Memórias da ditadura e o teatro
No Festival de Música Popular, promovido pela TV Record, em 1967, Edu Lobo e Capinam levaram o primeiro prêmio, com “Ponteio”.
Memórias da ditadura e o teatro
"Apenas a violência pode servir onde reina a violência, e / apenas os homens podem servir onde existem homens". (Bertolt Brecht)
por Deneval Siqueira
Incrível! Lembrando-me hoje do que vivi, naquela época pós-64, soa paradoxal: apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar vem sendo lembrada sobretudo pelo engajamento político à esquerda, pelo desejo de mudança e pelas críticas ao governo.
Um estudo desse cenário está em meu mais recente livro Campeões do Mundo, Teatralidade e dramaturgia nos anos da ditadura poós-64, no âmago de algumas obras dramatúrgicas escritas por Hilda Hilst, Gianfrancesco Guarnieri e Dias Gomes, incluindo Campeões do Mundo, que dá título ao livro, usando a teoria da estética da recepção e o teatro épico/palco científico de Bertolt Brecht como determinantes teóricos.
Compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré atacavam de maneira mais ou menos velada a tortura, o autoritarismo, a censura.
No Festival de Música Popular, promovido pela TV Record, em 1967, Edu Lobo e Capinam levaram o primeiro prêmio, com “Ponteio”. A música tem batida sertaneja e alusão à violência dos militares na letra. Nas entrelinhas, eles pediam o fim da ditadura: “Certo dia que sei / Por inteiro / Eu espero não vá demorar / Este dia estou certo que vem / digo logo o que vim / Pra buscar (…) / Vou ver o tempo mudado / E um novo lugar pra cantar”.
O pensamento marxista marcava o Cinema Novo de Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Glauber Rocha, que não só exibiam a miséria do país, mas a colocavam no centro de sua linguagem. Era a chamada “estética da fome”.
No teatro, grupos como o Oficina e o Teatro de Arena baseavam-se em peças de alto teor político e na irreverência das montagens, que desobedeciam a convenções estabelecidas e procuravam quebrar a passividade do público.
Na realidade, o movimento de politização da população e da cultura havia despontado antes do golpe de 1964. O nacionalismo, a politização e o desejo de mudança, tanto na linguagem teatral quanto na sociedade brasileira, estavam entre os pilares de grupos surgidos na década de 1950, como o Teatro de Arena e o Oficina.
Isso transpareceu em espetáculos como Eles Não Usam Black-Tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, com o Teatro de Arena, que trata de uma greve operária, colocando moradores de favelas em cena.
Essa peça, na esteira do debate sobre as reformas de base do governo João Goulart, estava ligada à atuação do Centro Popular de Cultura da UNE, o CPC. O CPC viabilizava, por exemplo, a encenação de peças de teatro junto a associações de trabalhadores, na porta de fábricas ou na zona rural.
A primeira atitude do governo militar foi de estancar esse processo, na tentativa de dissolver as conexões entre a cultura de esquerda e as classes populares. O CPC, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e o Movimento de Cultura Popular do Recife foram fechados.
Nessa primeira fase da ditadura, artistas e intelectuais de esquerda foram poupados e puderam continuar a produzir em liberdade. Com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, a repressão recrudesceu: artistas e intelectuais foram presos e precisaram deixar o país, não raro na condição de exilados.
Hilda Hilst escreveu O Verdugo (1969), vencedor do Prêmio Anchieta, em 1969, um ano após a instituição do AI-5. O texto aqui será estudado. Não foi censurada. Escreveu A possessa (1967), O rato no muro (1967), O visitante (1968), Auto da Barca do Camiri (1968), O novo sistema (1968), As Aves da Noite (1968) e A Morte do Patriarca (1969).
Um dos objetos de estudo deste livro será o vencedor do Prêmio Anchieta de 1969, O Verdugo em análise comparativista à Ponto de Partida, de Guarnieri, usando como instrumental teórico as correntes da estética da recepção e o teatro épico de Bertolt Brecht.
Dias Gomes, adiantando conclusões futuras, pesquisas teórico-práticas e histórico-críticas, me levam a ver uma obra abrangente de uma representatividade única que dá ao seu texto dramatúrgico uma condição paradigmática do teatro brasileiro contemporâneo, constituindo-se num parâmetro (e quem sabe único) que permite diferenciar as principais linhas de força de um conjunto de obras durante sua trajetória histórica de produção e recepção.
Considerando o momento histórico dos dias atuais, dois são os motivos principais que conferem à dramaturgia de Dias Gomes esse caráter paradigmático: a continuidade na ordem temporal e a natureza integrativa de que se reveste sua obra, tanto no plano temático e conteudístico como no nível da expressão dramática.
No que diz respeito ao primeiro desses aspectos, convém lembrar que Dias Gomes inaugura, juntamente com Nelson Rodrigues, o período considerado como “moderno” do teatro nacional, nos inícios da década de 1940, do século XX. Durante o período em que produziu, sua produção dramática foi constante e ininterrupta (mesmo quando o veículo foi diverso do palco.
No livro, apresentarei um estudo sobre cinco de seus textos polêmicos: O Santo Inquérito (A Invasão (1960), O Túnel (1968), Amor em Campo Minado (1969) e Campeões do Mundo (1980), unidos por um denominador comum: o fato de sua ação dramática se organizar em torno de algum momento característico do pós-golpe militar de 1964.
Pode-se por isso dizer que formam um ciclo das peças proibidas de Dias Gomes, citadas acima. O Santo Inquérito, peça em dois atos, escrita por Dias Gomes em 1966, é outra das grandes peças brasileiras, modernas, por suas intenções artísticas e por suas preocupações sociais.
Baseando-se num episódio histórico – ou lendário – como o de Branca Dias, Dias Gomes afasta, de imediato, as fáceis, espetaculares e vistosas pompas que um escritor romântico traria para o palco.
O que lhe importa é o conflito entre a pureza da personagem, a sua boa fé, a sua sinceridade, e aqueles que lhe deturpam essa forma de comportamento nela vendo intentos perigosos à ordem estabelecida e oposição a conceitos que são fundamentais para que nunca sofram abalo instituições ou sistemas de ideias muito confortáveis para quem precisa preservá-las.
Dias Gomes mostra também na obra O Santo Inquérito que a capacidade de comunicação dos homens é muito relativa e que a linguagem, em vez de ser o elo entre as pessoas, pode se transformar em uma terrível fonte de mal entendidos e de destruição.
Vale a pena conferir!