Livros Proibidos, Universos Interditados

Livros Proibidos, Universos Interditados

Livros Proibidos, Universos Interditados

A interdição literária é uma forma de castração

MONICA DE BOLLE

 
 
   

Dia desses li no New York Times uma coluna impactante escrita por um jovem de 17 anos. Falava ele sobre a proibição de livros no seu distrito escolar, decisão tomada em conjunto por pais e administradores. Na lista de livros interditados constavam 5 clássicos da literatura, incluindo To Kill a Mockingbird, de Harper Lee. Quem não o leu deve fazê-lo. E quem não viu o filme de 1962, com Gregory Peck na pele do inesquecível Atticus Finch, deve fazê-lo também. Mas, nesse artigo quero falar de outro livro — um que tenho certeza ainda escandaliza mentes frágeis e, sobretudo, almas que cada vez mais se fecham aos universos no nosso entorno. Trata-se de The City and the Pillar, de Gore Vidal.

The City and the Pillar é o terceiro romance do renomado autor, publicado em 1948 quando tinha ele pouco mais de vinte anos. Sua publicação causou alvoroço que transbordou os círculos literários da época e foi diretamente para a boca da opinião pública. Visto como retrato de uma aberração, obra pornográfica explícita, o livro de Vidal foi rechaçado por todos os jornais de peso nos Estados Unidos, inclusive pelo mais “progressista” — o termo não existia na época — New York Times. Em razão de sua ousadia ao publicá-lo, Vidal foi efetivamente “cancelado” por seis anos, embora jamais tenha deixado de escrever. A obra mereceu duas revisões, uma em 1965 e outra em 1995, mas não devido ao clamor da opinião pública e ao seu desconforto. Gore Vidal, não-conformista por excelência, explica no prefácio da edição de 1995 as razões que levaram às revisões. Em particular, nos diz ele, a cena de extrema violência ao final do livro em sua versão original tinha contornos melodramáticos incompatíveis com a escrita seca e direta do restante da peça. A cena foi modificada para tornar a narrativa compatível com a caracterização do protagonista, Jim Willard

 

Jim Willard é um jovem bonito, de porte atlético, talentoso jogador de tênis, uma espécie de representante do ideário de masculidade. Jim é retratado como um homem de inteligência mediana, sem muito a oferecer ao mundo em matéria de intelectualidade. A prosa seca de Vidal, repleta de frases curtas e objetivas, sobretudo quando trata da vida interior de Jim, revela essa carência do personagem. Jim é retratado como o homem que se encaixa perfeitamente no imaginário heteronormativo de sua época, algo que Vidal faz questão de nos mostrar ao longo da história, não só ressaltando seus atributos físicos, mas a forma como as mulheres reagem ao personagem. Mas Jim não sente qualquer atração por mulheres. Ao contrário, ele demonstra desprezo pelos corpos femininos, a começar por sua própria mãe. Nas várias ocasiões em que temos acesso à sua vida interior, percebemos com clareza a misoginia de Jim.

Por meio de Jim, Vidal nos dá acesso a um universo muito próprio. O mundo de Jim é marcado pela obsessão que nutre por Bob, amigo de infância com quem tem a sua primeira relação aos 18 anos. Bob parte no dia seguinte desse encontro e Jim passará o restante da narrativa procurando Bob, ou atrás daquilo que viveu com o amigo nas suas relações com outros homens. A todo instante somos expostos às contradições de Jim, que de início tenta negar seus desejos inclusive por meio da única relação íntima que consegue ter com uma mulher, Maria. Maria é bem mais velha do que Jim. Solteira e assertiva, Maria demonstra uma força interior que Jim cobiça, mas não consegue alcançar. Sua admiração por Maria cresce, mas com ela não consegue consumar uma relação. Maria, é, desse modo, uma espécie de ponto de virada na vida de Jim. Incapaz de estar com uma mulher, Jim para de lutar contra seus desejos, ainda que nunca os aceite.

O segredo de Jim é mantido ao longo de toda a narrativa. O desfecho quando finalmente se reencontra com Bob é violento. A violência, sempre presente, é a marca dessa obra de Vidal que tem como ponto focal o universo masculino. A violência é retratada em uma época na qual ainda não havia sequer vocabulário para descrever a experiência homossexual. Isso só viria no final dos anos 60 com os movimentos pelos direitos civis. Os códigos e a violência do universo masculino, portanto, ganham contornos adicionais na vida interior de Jim, caracterizada pelo constante esforço de autoviolação, de negação de si.

The City and the Pillar é um clássico, um livro fundamental para entender facetas da natureza humana, para entrar em outros mundos. O universo masculino apresentado é fascinante e o seu contraste com o universo feminino retrado em The Price of Salt, de Patricia Highsmith, é igualmente intrigante. São espelhos invertidos esses dois universos. Mas, esse é assunto para outro artigo.

Deixo a pergunta: como podem os “guardiões do bem” quererem privar as pessoas de algo tão valioso, do acesso a outros mundos que só a literatura pode oferecer? Essa interdição literária é mais do que uma forma de opressão. Ela é, antes de tudo, uma castração.