Avançando na unidade antifascista é possível derrotar Satã
Em diversos textos defendi a necessidade de uma voz unificada da oposição para combater a emergência do fascismo.
Avançando na unidade antifascista é possível derrotar Satã.
SUL 21
Tarso Genro (*)
Em diversos textos defendi a necessidade de uma voz unificada da oposição para combater a emergência do fascismo. O fascismo é a exceção permanente e ele não emerge suavemente, como um parto normal da democracia política. Ele surge como um vírus que infecta o tecido da democracia e perverte os seus fundamentos, fazendo-o pela denúncia da não entrega das suas promessas de igualdade e pela naturalização do mal, como necessário à sobrevivência de uma parte da espécie.
Bolsonaro não está fora do páreo eleitoral, até mesmo porque a estratégia de seu grupo político não é prioritariamente ganhar as eleições, mas (prioritariamente) levar ao limite a crise da democracia liberal. Bolsonaro e seu grupo pretendem substituir o regime da democracia política liberal por um Governo forte, originário ou não de uma votação majoritária. Seu objetivo é deteriorar as relações de solidariedade compartilhada que a democracia oferece formalmente, substituindo-a por uma unidade montada sobre o preconceito, o ódio de classe, a ignorância e o racismo.
Este artigo quer contribuir com a oposição de esquerda antifascista ao bolsonarismo, que está armado politicamente por uma internacional de extrema direita, cujas manipulações políticas, mentiras em sequência, informações falsas – dedicadas a eliminar pessoas do âmbito da política e aniquilar reputações – não tem precedentes na história do fascismo “clássico”. Nem em outras ditaduras do século passado.
A estratégia de Bolsonaro mimetiza uma sequência de fotos disparadas em sequência, com uma câmera de alta tecnologia, que não dá fôlego ao espectador: não permite a reflexão, mas forma uma aparente totalidade, na qual cada momento é ligado ao outro por uma mentira, uma ilusão, uma chamada ao inconsciente de barbárie que a disputa pela sobrevivência, no capitalismo atual, deixou em cada um de nós. A estratégia do bolsonarismo esgota rapidamente o pequeno fôlego de tolerância da mediocridade assediada pela insegurança.
E assim seguimos esgotados, enraivecidos, perplexos pela impotência da verdade e da ciência, contra seus desatinos homicidas e suas pulsões destrutivas. Bolsonaro ataca o que restou da razão iluminista que se anula na sublimação histérica do presente. Nós nos opomos a ele, com maior frequência, através de retratos feitos por câmeras antigas, cultivadas num mundo que não mais existe: da época que a vida comum tinha uma certa lógica dentro do capitalismo e era possível ter uma mínima previsão de utopia sobre o futuro.
Bolsonaro promove com seus gestos e suas falas sem nexo uma totalidade política coerente: mentir sempre, oposição sistemática e demagógica à tolerância e à diferença e ataques à democracia liberal real, cuja prática está distante das suas promessas históricas: Um discurso simples, repetitivo, escorado no ódio reiterado e na falsidade de uma estética de uma proximidade com o povo.
Sustento que as formas de dominação e propaganda arquitetadas pelas ditaduras militares na América Latina não chegam aos pés, em qualidade e eficácia, da estratégia bolsonarista. Independentemente de que elas tenham sido concebidas por Bolsonaro e sua equipe (ou que venham de fora da “inteligência do mal” instalada no país), elas têm sido eficazes para o público a que são destinadas.
Entendo – neste contexto – que devemos superar uma incompreensão que nos trava na luta política. Ela se relaciona com o entendimento sobre o transcurso do “tempo político” na atualidade, que é pensado por boa parte da oposição de esquerda, como se ele fluísse com a mesma velocidade que fluía no século passado. Era uma época em que o cotidiano era mais lento e a sua narrativa se expressava nos textos falados, com relações mais definidas – entre um e outro debate universal – cujos confrontos eram apreendidos de forma mais tangível.
Qual a diferença? Hoje, os “discursos” meramente verbalizados e as notícias dos textos escritos – em rede ou fora delas – estão na segunda fila dos combates políticos, influindo pouco nas instâncias de luta massificadas e na formação da opinião em “bolhas”. Estas são organizadas em relações virtuais, que são abertas ou fechadas, dependendo dos interesse momentâneos dos sujeitos ocultos nos escaninhos fascistas da internet.
Na época em que as perspectivas de cada “parte” eram mais concretas os argumentos eram mais ouvidos, mas hoje as imagens é que contam. Antes os discursos eram sobre ditadura e democracia, Cuba e Imperialismo, reformas de esquerda e conservadorismo, liberdade sexual e casamento tradicional, “reformas sociais” e estabilidade conservadora, que eram alternativas visíveis através de formas culturais que poderiam ser assumidas ou rejeitadas por qualquer pessoa..
Sem responsabilizar o autor por eventuais erros aqui cometidos, refiro a uma passagem do ensaio magnífico “Ver o invisível – a ética das imagens”, de Nelson Brissac Peixoto (“Ética”, Melhoramentos, 1992, Org. Adauto Novaes, pág.301 e segs.), no qual o autor, através de uma analogia com as fotografias primitivas – as antigas fotos feitas no início da “máquina fotográfica” – faz referências à mensuração do “transcurso do tempo” histórico e das sensibilidades humanas formadas em torno da vida real.
Na fotografia antiga “a exposição prolongada dá tempo para que a pessoa encontre a sua expressão diante da câmera(…). (em que) a própria técnica levava o modelo ‘a viver, não ao sabor do instante, mas dentro dele’. Essas imagens mediam o tempo que as coisas precisavam para se cristalizarem. As pessoas cresciam dentro da imagem’. (Era) o oposto do instantâneo jornalístico que decide a fama do retratado”.
Ressalto aqui a característica mais marcante da crítica textual ao bolsonarismo, contraposta à difusão das ideias de Bolsonaro com imagens, nas quais os seus textos tornam-se irrelevantes. A oposição, em regra, comunica a sua “razão humanista” enquadrada pela palavra com infinitos sujeitos difusores, cada um com os seus fundamentos que não são unificados numa imagem central. Bolsonaro, ao contrário, unifica o seu discurso de mentiras na imagem, que mente cada vez mais e assim transforma o cotidiano num absurdo coerente, composto por falsidades conectadas entre si repetidas à exaustão.
A oposição de esquerda aparece formada por diferentes sujeitos, não só pela pluralidade das suas ideias sobre o futuro, mas também porque não é “negócio”, para a mídia tradicional, unificá-la em torno de um contraditor importante, que poderia inclusive derrotar Bolsonaro no primeiro turno, porque este (Lula) não é sabidamente do seu agrado.
Face a estas condições, a mensagem da esquerda – numa conjuntura em que uma boa parte das classes dominantes tende a compartilhar com o fascismo – aparece como difusa e insegura. E a mensagem de Bolsonaro aparenta firmeza e unidade. Se a nossa mensagem era absorvível em tempos mais “lentos”, com as estruturas de classe mais definidas e menos líquidas, ela hoje se tornou mais difícil de ser apropriada. Num cotidiano em que as palavras têm cada vez menos sentido, as mentiras encadeadas pela imagem, com Bolsonaro, se tornam coerentes pela sua repetição exaustiva, independentemente da sua relação com o mundo real.
A simplificação quase demencial que Bolsonaro joga sobre os fatos complexos da economia e da política – da vida e da morte – da moralidade e da amoralidade, não precisa de um discurso racional para legitimar-se. Necessita de uma imagem que tenha “coragem” decretar a possibilidade da morte “do outro”, seja pela guerra, pela peste ou pela fome, atitudes que cobrem este tipo de líder com o invólucro de uma respeitável sacralidade satânica.
Bolsonaro e sua trupe, interna e externa, compreenderam que “o sagrado não se entrega sem resistência. Sua última trincheira, diz Benjamin, é justamente o rosto humano”, em cuja imagem “nós nos acostumamos a só ver aquilo que é dinâmico, que se agita ante os olhos, que acontece.” A sequência de mentiras conectadas entre si, permeadas de agressões, deboches, violências verbais, apelos sexuais perversos, criou um rosto que fez desandar todo o reconhecimento do humano em uma parte significativa do povo.
Nas religiões e nas políticas satânicas, dar relevo ao ser adorado no que ele tem de mais animal e desprezível, é uma carta de admissão que confere uma nova identidade aos seus aderentes. Presumidamente gera um espírito comum na aventura de viver sem lei e sem ordem, ou seja, sem um outro que lhe obriga à solidariedade e à civilidade, que lhe limita o gozo do que entendem, miseravelmente, como vida.
Uma fala comum e permanente da oposição de esquerda sobre princípios que nos unem contra o fascismo e o genocídio é o que pode bloquear Bolsonaro. E assim retirá-lo da cena histórica satânica que ele criou para se apropriar, pela desgraça, da infelicidade alheia transformada em energia política para matar e para oprimir. “Sob a ditadura da visão imediata, o olhar perdeu sua abrangência panorâmica”, nos diz o autor, assim como a imagem imediata e cotidiana de Bolsonaro, carregada de ódio, fez parte do nosso povo perder o panorama da sua História. Sem essa recuperação, perderemos, Com ela venceremos.
(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.