“Desde o governo Temer, quem foi anistiado não recebeu”, diz analista sobre ditadura
No dia 8 de junho, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, desanistiou 295 militares de uma só vez alegando “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. O ato faz reacender discussões importantes sobre o que foi a Lei da Anistia e o que ela significa para o imaginário da população ainda hoje.
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Consultores do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) afirmam que a decisão da ministra é um retrocesso, pois prejudica, mais uma vez, quem foi perseguido por ser contra o regime militar. Para Sebastião Neto, um dos colaboradores do relatório da Comissão Nacional da Verdade não há dúvidas quanto à legitimidade e direitos que os cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) possuem.
“Foram perseguidos sim, porque eram cabos e mais, nós temos milhares de processos para serem julgados. Desde o começo do governo Temer praticamente todo mundo que foi anistiado não recebeu até hoje. A Lei da Anistia além de prejudicar, não permite a punição dos torturadores, dos mandantes, dos generais. Por isso que não tem nenhum general preso no Brasil”, critica.
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A Lei da Anistia foi publicada em 28 de agosto de 1979. Com ela, o último presidente da ditadura, João Baptista Figueiredo, concedeu o perdão aos perseguidos políticos, àqueles que eram contra o regime militar. O impasse é que a lei acabou beneficiando também os que cometeram crimes na ditadura, como torturas.
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O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) além de defensor do regime militar é um admirador do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI e torturador condenado. Dessa forma, a decisão de ministra Damares Alves já havia sinalizado que revisar a anistia dos cabos que resistiam ao regime será uma política do governo Bolsonaro.
Justificativa
O argumento do governo é que a desanistia dos 295 militares foi feita devido à “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. Contudo, a discussão começa com interpretações da portaria 1.104/64, no primeiro ano da ditadura militar. O documento dizia que o tempo de serviço dos cabos era limitado a oito anos. Depois disso, eles seriam automaticamente desligados e isso só não ocorreria se o militar fosse aprovado no concurso para sargento.
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Em 2002, a Comissão de Anistia identificou indícios de que, na verdade, os militares da FAB eram vistos como subversivos pela ditadura, logo, a portaria 1.104/64, foi um instrumento editado por motivação política.
Assim, ainda em 2002, foi editada a Súmula Administrativa 2002.07.003. O documento diz que a portaria 1.104/64 é “ato de exceção, de natureza exclusivamente política”. Foi com base nesse documento que se abriu a possibilidade de anistiar 2,5 mil cabos.
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O deputado Adriano Diogo (PT), que participou da resistência à ditadura militar e da luta pela anistia e pelos direitos humanos, explica que em 1964 houveram várias mobilizações, inclusive, com o Comício do dia 13 de Março, chamado Comício da Central do Brasil, onde João Goulart anunciou a Reforma Agrária. Nessa mesma data, foi permitido aos sub-oficiais das três armas, o direito da participação política, de associação e de sindicalização. Até então, os cabos eram proibidos de casar, ter filhos e também não tinham direito ao voto.
“Esse grupo da Aeronáutica, que foi punido pela terceira vez agora, nem eram parte dos chamados insurretos. O pessoal que estava à frente eram os marinheiros, como o cabo Anselmo. Quem eram esses moços da Aeronáutica? Eram operadores de aeroportos, eram funcionários quase que da burocracia. Por que eles foram punidos? Porque eles não aceitaram o golpe e, portanto, foram aposentados sem direitos. Suas carreiras foram extintas”, afirma.
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A decisão de anular a anistia desses cabos da Aeronáutica vai contra o fato de que qualquer ato administrativo do Estado, que beneficia um cidadão, só pode ser revogado em no máximo cinco anos. A isso é dado o nome de prazo decadencial. Ou seja, as anistias concedidas entre 2002 e 2004 não poderiam ser contestadas, uma vez que o caso foi ao Superior Tribunal Federal (STF), somente, em 2014.
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“Em 2004, depois de muita peregrinação seus direitos funcionais, de militares, seus direitos hierárquicos foram reconhecidos. Eles passaram a ser reconhecidos como militares e receber seus proventos daqui para frente. Não os atrasados. Esses 40 anos foram perdidos. Se tinham entre 18 e 20 anos, 40 anos depois tinham 60 anos. Passaram-se mais 20, agora, e a ministra Damares casou, pela segunda vez, o direito desses militares”, critica.
O entendimento do STF e da AGU
Segundo a Advocacia Geral da União (AGU), a Comissão de Anistia fez uma “leitura equivocada” da portaria de 64, levando ao que eles chamaram de “anistia indiscriminada de militares que foram ‘licenciados [da Aeronáutica]’ em razão tão somente da mera conclusão do tempo de serviço”.
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No dia 16 de outubro de 2019, com maioria do STF, concordou-se, então, que “poderá a administração pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/64, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas”. O ministro Dias Toffoli foi o relator do caso.
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Seguiram o voto dele, os ministros Alexandre de Moraes; Luís Roberto Barroso; Ricardo Lewandowski; Gilmar Mendes; e Luiz Fux. Os ministros Edson Fachin; Cármen Lúcia; Rosa Weber; Marco Aurélio; e Celso de Mello foram contra.
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Para o deputado Adriano Diogo um dos maiores equívocos é a não análise dos casos de forma individual, ou seja, os desanistiados sequer foram ouvidos sobre os seus casos.
“O Supremo [Tribunal Federal] sugere uma interpretação e cada uma das pessoas que está nesse processo teria que ser ouvida e ter o devido amparo legal. A decisão do Supremo já é uma decisão enviesada, jamais poderia ter sido questionado o direito desses moços, mas já que foi questionado no grupo desses militares insurgentes, dos militares chamados legalistas da Aeronáutica, eles teriam que ter o total direito de defesa individualizado”, defende.
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Para além disso, o deputado lembra que a maior parte dos que foram desanistiados estão recebendo, na verdade, uma espécie de aposentadoria. Por outro lado, o relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) pede a revisão da Lei da Anistia não para o caso de quem sofreu perseguição como os cabos, mas de 377 pessoas que cometeram torturas e assassinatos entre 1946 e 1988.
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“Esse dinheiro era um direito, falando na linguagem dos civis, de aposentadoria, uma aposentadoria tumultuada, porque eles ficaram 40 anos sem receber seus proventos. 60 anos depois, ela reedita a vingança. Em uma interpretação equivocada. Vale para todos os militares? Não. Só para esse grupo de Aeronáutica, que deveria ter o direito de defesa”, afirma.
Edição: Lucas Weber