A maioria do mundo não aderiu às sanções dos EUA contra a Rússia, assinala Noam Chomsky
“É preciso avançar para um acordo negociado na Ucrânia”, convoca o respeitado intelectual norte-americano.
A maioria do mundo não aderiu às sanções dos EUA contra a Rússia, assinala Noam Chomsky
Por Hora do Povo
Linguista norte-americano Noam Chomsky (Divulgação)
“É preciso avançar para um acordo negociado na Ucrânia”, convoca o respeitado intelectual norte-americano. “Somos o principal Estado desonesto por uma dimensão enorme – ninguém chega nem perto”, disse Chomsky sobre os Estados Unidos. “E ainda podemos pedir julgamentos de crimes de guerra de outros sem pestanejar”.
Em entrevista ao The Intercept, o linguista de renome mundial Noam Chomsky assinalou que grande parte do resto do mundo está reagindo à condenação dos EUA da invasão da Ucrânia pela Rússia, perguntando: “por que devemos nos envolver em sua hipocrisia?”
“Os Estados Unidos não entendem por que a maior parte do mundo não aderiu às sanções”, disse Chomsky. “Quais países aderiram às sanções? Dê uma olhada. O mapa é revelador”.
“Os países de língua inglesa, a Europa e aqueles que o apartheid da África do Sul chamou de brancos honorários: o Japão, com algumas de suas ex-colônias. É isso”.
“O resto o mundo diz: Sim, terrível, mas o que há de novo? Qual é o alvoroço? Por que devemos nos envolver em sua hipocrisia?”
“Os EUA não podem entender isso”, afirmou, acrescentando que “há muito trabalho a fazer nos Estados Unidos simplesmente para elevar o nível de civilização para onde possamos ver o mundo da maneira que as vítimas tradicionais vêem. Se conseguirmos chegar a esse nível, também poderemos agir de forma muito mais construtiva em relação à Ucrânia.”
“Somos um Estado desonesto, o principal Estado desonesto por uma dimensão enorme – ninguém chega nem perto”, disse Chomsky sobre os Estados Unidos. “E ainda podemos pedir julgamentos de crimes de guerra de outros, sem pestanejar”.
“É interessante observar a reação a tudo isso na parte mais civilizada do mundo, o Sul Global”, continuou ele. “Eles olham para isso; eles condenam a invasão, dizem que é um crime horrível. Mas a resposta básica é: o que há de novo? Putin é um criminoso de guerra; sim, é preciso conhecer um. É a reação básica.”
Na semana passada, Chomsky alertou que os Estados Unidos e a Rússia estão empurrando o planeta para “o ponto mais perigoso da história da humanidade”, citando tanto a guerra na Ucrânia quanto a emergência climática. Para o intelectual, a invasão da Ucrânia é comparável à do Iraque em 2003 e até mesmo à da Polônia em 1939.
Na entrevista, Chomsky também se referiu à descomunal hipocrisia que é o fato de os EUA fazerem estardalhaço sobre “criminosos de guerra”, citando um artigo do New York Times exigindo a punição do ‘criminoso de guerra comandando a Rússia’.
“O interessante desse artigo não é tanto que ele apareceu. É que não provocou ridículo”, assinalou Chomsky. “Na verdade, não houve nenhum comentário sobre isso”.
Ele apontou como apenas alguns dias atrás “tivemos uma exibição clara” de como os Estados Unidos lidam com criminosos de guerra.
“Um dos principais criminosos de guerra nos Estados Unidos é o homem que ordenou a invasão do Afeganistão e do Iraque; não se pode ir muito além disso como criminoso de guerra”, disse Chomsky, se referindo a George W. Bush.
“E, de fato, no 20º aniversário da invasão do Afeganistão, houve uma entrevista na imprensa. Para seu crédito, o The Washington Post o entrevistou na seção de estilo. Vale a pena ler a entrevista: É sobre esse adorável e pateta vovô brincando com seus netos; família feliz, exibindo os retratos que pintou de grandes pessoas que conheceu”.
“UM ACORDO NEGOCIADO”
Chomsky assinalou que a política explícita de Washington “– explícita – é a rejeição de qualquer forma de negociação” no conflito na Ucrânia. Para ele,a pergunta certa a fazer é: “Qual é a melhor coisa a fazer para salvar a Ucrânia de um destino sombrio, de mais destruição? E isso é avançar para um acordo negociado”.
“Existem alguns fatos simples que não são realmente controversos. Há duas maneiras de uma guerra terminar: Uma maneira é que um lado ou o outro seja basicamente destruído. E os russos não serão destruídos. Então isso significa que uma maneira é destruir a Ucrânia”.
Portanto, o que devemos fazer é principalmente “avançar em direção a um possível acordo negociado que salve os ucranianos de mais desastres. Esse deve ser o foco principal”.
Chomsky registrou que essa política explícita de Washington remonta há muito tempo, mas recebeu uma forma definitiva em setembro de 2021 na declaração de política conjunta de 1º de setembro que foi reiterada e ampliada na carta de acordo de 10 de novembro, ele acrescentou.
“E se você olhar para o que diz, basicamente diz que não há negociações”, sublinha o intelectual norte-americano.
“LUTAR ATÉ O ÚLTIMO UCRANIANO”
“O que ele diz é que pede à Ucrânia que avance para o que eles chamaram de um programa aprimorado para entrar na OTAN, que mata as negociações; — isso é antes do aviso de invasão — um aumento no envio de armas avançadas para a Ucrânia, mais treinamento militar, exercícios militares conjuntos, armas colocadas na fronteira”, destacou.
“Não podemos ter certeza, mas é possível que essas declarações fortes possam ter sido um fator para levar Putin e seu círculo a passar do alerta para a invasão direta. Nós não sabemos. Mas enquanto essa política estiver guiando os Estados Unidos, está basicamente dizendo, para citar o embaixador Chas Freeman, está dizendo: vamos lutar até o último ucraniano. É basicamente, o que significa”.
Chomsky apontou, também, que, com base na cobertura da mídia as declarações que ele considera “muito claras, explícitas e sérias” de Zelensky sobre o que poderia ser um acordo político – “crucialmente, a neutralização da Ucrânia” – “foram literalmente suprimidas por um longo período, depois deixadas de lado em favor de imitações heróicas de Winston Churchill pelo congressista, outros lançando Zelensky nesse molde”.
“Devemos ter em mente que a natureza de um acordo político, a natureza geral dele, tem sido bastante clara em todos os lados há algum tempo. De fato, se os EUA estivessem dispostos a considerá-los, talvez não houvesse uma invasão”, afirmou Chomsky.
É ele que enfatiza: “antes da invasão, os EUA tinham basicamente duas opções: uma era seguir sua postura oficial, que acabei de revisar, o que impossibilita as negociações e pode ter levado à guerra; a outra possibilidade era buscar as opções disponíveis”. Até certo ponto, elas “ainda estão um pouco disponíveis, atenuados pela guerra, mas os termos básicos são bastante claros”, acrescenta.
LAVROV: NEUTRALIDADE E DESMILITARIZAÇÃO
“Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, anunciou no início da invasão que a Rússia tinha dois objetivos principais – dois objetivos principais. Neutralidade da Ucrânia e desmilitarização. A desmilitarização não significa se livrar de todas as suas armas. Significa livrar-se de armas pesadas ligadas à interação com a OTAN voltadas para a Rússia”, ressaltou Chomsky.
O que – ele explica – significava basicamente “transformar a Ucrânia em algo como o México”.
O México – registrou Chomsky – é um estado soberano “que pode escolher seu próprio caminho no mundo, sem limitações, mas não pode se juntar a alianças militares administradas por chineses colocando armas avançadas, armas chinesas, na fronteira dos EUA, realizando operações militares conjuntas com o Exército Popular de Libertação, recebendo treinamento e armas avançadas de instrutores chineses e assim por diante”.
“Na verdade, isso é tão inconcebível que ninguém se atreve a falar sobre isso. Quero dizer, se qualquer indício de algo assim acontecer, sabemos qual seria o próximo passo – não há necessidade de falar sobre isso. Então é simplesmente inconcebível”.
“E, basicamente, as propostas de Lavrov poderiam ser interpretadas plausivelmente como dizendo: vamos transformar a Ucrânia no México. Bem, essa era uma opção que poderia ter sido perseguida. Em vez disso, os EUA preferiram fazer o que acabei de descrever como inconcebível para o México”, apontou Chomsky.
DONBASS, OITO ANOS DE VIOLÊNCIA
Outra questão é a região de Donbass. Essa é uma região de extrema violência há oito anos em ambos os lados: bombardeios ucranianos, bombardeios russos, minas terrestres por toda parte, muita violência. Há observadores da OSCE, observadores europeus no terreno que dão relatórios regulares. Você pode lê-los, eles são públicos. Eles não tentam avaliar a origem da violência – essa não é a missão deles – mas falam sobre seu aumento radical. Segundo eles, se minha memória estiver correta, cerca de 15.000 pessoas ou algo assim naquele bairro podem ter sido mortos no conflito nos últimos oito anos desde a Revolta Maidan.
“Bem, algo tem que ser feito sobre Donbass”, afirmou Chomsky, colocando como possibilidade que “talvez os russos aceitassem” um referendo supervisionado internacionalmente para ver o que as pessoas da região querem.
“Uma possibilidade, que estava disponível antes da invasão, era a implementação dos acordos de Minsk II, que previam alguma forma de autonomia na região dentro de uma federação ucraniana mais ampla, algo como a Suíça ou a Bélgica ou outros lugares onde existem estruturas federais – conflito, mas confinados dentro de estruturas federais”.
TALK SHOWS DE DOMINGO
Instado pela observação do entrevistador Jeremy Scarhill, das declarações do conselheiro de segurança nacional do governo Biden e do secretário de Estado sobre “o que era quase um plano de guerra aberto para tentar enfraquecer fundamentalmente o Estado russo” e proceder à derrubada do governo em Moscou, de Vladimir Putin, Chomsky retrucou que “é isso que os pronunciamentos heroicos nos talk shows de domingo significam”.
Pode parecer – ele acrescenta -, novamente, imitações de Winston Churchill, “muito emocionantes”. Mas o que eles traduzem é: “Destrua a Ucrânia. Essa é a tradução”. Inação, na recusa de retirar as posições políticas que os russos certamente estão plenamente cientes, mesmo que os americanos sejam mantidos no escuro, deve-se retirá-las.
“A segunda é: faça o que culpamos a China por não fazer. Junte-se aos esforços para facilitar um acordo diplomático e pare de dizer aos russos: não há saída; você também pode ir à falência; suas costas estão contra a parede”.
DIREITO DE COMETER GENOCÍDIO
Chomsky também registrou o fato pouco conhecido de que Washington ratificou depois de 40 anos a Convenção internacional contra o Genocídio, mas o fez “com uma ressalva, dizendo que não se aplica aos Estados Unidos. Temos o direito de cometer genocídio”.
“Isso chegou aos tribunais internacionais: tribunal da Iugoslávia, ou talvez fosse a Corte de Haia. Eu não me lembro. A Iugoslávia acusou a OTAN de crimes em seu ataque à Sérvia. As potências da OTAN concordaram em entrar nos detalhes das operações judiciais. Os EUA recusaram. E o fez porque a Iugoslávia havia mencionado o genocídio. E os Estados Unidos são auto-imunes, imunizados da acusação de genocídio. E o tribunal aceitou isso. Os países estão sujeitos à jurisdição apenas se a aceitarem. Bem, [esses] somos nós”.
“Podemos continuar. Somos um estado desonesto, o estado desonesto líder em uma dimensão enorme – ninguém está nem perto. E, no entanto, podemos pedir julgamentos de crimes de guerra de outros, sem pestanejar. Podemos até ter colunas do colunista principal, colunista mais respeitado, dizendo: Como podemos lidar com um criminoso de guerra?”
LEI DA INVASÃO DA CORTE DE HAIA
Scarhill, que assinalou o cinismo do governo Biden de pedir julgamento por crimes de guerra “quando Dick Cheney e George Bush estão andando por aí como homens livres, para não mencionar Henry Kissinger”, também registrou outro fato pouco lembrado.
Que em 2002 George W. Bush “sancionou uma lei bipartidária que veio a ser conhecida como Lei de Invasão de Haia. Uma de suas cláusulas afirma que os militares dos EUA podem ser autorizados a realizar uma operação militar na Holanda para libertar qualquer pessoa dos EUA que seja levada para lá sob acusação de crimes de guerra ou sob investigação de crimes de guerra”.
O entrevistador também fez questão de salientar o “número horrível de jornalistas mortos na Ucrânia”, inclusive seu amigo, Brent Renaud, e o jornalismo “incrivelmente corajoso e vital saindo da Ucrânia”. O que contrastou com “os muitos jornalistas, nas redações em Washington, Berlim e Londres, que se vêem no papel agora ao trabalhar para meios de comunicação poderosos, particularmente de transmissão, de apoiadores da posição dos Estados Unidos e da OTAN e como verdadeiros propagandistas para um determinado resultado e curso de ação. E isso está acontecendo ao mesmo tempo em que o governo Biden agora admite que está manipulando a mídia”.