“HÍBRIDOS ZUMBIFICADOS INTERAGEM COM O 5G”
Uma imersão de duas semanas em grupos de direita do Telegram
“HÍBRIDOS ZUMBIFICADOS INTERAGEM COM O 5G”
Uma imersão de duas semanas em grupos de direita do Telegram
Vanessa Barbara
No dia 31 de julho, o físico francês Étienne Klein publicou no Twitter a foto de um chouriço sobre um fundo preto. De início, ele disse que se tratava da imagem da estrela Proxima Centauri tirada pelo telescópio James Webb, mas pouco depois comentou debochadamente no próprio post que “os vieses cognitivos fazem a festa na hora do aperitivo. Tomem cuidado, portanto, com eles. De acordo com a cosmologia contemporânea, não há nenhum objeto da charcutaria espanhola fora da Terra.”
Horas mais tarde, já que a imagem ainda estava sendo compartilhada como se fosse verdadeira, ele teve que se explicar melhor: era uma brincadeira. Ele queria que as pessoas aprendessem a desconfiar dos argumentos de autoridade e da “eloquência espontânea de certas imagens”. Para a revista Le Point, Klein disse que, em certas redes sociais, as fake news sempre fazem mais sucesso do que as informações verdadeiras. Ele acha que, se não tivesse associado a imagem do chouriço ao telescópio James Webb, ela não teria viralizado tanto.
Pensei bastante nessa história durante as duas semanas que passei imersa em grupos de direita no aplicativo Telegram, serviço de mensagens que aceita grupos de até 200 mil membros e canais com capacidade ilimitada de inscritos,[1] e onde reina uma espécie de vale-tudo moral e epistemológico. Segundo o presidente Jair Bolsonaro, “hoje em dia, o fake news morre por si só, não vai para frente”. Não foi o que constatei. Em grupos públicos e canais do Telegram é possível encontrar, sem esforço, um vasto conteúdo antissemita, racista, misógino, homofóbico, de apologia ao nazismo e à tortura. Alguns dos posts são reciclagens de mentiras há muito desmentidas.
Ironicamente, na primeira semana de agosto, me deparei com a notícia do chouriço interestelar nesses canais. Em O Equinócio (684 inscritos), Étienne Klein foi identificado como “o principal cientista francês”, na tradução bizarra de um artigo originalmente publicado em um site conspiracionista. Em Aliados Brasil Oficial (2,3 mil inscritos), a manchete era: “Cientista de renome se desculpa por postar foto de salame e dizer que era uma estrela.”
Um comentário dizia: “Esses são os cientistas nos quais DEVEMOS sempre confiar, não é mesmo???” Em seguida, outro membro do canal mencionou “a farsa da ida a Lua”. Um terceiro deu a entender que a pandemia da Covid era uma impostura globalista, e outro ainda aproveitou para compartilhar o vídeo: “Com a vacina, não só se tenta matar as pessoas, mas também roubar suas almas.” Como se não bastasse, um sujeito que chamou as vacinas de “maior crime da história” observou: “Basta pesquisar um pouco – inclusive na Bíblia – para ter certeza que a terra é plana e estacionária.”
É um bom resumo do que testemunhei nessas duas semanas. Imagens falsas tomadas como verdadeiras, notícias reais distorcidas, conteúdos apelativos tirados do contexto, pânico moral, negacionismo e uma vertigem delirante que, de longe, até pode parecer uma estrela, mas de perto não passa de um chouriço.
1º DE AGOSTO DE 2022, SEGUNDA-FEIRA_“Eu acho que até o fake news é válido, com todo respeito”, disse Jair Bolsonaro em uma entrevista para o programa Pânico em 2018. Anos depois, já na Presidência, ele declarou: “Fake news faz parte da nossa vida.” Na ocasião, ele estava recebendo o Prêmio Marechal Rondon de Comunicações das mãos de seu próprio ministro das Comunicações. Foi com esse espírito que comecei a desbravar de forma mais sistemática uma dúzia de grupos de direita no Telegram, que já acompanhava havia alguns meses.
Minha manchete de estreia foi uma notícia falsamente atribuída ao portal G1: “Banqueiros definem apoio a Lula em troca de revogação do Pix”, postada no grupo Movimento Anti-Novo Normal (4,5 mil membros). Nesse dia, a tendência ainda era de reação à Carta em Defesa da Democracia assinada por diferentes setores da sociedade, que foi divulgada pela primeira vez no dia 26 de julho e que tanto incomodou o presidente.
Outros grupos também mencionavam a carta com destaque: Os Patriotas BR (13,3 mil membros), Bolsonaro 22 (21,4 mil), Super Grupo B-38 Oficial (62,4 mil), canal Eu Sou de Direita (67,6 mil inscritos) e Direita Channel (69 mil).
Dentre eles, o Movimento Anti-Novo Normal me pareceu representativo de um certo éthos da direita no Telegram: diz que não aceita vacinados ou esquerdistas, promove vídeos de pessoas queimando o título de eleitor, sugere faixas para o protesto de Sete de Setembro (“Presidente Bolsonaro: acione as Forças Armadas”) e difunde abaixo-assinados em oposição à inclusão da vacina contra a Covid para crianças no Programa Nacional de Imunizações. Não só isso: divulga os dados pessoais de supostos integrantes da Câmara Temática de Vacinação e Imunização do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), com a legenda: “Estes são os fofos que decidem se seu filho será ou não cobaia.”
Para fins de convencimento, repassaram uma tradução truncada do site conspiracionista InfoWars: “Fabricante de caixões vendeu 5 anos de caixões de tamanho infantil em 7 meses”, notícia inteiramente baseada em uma postagem de um usuário do Twitter. O proprietário do InfoWars, Alex Jones, foi recentemente condenado nos Estados Unidos por negar a ocorrência do massacre de vinte crianças e seis adultos em uma escola em Sandy Hook, em 2012. Ele dizia que era tudo armação do governo norte-americano para restringir o acesso às armas.
Enquanto isso, em São Paulo, ainda não havia vacina para crianças de 3 a 5 anos de idade. Minha filha de 4 anos está esperando a primeira dose desde 13 de julho, o dia em que a CoronaVac foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para essa faixa etária.
2 DE AGOSTO, TERÇA-FEIRA_Há três grandes temas que unem os membros desses grupos no Telegram: negacionismo da Covid e vacinas; acusações de fraude nas urnas eletrônicas; ataques ao Supremo Tribunal Federal. Esses três tópicos nunca saem da pauta. Em um só dia, vi circular dois boatos de 2018: uma montagem antiga do ministro Ricardo Lewandowski como membro do grupo de guerrilheiros MR-8 e uma selfie da presidente do pt Gleisi Hoffmann ao lado de alguém erroneamente identificado como Adélio Bispo, o homem que esfaqueou Bolsonaro. “Não há semelhança física entre Adélio e o homem da selfie com Gleisi”, afirmou o blog de checagens Estadão Verifica. A novidade da vez era uma frase falsa do ministro Luís Roberto Barroso dizendo que Bolsonaro só seria eleito por cima de seu cadáver.
Nos grupos, divulgam-se à exaustão enquetes feitas em restaurantes e pesquisas de institutos fictícios indicando a vitória de Bolsonaro, além do áudio (também falso) de um ex-diretor do Datafolha confessando um plano de fraude nas urnas eletrônicas. Nesse caso, temos uma espiral alucinógena de fake news: trata-se da reedição de um vídeo satírico feito por um humorista imitando um suposto advogado do Partido dos Trabalhadores. O nome do advogado? Dr. Avacalho Elhys. Ainda assim, muitos acharam que o material era verídico.
Mas qual a grande prova de que houve fraude nas eleições passadas? Para além dos áudios falsos, entrevistas editadas e depoimentos de hackers fora de contexto, há uma série de vídeos de pessoas indignadas diante de uma seção eleitoral, alegando que a urna errou na hora de computar seu voto. “Tenho centenas de vídeos de eleitores que, ao apertarem meu número nas urnas, aparecia o voto para outro candidato”, declarou Jair Bolsonaro durante uma bizarra apresentação a embaixadores, em julho. “Não vi ninguém falando do outro lado”, completou. Como diz a legenda de um desses vídeos: “Incontestável!!” (com dois pontos de exclamação no final).
Lembrei-me de Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, fazendo uma selfie ao lado de um calendário da Caixa Econômica Federal para provar que sua conta no Twitter era oficial, e do general Augusto Heleno, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que postou nas redes sociais o resultado de um exame de Covid sem ocultar os números de seu RG e CPF.
Resolvo entrar no grupo Direita Inteligente (13,8 mil membros) para ver se o nível melhora.
3 DE AGOSTO, QUARTA-FEIRA_Primeiro vídeo do dia: “Crianças consumindo cocaína na escola. Este é o projeto de Lula para as crianças da tua família. E você, vai permitir que Lula faça isso contra as crianças?”
Ainda estou no início da minha experiência e os danos emocionais já se fazem notar. Ansiosa, deixei cair no chão um pote de vidro com molho de salada e passei uma hora limpando a cozinha, embalando os cacos com o jornal do sindicato dos jornalistas. De volta ao Telegram, perdi a conta de quantas vezes vi repassarem fotos de uma drag queen lendo livros infantis em uma biblioteca, em um evento que realmente existe em alguns lugares, mas está longe de representar um atentado à infância. (É também uma notícia antiga que circula há pelo menos quatro anos.) A legenda “Fim dos Tempos” acompanha o vídeo de um menino de saia colorida brincando de pole dancing em uma passeata LGBT nos Estados Unidos – reafirmando o velho pânico moral de uma ditadura “gayzista”.
Aparentemente, a esquerda não apenas corrompe as nossas crianças: em um vídeo truncado, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, diz que as vacinas contra a Covid serão usadas “para matar crianças”. Frequentemente chamado de terrorista, ele também aparece dançando de shorts curto em uma imagem falsa, segundo a qual estaria “curtindo as férias no Brasil e espalhando a varíola do macaco”. O vídeo original foi gravado em Santos, é de dois anos atrás e não tem nenhuma relação com o diretor-geral da OMS.
Mas o que mais foi repassado hoje foi o boato de que Adhanom ainda não teria tomado a vacina contra a Covid, o que também já foi desmentido há muito tempo. (Ele tomou a primeira dose em maio de 2021, em Genebra.) “Assassino, vagabundo, comunista”, escreveu uma integrante do grupo A Toca do Coelho (11,1 mil membros).
Sugestão de faixa para o protesto de Sete de Setembro: “Presidente Bolsonaro: nós te amamos.”
4 DE AGOSTO, QUINTA-FEIRA_Manchetes do dia: “Deflação já é realidade no Brasil”, “Analistas políticos internacionais afirmam que Bolsonaro passará de 100 milhões de votos!!!” (com três pontos de exclamação) e “Paulo Guedes merece o Nobel de Economia”. Resolvo seguir o conselho que vi no Super Grupo B-38: “Pegue seu dedo indicador durante 5 minutos para reduzir dores musculares, sentimentos de decepção, medo e vergonha.”
Não são só os vieses cognitivos que são explorados nesses grupos: apela-se diretamente para sentimentos viscerais como ódio e nojo. Isso ocorre, por exemplo, quando repassam imagens de pústulas inflamadas para falar da nova varíola, ou de um inseto repulsivo dizendo que a vacina Novavax contra a Covid “contém 1 mcg de proteínas de insetos”. Legenda em negrito: “Vamos colocar lagartas no seu prato e no seu sangue.”
Ao que parece, o conservadorismo agora tem uma fixação por veganos, vegetarianos e pessoas que decidiram reduzir o consumo de carne, como se elas colocassem em risco o estilo de vida dos cidadãos de bem. “Estão implementando o consumo de insetos em lugar da tradicional proteína da carne animal”, informam com alarde, abaixo de uma foto de um punhado de vermes. “Nota-se o desprezo que têm por nós.”
Também vi esta notícia falsa em vários grupos: “O primeiro restaurante de carne humana abre suas portas.” A Alemanha teria mãos e braços à venda em açougues. Em outro post, vê-se uma mão esquerda dentro de uma bandeja de isopor com a legenda: “Canibalismo humano sendo impulsionado pelo novo movimento verde.” Um vídeo do InfoWars traduzido para o português alega que a mídia está tentando normalizar o canibalismo como uma alternativa sustentável à carne vermelha, “em nome das mudanças climáticas e salvar a Terra”. Pelo menos dois grupos repassaram o vídeo de um cadáver humano supostamente assado e temperado, sendo rasgado para fins gastronômicos.
Por fim, depois de uma explicação completamente confusa sobre a quitina e o câncer: “Agora você sabe por que eles querem que comamos insetos.”
5 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA_Em um artigo de maio para a revista The Atlantic, o psicólogo social Jonathan Haidt declarou que as redes sociais são desenhadas para aflorar nosso lado mais moralista e menos reflexivo. Resumindo alguns estudos recentes, Haidt diz que, em geral, elas amplificam a polarização política, fomentam o populismo – sobretudo de direita – e estão associadas à disseminação de informações falsas.
Autor de A Mente Moralista: Por que Pessoas Boas São Segregadas por Política e Religião, Haidt diz que as democracias estão sujeitas à turbulência das paixões humanas, e que o segredo para manter a estabilidade de uma república seria “construir mecanismos para desacelerar as coisas, acalmar os ânimos, chegar a um acordo e fornecer aos líderes uma certa proteção contra a loucura do momento, ao mesmo tempo em que os faz prestar contas ao público periodicamente, no dia das eleições”.
É para isso que temos, pelo menos em teoria, três poderes independentes e uma imprensa livre. Eles trariam um certo equilíbrio racional aos delírios totalitários de um governante ou de uma turba apaixonada. É também por isso que, a esta altura eleitoral, os governistas tentam minar a credibilidade das instituições, dos ministros do STF, das urnas eletrônicas, da Folha, da CNN e do New York Times.
Em 2018, Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump e mentor do clã Bolsonaro, declarou que a verdadeira oposição não era da esquerda, mas da imprensa. E o melhor jeito de lidar com a imprensa era “inundar a área de merda”. Para Haidt, a tática de Bannon e da extrema direita seria similar à tática de desinformação criada pelos russos: promover uma enxurrada de fake news que deixe as pessoas confusas, desorientadas e zangadas.
Lista parcial de instituições e/ou categorias desacreditadas nos grupos de direita do Telegram, até o momento: a ONU, o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a OMS, o STF, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o papa Francisco, a imprensa, os professores universitários, os sindicatos, a agência espacial americana (Nasa), o heliocentrismo, a virologia (“vírus não existem!”), a indústria farmacêutica (antidepressivos são uma farsa), os dinossauros (nunca existiram), os institutos de pesquisa, as agências de checagem e os sutiãs acolchoados.
6 DE AGOSTO, SÁBADO_Inspirada por Haidt, decido respirar fundo e fazer um chá de camomila antes de abrir o Telegram. Descubro que a mudança climática, chamada de “guerra de modificação do clima”, é uma narrativa para “tributar, cobrar e criar justificativas para leis que limitassem mais liberdade para o Povo”. Tenho uma crise de tosse obviamente psicossomática.
Não há limites para a intersecção entre as temáticas de fake news e conspiracionismo: a mudança climática é uma farsa, assim como o massacre de Sandy Hook, a ida do homem à Lua, as urnas eletrônicas e a pandemia de Covid. Todos foram inventados para limitar as liberdades da população. É a chamada “Nova Ordem Mundial” (NOM), uma teoria da conspiração que prega que certas elites e líderes planejam a implantação de um governo mundial totalitário.
O único dissenso evidente que encontrei nesses grupos diz respeito à guerra na Ucrânia. Por exemplo: nos grupos Direita Inteligente, A Toca do Coelho e Patriotas Conservadores SP (9,6 mil membros), bem como nos canais Direita Channel e Desmagnetizado (8 mil inscritos), há uma torrente de posts favoráveis ao presidente russo Vladimir Putin, aliado de Bolsonaro, que é considerado “um belo estadista”. O discurso é que o Ocidente estaria implementando um “projeto anti-Rússia”, fechando os olhos para a disseminação do neonazismo e o genocídio em Donbass. Exemplo de notícia falsa divulgada: “Putin liberta 35 mil crianças presas em jaulas na Ucrânia.”
Por outro lado, grupos como Derrubando as Pedras Guias da Geórgia (21,2 mil membros)[2] e Ucraniza Brasil (4,3 mil) são declaradamente pró-Ucrânia. Neles vejo a foto de um soldado ucraniano acariciando um gatinho e um vídeo com a alegação de que os “malditos comunistas” russos estariam destruindo campos de trigo para causar inflação.
Mas há um sentimento que une ambos os lados: o antissemitismo, que prolifera tanto ali quanto acolá. Enquanto, de um lado, o canal Desmagnetizado afirma: “Putin é uma muralha contra os objetivos judaicos sionistas”, sabe-se há tempos que o enorme canal Derrubando as Pedras Guias da Geórgia é abertamente nazista, assim como o grupo FT – Força Tarefa pela Liberdade (6,1 mil membros), o Movimento Anti-Novo Normal e o canal Juventude Revoltada (10,5 mil inscritos), entre tantos outros. Um post aleatório começa com: “Mais uma prova de que Hitler estava certo.” E outro: “Ninguém nos últimos 100 anos fez mais pela paz do que Adolf Hitler.”
E nem é preciso procurar muito. O Canais Fascistas BR é um canal de fachada criado para proteger o Canais Antissemitas BR” (1,7 mil inscritos), que lista centenas de outros canais de Telegram onde o ariano heterossexual médio pode destilar seu ódio sem pudor. Nesses canais, que têm nomes como O Sentinela, Estudos Revisionistas do Holocausto, Aurora de Aço, Politicamente Incorreto, Livros Banidos, Tradicionalistas, Baruch, o Fidalgo e Reich Gifs, há vasto compartilhamento de material racista, nazista e antissemita.
Talvez eu deva adoçar meu chá com Rivotril.
7 DE AGOSTO, DOMINGO_Dia de folga devidamente utilizado para gritar em almofadas.
8 DE AGOSTO, SEGUNDA-FEIRA_Demoro um pouco para me habituar à terminologia particular dos negacionistas da ciência: quem acredita em vacinas é um “aceitacionista”. Quem tomou a vacina contra a Covid é “híbrido”. Homossexuais são “pessoas de polos invertidos”. Existem inúmeros grupos de namoro para quem tem “DNA 100% Íntegro”, ou seja, quem nunca tomou a vacina nem fez exame PCR. Nesses espaços, o objetivo é “namorar, casar e procriar”.
Um dos posts mais recorrentes é a oferta de certificados falsos de vacinação: “Lanço com data retroativa e respeitando o espaçamento entre as doses”, diz um suposto enfermeiro. “Pessoal, será que eu não consigo uma enfermeira que esteja aplicando vacina e no momento da aplicação ela espirra o líquido fora, como diversas pessoas famosas fizeram?”, perguntou alguém. Também é possível baixar atestados para isenção vacinal, conferir listas de médicos que emitem laudos antivacina e pediatras que fazem consultas a distância “em defesa de nossas crianças” – ou seja, que são contra esse “experimento genético satanista” que são as vacinas. Alguém diz que “estão levando as criancinhas para sacrificar para Moloch, sob o pretexto de imunização”.
É impressionante como se criou toda uma lexicologia de conceitos delirantes que são prontamente compreendidos em canais negacionistas como Verdades Conectadas (24,3 mil inscritos). Por exemplo: os não vacinados devem evitar o contato com imunizados, já que existiria um fenômeno chamado shedding, por meio do qual as pessoas de DNA puro poderiam se contaminar fatalmente. Mas calma: há inúmeras substâncias capazes de “eliminar a toxicidade das vacinas” ou purificar as pessoas após o contato com seres híbridos. São elas: ímã de neodímio (aplicação tópica), prata coloidal, dióxido de cloro, suramina, chá de funcho, carvão ativado, poeira vulcânica, azul de metileno e coentro (… coentro!). Ainda acreditam na hidroxicloroquina e na ivermectina como tratamento precoce.
No mais, as vacinas continuam contendo microchips, nanopartículas, óxido de grafeno, pontos quânticos e parasitas que podem ser controlados por impulsos eletromagnéticos. Elas causam Aids, fazem moedas grudarem na nossa pele e nos tornam conectáveis a redes wi-fi ou Bluetooth. Tudo isso – que já foi desmentido sistematicamente meses ou anos atrás – continua sendo repassado com ardor. No grupo Direita Inteligente, vejo a notícia: “Vacinas Covid são 7.402% mais mortais do que todas as outras vacinas combinadas.”
Já em Despertar para a Verdade Será Inevitável (11,3 mil inscritos), fico sabendo que “vírus de câncer ocultos são injetados com a vacina contra a poliomielite”. E mais: “As vacinas da infância castram o intelecto, condicionam a mediocridade e incapacitam fisicamente e matam!!! […] Nenhuma vida em toda história humana foi salva por vacina.”
O cenário é tão trágico que, depois de muitas voltas do parafuso, acaba virando arte. Dentre todos os consultados, o canal Desmagnetizado é o que tem as melhores manchetes: “Híbridos zumbificados interagindo com o 5G” e “Zumbificados explosivos. Algumas Entidades Biológicas simplesmente explodem. Há relatos de Entidades que explodiram do nada.”
Exemplo de texto que acho particularmente genial: “Um organismo sintético masculino estava andando pelas ruas quando se defrontou com entidades malignas do 5G. A entidade biológica havia tomado a terceira dose da vacina e seu sistema de nano-boots [sic] de grafeno estava turbinado.” Ao que tudo indica, “tirar a roupa é a primeira reação zumbificante de um vacinado capturado pelo 5G”.
Conforme vou mergulhando na pesquisa, vejo que esses canais relativamente menores fornecem material e um certo ângulo para os grupos mais populares da direita. Além dos já citados Desmagnetizado e Despertar para a Verdade, também temos o Canal Tribuna Nacional (4,7 mil inscritos), e o canal Derrubando as Pedras Guias da Geórgia. Aí é conspiração pura, o tempo todo: fala-se em NOM, terraplanismo, satanismo, canibalismo, complô reptiliano, racismo reverso, maçonaria, Rosacruz, Illuminati, DeMolay, luciferianos e zumbis.
Modéstia à parte, pensei numa notícia que pudesse abarcar várias conspirações ao mesmo tempo. Minha sugestão: “Chips de híbridos vacinados conectam-se às urnas eletrônicas por 5G e votam automaticamente no Lula.”
Minha filha, de 4 anos, continua esperando a primeira dose da vacina contra a Covid.
9 DE AGOSTO, TERÇA-FEIRA_A cada dia aumentam as convocações para os protestos pró-governo, com sugestões de faixas e divulgações de caravanas para a Avenida Paulista. Uma delas: “Sete de Setembro será para trazer as Forças Armadas de volta! Até passar as eleições! Não podemos falhar!” Em outro post, o slogan é: “Livres ou mortos. Nossa última chance. Vamos ocupar Brasília! Só sairemos de lá com a vitória!” E ainda: “Puxe o pino, capitão!”, diante da foto de uma granada.[3]
Em Direita Inteligente, leio: “Tá dado o recado: precisa desenhar? Exigimos a imediata destituição dos ministros do STF.” Um vídeo que circulou bastante tinha a seguinte descrição: “Qual intervenção é a melhor: 142, Federal, Estado de Sítio ou do Povo?” Não assisti para saber a resposta.
Quem não está promovendo o golpe em Sete de Setembro parece que está tentando arquitetar algum plano para o dia das eleições. Um sujeito sugere que todos os eleitores de Bolsonaro se reúnam nas seções eleitorais após as 17 horas para uma espécie de demonstração de força. “Sem vandalismo, claro!”
Um outro é mais criativo: sugere que, antes das eleições, o presidente abra uma conta bancária para que cada eleitor possa fazer um Pix no valor de 1 real. “Aposto que teremos nessa conta mais de 70 milhões de reais em depósitos, ou seja, 70 milhões de eleitores reelegendo o presidente”, ele diz. “Teríamos, com o recibo do Pix, uma espécie de VOTO IMPRESSO pra contestar uma POSSÍVEL FRAUDE ELEITORAL.”
Além disso, a cada semana se elege um novo inimigo: uns meses atrás foi a cantora Anitta (Manchete: “Anitta é o primeiro lugar no Spotify assim como Lula é o primeiro no Datafolha”), a apresentadora Xuxa, o youtuber Felipe Neto e a chef Paola Carosella, que ousaram criticar o presidente. Uma montagem antiga da jornalista Míriam Leitão diz que ela teria assaltado um banco Banespa em 1968 – note-se a riqueza de detalhes do boato, que já foi desmentido anos atrás. Na dúvida, acusam alguém de pedófilo. O alvo mais recente é o ator Bruno Gagliasso, que hoje bateu boca com o presidente no Twitter.
Sugestão de faixa: “Presidente Bolsonaro! Criminalize o comunismo no Brasil.”
10 DE AGOSTO, QUARTA-FEIRA_Dois estudos coordenados por Jonah Berger, um professor de marketing da Universidade da Pensilvânia, em 2011 e 2012, concluíram que as notícias que geram excitação fisiológica são mais compartilhadas do que as demais. Relatos que evocam emoções altamente excitatórias, como ansiedade, raiva e repulsa (ou, do lado positivo, maravilhamento), são mais retransmitidas do que as que geram emoções menos excitatórias, como tristeza ou satisfação. “Informações de saúde pública, por exemplo, podem ser transmitidas com mais eficácia quando evocam ansiedade, em vez de tristeza.”
Isso explica a quantidade de alarmismo, caixa-alta e pontos de exclamação que vemos nos grupos e canais de Telegram. “Querem aprovar a Lei do Incesto”, diz um membro do Super Grupo B-38 Oficial. “Unicef sugere que pornografia pode ser boa para crianças”, lê-se em uma manchete (falsa) de um canal. “Um dos projetos da Nova Ordem Mundial é proibir que as pessoas possuam animais”, declara um membro do B-38. Alguém repassou um boato que eu não ouvia desde os tempos do ensino fundamental: “Bruxas de seitas satânicas estão matando crianças com doces envenenados.” Em todo caso, achei essa variação mais divertida: “Pai fantasiado de coelhinho da Páscoa distribui ovos cheios de camisinha para crianças no Texas.” No topo da matéria, uma pergunta em letras maiúsculas: “Sinais do fim?”
Passei uma dúzia de vezes pelo vídeo de um homem pelado fazendo uma performance numa universidade no Ceará, repassado como prova de que é isso o que se ensina nas faculdades públicas (ao contrário do alegado, ele não é professor da instituição). Imagens “fortes” são regularmente retransmitidas, com informações distorcidas ou falsas, apenas para gerar mais indignação.
Com 24,3 mil membros, o grupo Porte de Arma Já divulga vídeos de tortura e execução sem quaisquer filtros, sob os aplausos dos outros usuários. Na lista de regras do grupo, diz-se que é permitido compartilhar vídeos e dados de “ação policial contra criminosos”. “Proibido: Conteúdos que denigrem a polícia.” O grupo se torna ainda mais movimentado em época de chacinas policiais, como a da Vila Cruzeiro, em maio, quando foram compartilhadas dezenas de vídeos explícitos. Comentário após o vídeo de uma execução: “Menos um eleitor do Lula ladrão.”
Sugestão de faixa: “Presidente Bolsonaro: Salve nossas almas.”
11 DE AGOSTO, QUINTA-FEIRA_Sinceramente não sei se vou aguentar até o fim da semana. Na tentativa de desviar a mente das cenas de violência dos grupos armamentistas, e enquanto olhava gulosamente um inseto alado que pousou na tela do meu Telegram Desktop, fiquei pensando num paradoxo: muitos conservadores abominam os veganos e vegetarianos, mas odeiam igualmente a indústria farmacêutica e gostam de promover “remédios naturais” e suplementos milagrosos de todos os tipos.
Tão frequentes quanto as manchetes do tipo: “Homem sem sombra mata policiais na BR-116” são as odes a “remédios naturais” como cravo-da-índia, melão-de-são-caetano, própolis verde, água alcalina, glutationa, vitamina D3 e azul de metileno, este último ingerido “para aumentar mitocôndrias e turbinar o cérebro”. Um post anuncia: “Conheça a aloe vera, conhecida como a ‘planta da eternidade’.”
Segundo o Dr. Nome Aleatório da Universidade Absolutamente Inventada no Leste Europeu, aliás, o câncer não é letal: as pessoas morrem dessa doença “apenas por causa da indiferença”. Para curar um tumor, bastaria adotar dois hábitos: não consumir açúcar e beber água quente com limão todos os dias de manhã, por três meses.
Com vistas a organizar esse meu trabalho insalubre, compilei uma série exclusivamente dedicada a elementos da tabela periódica: “Veja por que você deve consumir magnésio”, “Sinais do desequilíbrio de zinco” e “O cobre tem uma frequência de cura”. O post sobre o cobre, compartilhado no Super Grupo B-38, parece ter sido escrito por um robô sob o efeito de alucinógenos e diz que o nosso corpo, para estar saudável, precisa se manter na frequência de 1,4 hz. Segue o texto, após uma necessária correção dos erros de ortografia: “As ondas eletrostáticas, a radiação das torres de celular e rádio, do sinal digital da tevê e dos roteadores wi-fi geram poluição e causam danos às nossas células. O cobre cria um campo de força ao nosso redor e equilibra a frequência correta do corpo, ocasionando uma cura natural pela natureza. É proteção contra o diabólico 5g e suas implicações para o presente e o futuro.”
Já o glúten é um amortecedor de vibrações: “Assim como a soja é uma planta antiespiritual, da mesma maneira, o glúten foi criado e associado às farinhas para impedir o ser humano de ter acesso a dimensões diferentes.”
No grupo Bolsonaro 22, descubro que existe uma tal “máquina de energia escalar/radiante” que custa mais de 3 mil reais, mas que pelo Telegram é possível contratar um “envio de energia” a meros 50 reais. Por meio de um vídeo de dois minutos, os donos da máquina repassam vibrações voltadas à “parte espiritual, financeira e saúde” do interessado, juntamente com “códigos Grabovoi exclusivos”. Numa pesquisa rápida, descobri que a máquina “abre o muro de Bloc e coloca você no paralelo 33 da prosperidade”, além de melhorar seus níveis de açúcar e o fluxo de plasma no corpo. Já os números Grabovoi são combinações numéricas que colocariam os indivíduos em uma determinada vibração cósmica para materializar seus desejos.
Mais recentemente: “Desconfie de TUDO que você sabe sobre cosmologia, astrofísica, arqueologia, geologia, antropologia, ciência, filosofia e religião”, diz um post. “O mundo vai virar de ponta-cabeça.” A mensagem críptica dizia respeito a uma suposta cidade submersa na Amazônia chamada Ratanabá, uma invenção dos mesmos criadores de “Terra Convexa” e “E.T. Bilu”. Me recuso a pesquisar mais sobre o assunto.
Assim como as provas cabais de fraude nas urnas eletrônicas estão em depoimentos de populares indignados, as maiores evidências de que as vacinas matam fetos estão em posts do Facebook compilados e retransmitidos nos grupos. Uma mulher pergunta: “Alguma mãe o coração do bebê parou depois da vacina da Covid? Se sim, qual vacina tomou?” E seguem-se relatos aleatórios de pessoas relacionando um aborto espontâneo a uma dose de vacina, do tipo: “A sobrinha de uma conhecida minha ficou com falta de ar.”
E sim: muita gente ainda acredita que vacinas causam autismo – a rainha de todas as fake news, que tem sido desmentida à exaustão há mais de vinte anos, mas que ainda é repassada largamente nesses canais e grupos de Telegram.
Legenda de um vídeo: “Ensine seus filhos a se livrarem das braçadeiras caso eles sejam sequestrados.”
12 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA_Como era de se esperar, muitos dos membros desses grupos desprezam as agências de checagem e o jornalismo profissional. Em um dos grupos de apoio ao presidente, alguém divulgou uma petição para “mostrar o dedo do meio para o fact-checking que manipula a informação”, que até o momento tinha três assinaturas. Afinal, é preciso poder continuar repassando despreocupadamente uma montagem de Lula de mãos dadas com o presidente venezuelano Nicolás Maduro, sugerindo que eles foram namorados em 1984, e do juiz Marco Aurélio Mello ao lado de Fidel Castro em 1964 – notícias tão falsas quanto antigas, já desmentidas há mais de dois anos.
E não, a revista The Economist não publicou uma capa de Luiz Inácio Lula da Silva com os dizeres: “O mais corrupto do mundo”, nem o jornal The Washington Post imprimiu a seguinte manchete na primeira página: “Bolsonaro é o melhor presidente do Brasil de todos os tempos e o povo o ama”, com um inglês truncado e a diagramação tosca.
As manchetes das checagens denunciando as notícias falsas são, em si, altamente poéticas, mas para alguns também são a prova de que o boato é verdadeiro. Um exemplo: o departamento de checagem do USA Today publicou que os cientistas do CERN (Conselho Europeu para Pesquisas Nucleares) não estavam abrindo um portal para o inferno. “A alegação não tem nenhuma base. Não há evidências de que os cientistas do CERN estejam engajados em outras atividades que não sejam científicas”, dizia a reportagem. Na sequência, alguns especialistas refutavam o mais seriamente possível a alegação desvairada. Ainda assim, depois de repassar a manchete, os administradores de O Equinócio comentaram que, quando o departamento de verificação de fatos é acionado, “é sinal de que estamos no caminho certo”.
Outro exemplo: uma matéria da revista The Atlantic alertou que norte-americanos bem-intencionados estavam levantando recursos para combater uma epidemia de tráfico sexual de crianças que simplesmente não existia. Quando essa matéria foi divulgada no boletim do aplicativo Apple News, alguns usuários do Telegram e do Twitter alegaram que isso era evidência de que a mídia e as grandes empresas de tecnologia agiam como cúmplices no encobrimento dessa epidemia.
Sim, é exaustivo. Eu, que sempre fui temente aos preceitos da aferição de dados, tenho checado avidamente os detalhes das próprias fake news – ou seja, continuo tentando ser criteriosa com tudo, inclusive com o conteúdo em si das mentiras. Aqui vão quatro casos emblemáticos que o meu histórico de buscas registrou nos últimos dias: a) Míriam Leitão e Dilma Rousseff teriam assaltado um banco Banespa ou um quartel do Exército nos anos 1960?; b) Lula era amante do Fidel ou do Maduro?; c) José Dirceu estava participando da orgia com Luís Roberto Barroso em Cuba ou ele só estaria de posse do vídeo comprometedor?; d) Os mandantes da facada foram um sobrinho do Lula e um cunhado de Fernando Haddad ou um cunhado do Lula e um sobrinho do Haddad?
Marquei uma consulta com o psiquiatra para quarta-feira que vem. Ele deve sugerir o aumento das medicações.
13 DE AGOSTO, SÁBADO_Ao abrir o Telegram, vi que o grupo Direita Inteligente tinha acumulado 3 081 novas mensagens em um só dia. Então é isso que chamam de “desamparo aprendido”: a gente rolar a barra lateral do Telegram sem ânimo e registrar os dizeres: “Se essa lei for aprovada, não existirá mais Dia dos Pais.”
Há esforços pontuais para conter a enxurrada de falsificações nas redes sociais. Algumas plataformas como Facebook, Twitter e YouTube suspenderam ou excluíram contas pessoais e derrubaram vídeos com conteúdo enganoso, sobretudo no contexto da pandemia de Covid. Nada mais justo: afinal, depois de quase dois anos e meio, é difícil dizer quantas das 680 mil mortes no Brasil poderiam ter sido evitadas se o governo não tivesse apostado em um “tratamento precoce” ineficaz e uma imunidade de rebanho igualmente ilusória, em vez de investir nas medidas sanitárias comprovadas pela ciência e, claro, em vacinas.
Em maio de 2020, segundo cálculos divulgados pelo G1 (“Bolsonaro repete que 70% pegarão coronavírus”), cientistas estimaram que 1,8 milhão de mortes poderiam ocorrer caso não adotássemos nenhuma estratégia de mitigação da pandemia (distanciamento social, uso de máscaras e rastreamento de contatos). O governo federal pareceu plenamente de acordo com esse número de mortes e incentivou a disseminação do vírus. Enquanto isso, ainda trabalhou – e continua trabalhando – para desacreditar as vacinas.
Com a aproximação das eleições, percebeu-se que a desinformação podia ser letal não só para a saúde pública, mas também para a democracia. O WhatsApp decidiu adiar no Brasil – pelo menos até outubro – a estreia de uma ferramenta global que permite aglutinar comunidades em um megagrupo, o que tornaria a plataforma mais parecida com o Telegram. O próprio Telegram concordou em monitorar diariamente os cem maiores canais do país, colaborar com o Poder Judiciário e fazer uma parceria futura com agências de checagem.
Enquanto isso, no Super Grupo B-38: “É hora de achar suas fraquezas e atacar. Pessoal da astrologia, esse é o mapa astral de Alexandre de Moraes.”
14 DE AGOSTO, DOMINGO_Decidi encerrar minha experiência um dia antes por pura falta de vontade de viver. “Estudo sério alerta: Máscaras faciais estão cheias de bactérias e fungos causadores de doenças”, diz uma manchete. “Usar máscara aumenta risco de mortalidade por oxidação do sangue ou por Covid?”, pergunta outra, e eu fecho todas as janelas ao mesmo tempo. Chega.
Não há saída fácil para o lamaçal em que nos metemos. Alguns especialistas (como o mencionado Jonathan Haidt) sugerem adicionar certa “fricção” na hora de repassar informações nas redes sociais, por exemplo: acrescentando um alerta de conteúdo duvidoso, exigindo a verificação da identidade do usuário ou simplesmente tornando o ato de compartilhar mais trabalhoso. Em teoria, as pessoas pensariam por alguns segundos a mais antes de sair divulgando notícias falsas, distorcidas e/ou sensacionalistas por impulso. A perspectiva de uma responsabilização futura também pode ser uma medida importante para coibir a prática de crimes digitais.
Alguns inquéritos estão em andamento para tentar identificar os financiadores e principais impulsionadores de fake news no país. O próprio presidente Jair Bolsonaro está sendo investigado por sua “atuação direta e relevante” na promoção da ação de desinformação. Outro inquérito relacionado aponta para a ação orquestrada de uma milícia digital, que usaria a estrutura do chamado “gabinete do ódio” para difundir desinformação com vistas a obter vantagens e auferir ganhos políticos, ideológicos e financeiros. Mas tudo é ainda incipiente. Nos grupos de Telegram, tais investigações são atribuídas a “pessoas trevosas” que têm uma “agenda demoníaca”.
Após essas duas semanas, a impressão que ficou para mim é de que ainda não temos as ferramentas cognitivas e emocionais para lidar com imagens de chouriço particularmente tentadoras, sobretudo quando todos ao redor desejam acreditar que se trata da estrela mais próxima do Sol.
Enquanto escrevo, minha filha ainda não conseguiu tomar a vacina contra a Covid.[4]
[1] No Telegram, há uma diferença entre grupos (de até 200 mil membros) e canais (que funcionam como listas de transmissões, com número ilimitado de inscritos). Nos grupos, qualquer um pode postar, não só os administradores. Para fins de comparação, os grupos no WhatsApp podem ter, no máximo, 256 participantes.
[2] As tais “Pedras Guias” se referem a um misterioso monumento em granito de quase 6 metros localizado na cidade de Geórgia, nos Estados Unidos, que continha ensinamentos considerados globalistas ou satânicos pelos conservadores cristãos. Em julho, a estrutura foi danificada em um atentado e posteriormente demolida.
[3] Muitos desses posts foram originalmente grafados em caixa-alta do começo ao fim. Normalizei a grafia para facilitar a leitura, mas mantive o excesso de pontos de exclamação.
[4] Na capital paulista, a vacina foi finalmente liberada no dia 20 de agosto, sábado, para o público de 3 a 4 anos sem comorbidades. Ela tomou no dia 22.