Guerra Israel-Hamas: Fome mata na Faixa de Gaza, denuncia OMS

Guerra Israel-Hamas: Fome mata na Faixa de Gaza, denuncia OMS

Guerra Israel-Hamas: Fome
mata na Faixa de Gaza, denuncia OMS

Organização Mundial da Saúde afirma que os 2,4 milhões de palestinos do enclave estão "à beira do abismo" e não têm o que comer. ONU classifica o território como "inabitável". Israel avalia nova proposta de cessar-fogo, mas impõe limites

 

Palestinos desabrigados fogem de Khan Yunis, no sul de Gaza, em meio aos combates entre as forças de Israel e o Hamas  -  (crédito: Mahmud Hams/AFP)

Palestinos desabrigados fogem de Khan Yunis, no sul de Gaza, em meio aos combates entre as forças de Israel e o Hamas - (crédito: Mahmud Hams/AFP)

Foto de perfil do autor(a) Rodrigo Craveiro

Rodrigo Craveiro 

 

Todos os dias, o clínico geral Hazem Abu Moloh, 51 anos, morador do campo de refugiados de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza, se mantém com apenas uma refeição diária. "Nós nos alimentamos de comida enlatada, que raramente conseguimos. Não existe segurança alimentar em Gaza. Você pode imaginar centenas de milhares de pessoas vivendo em tendas e em abrigos improvisados. A ajuda humanitária que passa pelas fronteiras é escassa. Eu me alimento uma vez por dia para que meus quatro filhos — um rapaz de 22 anos e um menino de sete; e uma moça de 21 e uma garota de 11 — consigam comer", relatou ao Correio, por meio da internet, em meio a dificuldades de conexão. 

No último domingo (28/1), Abu Moloh reencontrou amigos que não via havia dois meses. "Percebi que o peso deles tinha caído pela metade", comentou. Segundo ele, ante a falta de gás, as pessoas começam a usar lenha para preparar o pouco alimento. "Os preços estão muito altos, especialmente de gêneros alimentícios. Por aqui, muitos se perguntam: 'Há uma trégua no horizonte?'", acrescentou. O médico palestino relatou que mais de 170 mil prédios da Faixa de Gaza foram arrasados. "A infraestrutura está destruída, e isso inclui a rede de água e de esgoto, as universidades, as escolas, as ruas. Gaza precisará de muitos anos difíceis para voltar a ser o que um dia foi."

Michael Ryan, diretor do Programa de Emergências Sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS), advertiu que os moradores do enclave palestino estão "à beira do abismo". "Os civis de Gaza não fazem parte desse conflito e devem ser protegidos. É uma população que morre de fome , que está à beira do abismo", alertou. "Eles estão imersos em uma enorme catástrofe, mas, se me perguntarem se a catástrofe pode se agravar, sim, completamente."

Abu Moloh concorda com a conclusão da Organização das Nações Unidas (ONU): os bombardeios israelenses contra o grupo extremista palestino Hamas transformaram a Faixa de Gaza em um território inabitável. A agência da ONU para o desenvolvimento e o comércio UNCTAD citou um nível "sem precedentes" de destruição. "Serão necessárias dezenas de bilhões de dólares e décadas para reverter" essa situação, apontou o organismo. "Mesmo com o fim da operação militar e com a recente taxa de crescimento de 0,4 ponto percentual, Gaza somente vai recuperar o Produto Interno Bruto (PIB) em níveis de 2022 em cinco anos", acrescentou a UNCTAD. 

Com 2,4 milhões de habitantes, Gaza amarga 50% de sua infraestrutura danificada ou destruída. Há relatos de que, em meio ao desespero da fome e da sede, alguns comem grama e água poluída. Por e-mail, Adam Shapiro — diretor para Israel e Palestina da Dawn, ONG que luta pela democracia e pelos direitos humanos no Oriente Médio e no Norte da África — afirmou ao Correio que a OMS monitora a situação no terreno. "Temos recebido relatos de muitas agências e de contatos nossos de que os palestinos de Gaza estão sem comida e não recebem ajuda suficiente para se sustentarem. Adultos que têm filhos estão comendo menos de uma refeição por dia, para darem tido o que podem a eles. Mas mesmo isso não tem sido o bastante", disse. 

 

Civis observam funcionários do Ministério da Saúde de Gaza preparem corpos para enterro em cova coletiva, a leste de Rafah
Civis observam funcionários do Ministério da Saúde de Gaza preparem corpos para enterro em cova coletiva, a leste de Rafah(foto: Mohammed Abed/AFP)

 

O Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, controlado pelo Hamas, divulgou na terça-feira (30/1) que a guerra deixou 26.751 palestinos mortos, incluindo 11.500 crianças e 8 mil mulheres. Ao menos 7 mil pessoas estariam desaparecidas e 2 milhões se tornaram deslocadas internamente. Israel também impôs um bloqueio rigoroso ao fornecimento de água, medicamentos, alimentos e energia a esse território, de 362 quilômetros quadrados.

Plano de trégua

As tratativas para um novo cessar-fogo em Gaza ganharam força nas últimas horas. David Barnea, chefe da Mossad — o serviço secreto de Israel —, apresentou ao gabinete de guerra do premiê Benjamin Netanyahu um plano de trégua de nove pontos que prevê libertar todos os 136 israelenses feitos reféns pelo Hamas em várias etapas. A emissora Canal 12 divulgou que a primeira fase do acordo contemplaria a soltura de 35 sequestrados ao longo de 35 dias de cessar-fogo. Nessa etapa, seriam libertados pelo Hamas mulheres, doentes, feridos  e idosos. O número de prisioneiros palestinos a serem soltos dos centros de detenção de Israel ainda não foi definido. 

Em discurso transmitido por vídeo, Netanyahu declarou que não aceitará um acordo "a qualquer preço". "Nós estamos trabalhando para obter outro plano para liberar nossos cidadãos cativos, mas eu reitero: não a qualquer preço", afirmou. "Temos linhas vermelhas. Não colocaremos fim à guerra, não retiraremos as Forças de Defesa de Israel (IDF) da Faixa de Gaza, não libertaremos milhares de terroristas", assegurou. 

Durante reunião de embaixadores na ONU, o primeiro-ministro denunciou que a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA) foi "totalmente infiltrada" pelo Hamas. "Nós precisamos que outras agências da ONU e entidades humanitárias substituam a UNRWA", afirmou Netanyahu. O governo de Israel acusou a instituição de envolvimento no massacre de 7 de outubro, quando cerca de 2 mil extremistas do Hamas invadiram o sul do Estado judeu e assassinaram 1.200 civis e militares. Segundo Israel, pelo menos 12 funcionários da UNRWA participaram do ataque terrorista. 

Ante as acusações, EUA, Reino Unido, Alemanha e Japão suspenderam a entrega de dinheiro à UNRWA. O secretário-geral da ONU, António Guterres, classificou a agência como a "espinha dorsal" da ajuda à Faixa de Gaza. "Ontem (terça-feira), me reuni com os doadores para ouvir as suas preocupações e expor as medidas que estamos tomando para resolvê-las (...). A UNRWA é a espinha dorsal de toda a resposta humanitária em Gaza", disse a um comitê da ONU sobre os direitos dos palestinos.

EU ACHO...

 

Hazem Abu Moloh, 51 anos, médico, morador do campo de refugiados de Nusirat, hoje no sul de Gaza
Hazem Abu Moloh, 51 anos, médico, morador do campo de refugiados de Nusirat, hoje no sul de Gaza(foto: Fotos: Arquivo pessoal )

 

"Nós estamos enfrentando uma verdadeira catástrofe, em todos os aspectos da vida. A situação é insuportável e indescritível. A vida está muito difícil. Agora, nossos olhos estão todos voltados para um cessar-fogo. Nós, moradores da Faixa de Gaza, estamos submetidos a uma punição coletiva."

Hazem Abu Moloh, 51 anos, médico, morador do campo de refugiados de Nuseirat

 

Adam Shapiro, diretor para Israel e Palestina da Dawn, ONG que luta pela democracia e pelos direitos humanos no Oriente Médio e no Norte da África
Adam Shapiro, diretor para Israel e Palestina da Dawn, ONG que luta pela democracia e pelos direitos humanos no Oriente Médio e no Norte da África(foto: Arquivo pessoal )

 

"Gaza está inabitável, segundo qualquer compreensão humana do termo. As pessoas vivem em tendas ou no meio das ruas. Na terça-feira, nevou em Gaza e fez frio. Com mais da metade dos prédios destruídos e com o prosseguimento dos ataques militares israelenses,Gaza não é de todo habitável neste momento. As pessoas estão fazendo o que podem para sobreviver, masnão há nada em Gaza que a torne um lugar onde as pessoas possam viver sob esse ataque genocida."

Adam Shapiro, diretor para Israel e Palestina da Dawn, ONG que luta pela democracia e pelos direitos humanos no Oriente Médio e no Norte da África

 

QUATRO PERGUNTAS PARA 

 

DANIEL ZOHAR ZONSHINE, EMBAIXADOR DE ISRAEL NO BRASIL

Como o senhor vê a possibilidade de trégua em Gaza?

Estamos há mais de três meses em uma guerra. Apenas para mencionar, nós não a começamos, nem a queríamos. A situação é mais complicada do que antes. A militarização da Faixa de Gaza tem sido maior do que esperávamos — a quantidade de armamentos, de túneis e os preparativos para ataques contra Israel. Isso cria muitas dificuldades, quando tentamos alcançar as metas da guerra, ou seja, eliminar a capacidade do Hamas de controlar Gaza militarmente e sob outros pontos de vista, e recuperar os 136 reféns, a maior parte deles vivos, infelizmente nem todos. Isso está no topo de nossos interesses no momento.

O que um acordo tem que conter?

Há discussões o tempo todo, tentativas de vermos opções para um acordo. Está claro que um pacto tem que incluir a libertação dos reféns. Esse processo envolve o Catar, o Egito e outros atores essenciais. Os debates tentam decidir quais opções estão sobre a mesa o tempo todo. Temos menos soldados israelenses dentro da Cidade de Gaza. Algumas operações são apenas para monitoramento, feito do lado de fora. Mas ainda há combates substanciais no sul da Faixa de Gaza contra o Hamas. Tentamos não envolver a população civil. Evitamos isso da maneira possível. Muita ajuda humanitária tem entrado em Gaza, principalmente comida. Cerca de 11 mil caminhões ingressaram na Faixa de Gaza com suprimentos, desde o início da guerra. Nem todos os suprimentos chegam à população que necessita.

 

Daniel Zonshine, embaixador de Israel em Brasília
Daniel Zonshine, embaixador de Israel em Brasília(foto: Embaixada de Israel)

 

Por qual motivo?

O Hamas tem confiscado esses suprimentos, em parte para o uso de seus próprios integrantes. Isso é parte da realidade de Gaza. O Hamas ainda controla partes substanciais do território, mas isso acabará o mais rápido possível. O fim do Hamas será benéfico não apenas para Israel, mas para todso os palestinos que vivem lá. O Hamas é uma organização bem persistente e imprevisível, o que torna difícil controlá-la e monitorar o que pode ocorrer.

O Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, cita 26.751 palestinos mortos, incluindo mais de 10 mil crianças. De que modo o senhor vê esses números?

O Hamas usa esses números como uma forma de mostrar que Israel age com excessiva agressividade. Não sabemos se os números são corretos ou não. Do nosso ponto de vista, pessoas que não se envolveram (com o Hamas) não deveriam morrer. Nesses números, cerca de 9 mil ou 10 mil eram combates do Hamas. A ideia é tentar evitar, o tanto quanto possível, machucar mulheres e crianças não envolvidas. Não é fácil, pois Gaza é uma área muito densa. O modo como o Hamas tem de se proteger é colocar civis na frente. A guerra tem suas próprias regras. Estamos trabalhando de forma estrita de acordo com as regras da guerra. Há baixas entre as pessoas normais por causa da forma com que o Hamas atua. Se existir outras soluções que alguém possa nos oferecer, para lidar com o Hamas, sem machucar pessoas não envolvidas, ficaríamos gratos em escutá-las. Mas a forma com que o Hamas age tem causado muitas baixas. (RC)

 

 

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail [email protected]

  • Civis observam funcionários do Ministério da Saúde de Gaza prepararem corpos para enterro em cova coletiva, a leste de Rafah

    Civis observam funcionários do Ministério da Saúde de Gaza preparem corpos para enterro em cova coletiva, a leste de RafahFoto: Mohammed Abed/AFP