Nova Indústria Brasil, a retomada de uma vocação desprestigiada nos últimos tempos?

Nova Indústria Brasil, a retomada de uma vocação desprestigiada nos últimos tempos?

 

Nova Indústria Brasil, a retomada de uma vocação desprestigiada nos últimos tempos?

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

Trabalhei na editoria de Indústria da especializada e sempre elogiada Gazeta Mercantil, em meados da década de 1970. Eram tempos em que o governo Geisel assinava o Acordo Nuclear com a Alemanha Ocidental e passava a vigorar o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), centrado no desenvolvimento das capacidades energética e de produção de insumos básicos e de bens de capital.

Lembrei-me desse antigo cenário, ao acompanhar o lançamento, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do programa Nova Indústria Brasil, uma iniciativa para tentar retomar o desenvolvimento de um setor que vem permanentemente perdendo espaço no PIB brasileiro, hoje liderado pelo agronegócio.

Os setores para os quais o programa está voltado são infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade; agroindústria; complexo industrial da saúde; transformação digital; bioeconomia; tecnologia de defesa – todos relacionados com evidentes necessidades e carências da sociedade brasileira, que a desafiam cotidianamente –; chama a atenção a tecnologia de defesa, onde há muito a avançar, mas talvez incluída como um gesto simpático para os setores militares.

É inegável que o Brasil precisava de uma política nessa direção, pois a perda do espaço da indústria – hoje em torno de 10% do PIB, segundo algumas estatísticas, ou pouco mais, segundo outras – vem se acelerando desde os erros de política econômica cometidos no governo de Dilma Rousseff, enquanto o agronegócio e os serviços crescem permanentemente.

Mas a adoção do Nova Indústria Brasil recebeu uma surpreendente e até significativa saraivada de críticas de inúmeros economistas, que a cavaleiro de ideologias liberais ou quase, julgam que o Brasil fez, mais uma vez, uma opção errada, uma aposta em uma atividade para a qual não teria vocação, que os países desenvolvidos gozam de significativa dianteira nessa área, na qual não vale a pena se aventurar. Inacreditável, mas são as críticas que expressaram.

Claro, houve aplausos, talvez não tão visíveis na mídia, dos que apoiam a iniciativa, que julgam ser esse o caminho a ser seguido, que uma economia do tamanho da brasileira não pode abrir mão de competir na seara industrial, mesmo considerando-se as pressões dos custos financeiros e os obstáculos tecnológicos. Falando em tecnologia, não seria o caso das universidades brasileiras se engajarem mais em parcerias para o desenvolvimento de métodos e técnicas de produção que preencham as necessidades tupiniquins?

Na época do 2º PND, acompanhei de perto os projetos nacionais das usinas nucleares, como já disse, de siderúrgicas, fundições, telecomunicações, e assim por diante, na indústria de base e na de telecomunicações. Na época, os grandes fabricantes brasileiros reclamavam da pouca participação nacional nos projetos em instalação, pois os financiamentos internacionais para sua construção traziam atrelada a obrigatoriedade de utilizar equipamentos produzidos nos países financiadores. Às empresas brasileiras cabia uma participação minoritária nesses empreendimentos, algo em torno de 20%, se tanto. Para aumentar essa fatia, se mobilizavam os industriais da área de bens de capital, Bardella, Villares, Kok, o do setor de cimento e afins Antônio Ermírio de Moraes, que chegaram a ser premiados como líderes empresariais, em certames promovidos pelo jornal Gazeta Mercantil.

Governo Vargas apostou na industrialização

Ou seja, a questão é antiga, só muda de forma. Depois das pequenas oficinas metalúrgicas instaladas pelas famílias de imigrantes, nas décadas iniciais do século 20, especialmente no Sudeste e Sul brasileiros, o grande salto inicial da indústria brasileira deu-se no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), no bojo de um acordo com os EUA e a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial, com a instalação da Companha Siderúrgica Nacional (CSN). São dessa época também as estatais Companhia Vale do Rio Doce (CHESF), a Companhia Nacional de Álcalis (CNA) e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco. No seu segundo governo (1951-agosto de 1954), deu-se a grande polêmica nacional, em torno do slogan “O Petróleo é Nosso”, que resultou na fundação da Petrobras, que até hoje gera infindáveis polêmicas em torno de sua privatização ou não. (Atualmente, seguindo o espírito do tempo, a CSN está privatizada, a holding Eletrobrás dispõe de só 40,3% das ações e a CNA foi extinta.)

O governo de Juscelino Kubistcheck, o presidente bossa nova da música de Juca Chaves, que presidiu uma das quadras mais criativas da história do País, caracterizou-se pelo slogan “50 Anos em 5”, que orientava seu Plano de Metas. Houve muitos investimentos governamentais em infraestrutura (energia e transportes). E grande absorção de capitais estrangeiros na indústria automobilística (inicialmente associada a nacionais, casamento que pouco durou), na de bens de consumo duráveis e na químico-farmacêutica. E, claro, na construção de Brasília, que abriu as portas do Centro-Oeste brasileiro e da integração do País.

Jânio Quadros foi um cometa que passou pela recém-inaugurada Brasília, por sete meses de 1961, quando renunciou, e seu vice João Goulart, herdeiro do getulismo, dedicou-se a implementar as “reformas de base” que visavam democratizar a economia brasileira. Mexeu com as mais profundas convicções do conservadorismo brasileiro e em 1° de abril de 1964 foi derrubado por um golpe militar.

Sem esquecer do “milagre” econômico atribuído ao repressor governo Médici e seu então ministro da Fazenda, Delfim Netto, e seus criticados e discutidos índices de crescimento do PIB, na casa dos 10% ao ano, vale registrar os Planos Nacionais de Desenvolvimento, especialmente o segundo, cria do então governo Geisel e do ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso. Foi desenhado para expandir a indústria de base no País para, entre outras coisas, fortalecer o suporte à produção do setor de bens duráveis – ao mesmo tempo que a crise da dívida externa se agravava.

Nos governos democráticos pós-1985, em que na área econômica pontificou o Plano Real, com suas benesses anti-inflacionárias, a indústria manteve seu voo de cruzeiro, com problemas e questões aqui e ali, recebeu apoios nos governos Lula, até que sua performance na evolução do PIB começou a perder fôlego no governo de Dilma Rousseff.

Uma tarefa árdua e longa

Não faltaram, nos últimos tempos, sinais de que a indústria brasileira vinha encolhendo, havendo os que apontam o início do processo já nos anos 1980.

O economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Igor Rocha, alertava há algum tempo: “O problema da indústria vem de antes da crise das contas públicas e da pandemia. Quando analisamos o desenvolvimento, os países tendem a se desindustrializar naturalmente na medida em que fazem a passagem da renda média para a alta. No Brasil, a desindustrialização ocorreu sem que o país atingisse a alta renda”. Vale lembrar que, segundo o noticiário internacional, em função dos temores gerados pela pandemia, os países desenvolvidos têm procurado concentrar a produção industrial dentro de suas fronteiras ou em poucos países, desarmando as cadeias internacionais de fabricação que se espalhavam pelo mundo, passando inclusive pelo Brasil.

“A indústria brasileira atingiu, em 2018, seu menor patamar de participação no Produto Interno Bruto – o PIB. Apenas 11,3%. O pico dessa participação se deu em 1986, 27,3%. No mundo inteiro, a indústria diminuiu sua participação nas economias nacionais, abrindo espaço para o setor de serviços. Mas, aqui no Brasil, depois de um longo esforço que começou em meados do século passado, a indústria recuou cedo demais. Os setores mais prejudicados foram justamente os de alta tecnologia, os que apontam para o futuro”, declarava o economista Paulo Morceiro, doutor em Economia pela USP, pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e graduado na Unesp, em entrevista ao programa Desafios, do Jornal da USP, em maio de 2019.

Em 2022, os economistas Cláudio Considera e Juliana Trece escreveram, em artigo na FGV-IBRE: “[…] a recuperação da indústria de transformação brasileira será uma tarefa árdua e de longa duração. Exigirá medidas continuadas de vários governos para voltar a ocupar papel relevante na economia. Será necessário adquirir tecnologia moderna para aumentar sua competividade internacional e em conjunto com as universidades inovar e aprimorar a tecnologia adquirida”.

O programa Nova Indústria Brasil demonstra sensibilidade com essas advertências, aponta para o refortalecimento do setor e tem enormes desafios pela frente. Serão 300 bilhões de reais disponíveis para financiamentos para a indústria até 2026, provenientes de inúmeras fontes, acompanhados do compromisso de não pesarem sobre as contas públicas, uma das preocupações tradicionais de seus críticos contumazes. É uma iniciativa que realimenta a vocação industrialista, que deveria ser natural em um país das dimensões, dos recursos e das potencialidades do Brasil, mas andou esquecida nos últimos tempos.

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