencialista
Foto: Adriano Machado/Crusoé
Em seminário promovido pelo site JOTA, na segunda-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (foto), afirmou que as eleições deste ano podem servir como um “plebiscito branco” para a aprovação no ano que vem da mudança do regime presidencialista para o semipresidencialista. “Se amadurecermos o debate, se a discussão ganhar corpo, como eu imagino que aconteça, a gente pode deixar que as eleições funcionem como um plebiscito branco, para que a população encarne ali os deputados e senadores que vão defender esse tema”, disse Arthur Lira. O pressuposto é que, como vivemos na prática um “presidencialismo de coalizão”, o negócio seria mudar logo para semipresidencialismo e pronto.
A sugestão foi apoiada por outro participante do seminário, o ministro do STF Gilmar Mendes. Estranho seria se fosse o contrário. Na presidência de Michel Temer, ele ajudou — como “cidadão” — na confecção de um projeto que visava a dar um chapéu na Constituição e mudar o regime político brasileiro para semipresidencialista, sem a realização de um “plebiscito preto no branco”, como deve ser. “Seria uma mera reforma que poderia ser chancelada nas eleições”, disse Gilmar Mendes, ao apoiar o “plebiscito branco” proposto por Arthur Lira.
Basicamente, o “plebiscito branco” não seria plebiscito coisa nenhuma. Os espertos partem do pressuposto de que, se o cidadão votar num senador ou deputado que apoia o semipresidencialismo, isso significa que ele também apoia o semipresidencialismo. Só que ninguém vota em senador ou deputado para mudar o regime político, muito menos quando essa escolha se dá em conjunto com a de presidente e governadores. A mudança, que justamente dará mais poder a deputados e senadores, o que os torna diretamente interessados, precisa ser discutida em separado pela sociedade, cabendo ao cidadão decidir ele próprio sobre o assunto. Em junho do ano passado, abordei o semipresidencialismo num artigo. Escrevi o seguinte:
“Volta e meia discute-se a mudança de regime político no Brasil, para dar fim à instabilidade permanente na qual vivemos. Foi assim com o parlamentarismo, que jamais vingou no Brasil, acostumados que estamos à visão sebastianista de presidente salvador da pátria e porque ele sempre teve cheiro, gosto e textura de golpe, como em 1961, quando se quis impedir que João Goulart fosse presidente de fato. Gostamos de chefes supremos (ou poderosos chefões, como demonstram os últimos anos), não tem jeito. Uma questão é saber se o semipresidencialismo, em vez de nos dar dois chefes complementares, não nos daria dois semichefes, o que é ter chefe nenhum. Os pesos e contrapesos não podem dar margem a dúvidas sobre as respectivas competências. A outra questão é saber como evitar que alianças parlamentares aparentemente sólidas se desmanchem no ar pesado do fisiologismo, levando à queda de bons primeiros-ministros — ou à permanência de maus primeiros-ministros que traiam os princípios que deveriam guiá-los.
A segunda questão conduz necessariamente a uma terceira: dá para ter semipresidencialismo com o tipo de eleição proporcional que privilegia os caciques e as suas escolhas pessoais? Não dá. Seria imprescindível introduzir o voto distrital, a fim de que os partidos ganhassem representatividade e, assim, o primeiro-ministro a ser escolhido pelos seus pares tivesse legitimidade política e social. Voto distrital que não seja distritão, bem entendido, que é malandragem para beneficiar os oligarcas de sempre.
A discussão sobre mudança de sistema é válida, desde que a sociedade não seja alijada dela e desde que, uma vez consumada a mudança, ele não sirva para maquiar a podridão visível a olho nu. Semipresidencialismo não pode ser carro velho vendido como seminovo.”
É o que continuam tentando fazer com os brasileiros: vender-lhes um carro velho como se fosse seminovo. E sem que os cidadãos possam examinar de perto o carro velho. O “plebiscito branco” seria como a compra, por meio de um site inconfiável, de um veículo reformado às pressas, para que apenas pareça melhor do que é na realidade.