Abertura Política: a limpeza do terreno
Abertura Política: a limpeza do terreno
Quando viram que teriam de devolver o poder aos civis, os militares começaram a se proteger contra possíveis punições por seus atos
Em 1976 já ficava claro que o destino dos militares que controlavam o país era a volta aos quartéis. O fracasso do projeto chamado de Brasil potência, que marcou o breve período do “milagre econômico”, dava lugar a expectativas cada vez mais sombrias para a economia e para a população em geral. A classe média particularmente ressentia-se do fim da festa dos juros baixos, gasolina barata e crédito abundante, pondo a culpa no governo. As eleições eram um termômetro claro disso: nas eleições de 1974, o MDB ganhou 16 das 22 cadeiras em jogo no Senado Federal, e obteve 44,6% das cadeiras na Câmara dos Deputados. O maior crescimento ocorreu principalmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, ou seja, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Se a situação piorasse, corria o risco de, nas eleições de 1978, a oposição ganhar a maioria na Câmara e talvez até no Senado, podendo mudar a Constituição e tomar as rédeas do processo de abertura, rumo à redemocratização.
E os números foram dando razão às previsões mais pessimistas do governo: o PIB, que em 1973 foi de 14% – um recorde -, caiu para 9,6% em 1974 e 4,2% em 75, estacionando em 4,6% em 1976. A inflação desse ano passou dos 40%, apertando o bolso dos brasileiros, enquanto a dívida externa passava dos 25 bilhões de dólares, obrigando o governo a renovar empréstimos, cortar investimentos, comprometer receitas e emitir mais dinheiro para dar conta dos gastos internos. Ou seja, uma fórmula para o desastre. Para piorar, a guerra fria, um dos esteios da narrativa do slogan preferido do governo militar, “segurança e desenvolvimento”, dava sinais de claro arrefecimento e era dado como certa a vitória do democrata Jimmy Carter, um claro crítico das violações dos direitos humanos na América Latina e da truculência do regime militar brasileiro. Enfim, era hora de recolher as armas, sair de campo, voltar pra rotina da caserna. E deixar que os civis se virassem com o estrago deixado para trás.
Porém, nem todos os militares pensavam assim, principalmente o pessoal da chamada Comunidade de Informações, que havia deitado e rolado nos bons tempos do Costa e Silva e do Médici, desmantelando a reação armada e muito mais, com métodos de violência capazes de ruborizar perversos e intimidar canalhas. Agora, diante da iminência de um possível Estado de Direito, temiam uma virada de mesa, com a responsabilização de seus atos. Pior que esse novo cenário implicava também a possibilidade da volta dos políticos que foram defenestrados pelos militares mas que não haviam perdido o seu prestígio na memória da população. Pior ainda seria a legalização dos comunistas, que apesar de toda a repressão ainda transitavam pelas redações de jornais, pelos corredores das universidades, pelas periferias das cidades, esperando uma oportunidade.
Era preciso impedir isso aí!
Quatro fatos que ocorreram entre os anos de 1976 e 1977 parecem ter sido a execução de um roteiro escrito para atender às demandas desse grupo “linha dura” e , com isso, abrir caminho para uma abertura negociada . O primeiro fato ocorreu no dia 22 de agosto de 1976: um acidente de carro matou o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Um caminhão em sentido contrário atravessou o quilômetro 143 da Dutra e chocou-se com o Opala que transportava o ex-presidente. O segundo fato ocorreu no dia 6 de dezembro de 1976: na pequena cidade de Mercedes, Argentina, morre, de um suposto ataque cardíaco, o ex-presidente João Goulart. Jango ensaiava sua volta ao Brasil e a retomada de suas atividades políticas. Seus amigos recomendavam que ele tomasse cuidado e que não dormisse duas vezes no mesmo lugar. O laudo médico com a comprovação da causa da morte nunca foi expedido. O terceiro fato ocorreu no dia 16 de dezembro desse mesmo ano: no bairro da Lapa, em São Paulo, vários dirigentes do PCdoB estavam reunidos para avaliar o quadro de mudanças que ocorria no país e no mundo quando foram surpreendidos pelas forças de segurança que invadiram o local atirando. Dois dirigentes, Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, morreram na hora. Outro líder do movimento, João Batista Drummond, foi ferido com gravidade e morto depois, nas dependências do Exército. O PCdoB estava acéfalo. Por fim, o quarto fato ocorreu no dia 21 de maio de 1977. Com apenas 63 anos, o jornalista e líder político Carlos Lacerda , que foi, primeiramente, um apoiador radical do golpe para depois tornou-se um de seus mais empedernidos críticos, deu entrada na Clínica são Vicente, no Rio de Janeiro, com dores por todo o corpo e febre alta. Pouco depois estava morto, com diagnóstico de septicemia.
Jango, Juscelino e Carlos Lacerda foram responsáveis, em 1967, pela criação da Frente Ampla, movimento que buscava trazer o governo Costa e Silva de volta para a legalidade. O AI-5 acabou com as pretensões deles e os forçou a um silêncio de chumbo, com seus direitos políticos cassados por 10 anos. A expectativa era que, com a abertura e com o fim da punição, eles pudessem voltar às suas atividades. Não puderam.
As mortes nunca foram associadas oficialmente aos militares. Pode ter sido apenas uma curiosa coincidência. No entanto, graças a essa “limpeza de terreno”, Geisel conseguiu dar prosseguimento ao seu projeto de volta controlada à normalidade, vencendo resistências internas e camuflando o passado para evitar punições aos agentes da ditadura. Em abril de 1977, baixou o Pacote de Abril, com uma série de mudanças na Constituição para garantir que o partido do governo, A ARENA, continuasse a controlar o Congresso após as eleições legislativas de 1978, além de aumentar o mandato do futuro presidente para 6 anos. Em dezembro de 1978, Geisel revoga o AI-5. Em agosto de 1979, o Congresso aprova a lei da Anistia, incluindo os agentes do governo nela.
Tudo resolvido. A “poeira” estava sob o tapete. Os incômodos – pelo menos os mais “perigosos”- silenciados. A História agora podia seguir seu rumo.
Sobre o/a autor/a
Daniel Medeiros
Daniel Medeiros é professor de humanidades, enquanto elas existirem.