Cotas, 10 anos: uma revolução nas universidades brasileiras
Cotas, 10 anos: uma revolução nas universidades brasileiras
Cotistas usam mais bibliotecas e são mais engajados. E suas demandas por políticas de permanência, com transporte e alimentação acessíveis, aceleram a democratização do ensino. Currículos são tensionados a abordar o Brasil real
OUTRASMÍDIAS
A universidade mudou. Os detalhes ainda não estão mapeados, apesar de a Lei de Cotas (12.711/2012) prever a necessidade desse monitoramento. Mas há informações concretas sobre avanços, como a superação do número de vagas reservadas para negros, indígenas, pessoas com deficiência e de baixa renda em relação à ampla concorrência desde 2016 nas universidades federais, de acordo com levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Gemaa/Uerj). Desde 2014, os graduandos das universidades públicas vêm em sua maioria de escolas públicas (60%) e de famílias com renda de até 1,5 salários mínimos por pessoa (70%). Os dados são de 2018, sistematizados por uma das pesquisas mais abrangentes sobre o tema, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Fonaprace/Andifes). O estudo, que realizou mais de 424 mil entrevistas, também mostrou que, com as cotas, as instituições ganharam estudantes que frequentam mais as bibliotecas, dedicam mais tempo aos estudos, têm menor taxa de desistência e são mais engajados socialmente. Já na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede EPCT), que envolve institutos federais, Cefets e o Colégio Pedro II, espalhados por mais de 700 unidades, das 1,5 milhão de matrículas de 2021, 70% têm renda familiar de 1,5 salários mínimos per capita.
A composição racial também mudou. No final de 2019, uma pesquisa do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, anunciou que, pela primeira vez, o número de pretos e pardos era ligeiramente maior nas universidades nacionais: 50,3%. No conjunto da população brasileira, os negros representam 56,6%. Já em 2021, estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostrou que as mulheres negras são a maioria dos estudantes nas universidades públicas, com 27%. O mesmo estudo aponta que há 21 anos essa taxa era de 19%. Uma mudança identificada também pela pesquisa da Andifes: de acordo com a pesquisa, a proporção de brancos nas universidades saiu de 59% em 2003 para 45,7% em 2014, dois anos após a lei, e para 43,3% em 2018, enquanto pretos e pardos somavam 34% em 2003 e passaram a representar 47,6 % em 2014 e 51% em 2018. Do total de 1,5 milhão de matrículas da Rede EPTC em 2021, 43% foram de pretos e pardos, 31% de brancos, 0,41% indígena e 1% amarela, além de 24,5% que não declararam cor/raça.
O mês de agosto de 2022 marca os dez anos da Lei de Cotas (nº 11.711/2012) e o início do período previsto para uma revisão dessa política. Essa avaliação, no entanto, não pressupõe a suspensão de nenhuma das medidas em vigor. Desde sua aprovação, 50% das vagas nas instituições federais de ensino médio e superior devem ser destinadas a estudantes que cursaram o segmento anterior (ensino médio ou fundamental) em escola pública. Destas, metade é reservada para famílias com renda per capita de até 1,5 salários mínimos. Em ambos os cortes, há reserva para candidatos pretos, pardos e indígenas, respeitando a proporção da presença dessas populações em cada estado medida pelo IBGE. Em 2016, foram incluídos portadores de deficiências que também se encaixam no perfil socioeconômico de baixa renda.
“Em âmbito federal esta lei foi uma verdadeira revolução do ponto de vista da história do ensino superior brasileiro. [Ela mudou] aquilo que já ficou caracterizado como uma espécie de confinamento racial, em que as instituições são públicas, porém quando decompomos a participação dos grupos raciais temos um percentual muito grande e quase isolado de pessoas brancas”, avalia o pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Cleber Vieira.
E as consequências dessa transformação ultrapassam os espaços universitários. “Eu percebo que esses dez anos foram de suma importância, tendo em vista que hoje nós temos advogados, antropólogos, enfermeiros, professores que estão atuando dentro das comunidades indígenas, no STF [Supremo Tribunal Federal], nas assembleias estaduais, na Câmara dos Deputados. Eu sou exemplo disso: sou formada em Direito, fiz Antropologia, estou terminando doutorado e estava como assessora técnica na Câmara, pautando a nossa questão, pautando todo o retrocesso dos nossos direitos [na pandemia]”, avalia a ativista indígena do povo Terena e estudante cotista Simone Amado.
Antecedentes
Na virada do século 20 para o 21, a Conferência de Durban, como ficou conhecida a 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, foi um acontecimento internacional importante para a futura política de cotas no Brasil. Realizada em agosto de 2001, na África do Sul, é a partir dessa conferência que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o racismo como uma questão a ser combatida para promover o desenvolvimento. O documento final, assinado pelo governo brasileiro, orienta os países a criarem políticas de ações afirmativas em áreas como educação e saúde para comunidades afrodescendentes e indígenas. A organização para o evento motivou grande articulação dos movimentos negros no país para realizar reuniões preparatórias de diagnósticos dos impactos do racismo e trouxe consequências importantes. No Brasil, em 2003 é aprovada a Lei nº 10.639, que determina o ensino de história e cultura afrobrasileira, e é criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), extinta em 2015 e incorporada no ano seguinte ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Cinco anos depois, inclui-se a obrigatoriedade também do ensino da história e cultura indígena (lei 11.645). Já em 2010 é aprovado o Estatuto da Igualdade Racial e, em seguida, vem a própria aprovação da lei federal de cotas, apesar de, naquele momento, a reserva de vagas já estar sendo amplamente adotada pelas instituições.
“O Brasil levou a maior delegação para Durban, cerca de 300 pessoas”, lembra a professora da Universidade de Brasília (UnB) Renísia Filice. Mas ela destaca um outro acontecimento, mais ‘caseiro’, que teria sido emblemático para a implantação dessa política na sua universidade e em outros espaços. Foi em 1998, portanto antes da Conferência de Durban: depois de 20 anos de existência do programa de pós-graduação em Antropologia na UnB, o primeiro aluno negro foi também o primeiro a ser reprovado em uma disciplina obrigatória, conhecido como ‘caso Ari’. O debate prosseguiu por alguns anos, até que em 2004 a UnB realizou seu primeiro vestibular destinando 20% das vagas a candidatos negros. “O ‘caso Ari’ veio referendar um debate que já havia dentro da universidade”, diz Filice. Atualmente, Arivaldo Alves é professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
A Uneb e a Uerj, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foram as duas primeiras instituições a implantarem sistemas de reserva de vagas. Nos dois casos, o primeiro vestibular que incluiu as cotas foi realizado em 2002, com ingresso em 2003. A primeira lei estadual que institui as cotas foi aprovada em 2000 pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, como reflexo de mobilizações antigas, dentro e fora da instituição. “O primeiro movimento [pelas cotas] começa fora da Universidade, com os movimentos sociais contra um processo de inserção desigual. Aos poucos isso sensibiliza o movimento estudantil e professores, muitos que já participavam de movimentos pela melhoria e acesso à universidade pública”, diz a pró-reitora de assuntos estudantis da Uerj, Cátia Antônia da Silva.
Tanto na Uneb quanto Uerj, as cotas para pretos, pardos e indígenas exigem também que os estudantes tenham vindo de escola pública. Nessa primeira lei fluminense, estava prevista reserva de vagas para estudantes com o segundo segmento do ensino fundamental e ensino médio cursados em escolas públicas. A divisão da porcentagem de reserva de vagas em vigor atualmente surge em 2008: 45% para estudantes da rede pública (ensino fundamental 2 e médio), sendo 20% para candidaturas negras/pardas e indígenas, 20% para escolas públicas e 5% para pessoas com deficiência e filhos de policiais e bombeiros mortos ou incapacitados no exercício da profissão.
Em âmbito federal, a criação da lei de cotas foi amparada por decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo Partido Democratas como denúncia da política de ações afirmativas da UnB. A decisão, contrária a ADPF, garantiu a constitucionalidade da reserva de vagas na universidade, que foi uma das pioneiras na implementação de cotas. No ano seguinte, o Congresso aprovou o Projeto de Lei (PL) 73 de 1999, que dá origem à Lei de Cotas, uma ação que reflete décadas de lutas dos movimentos negros e indígenas por educação. Quando a lei foi aprovada, 39 universidades federais já faziam algum tipo de reserva de vagas por iniciativa própria. Em 2016 foi criada, pelo Ministério da Educação, a Normativa 13, que funciona como uma recomendação e incentiva que as universidades passem a adotar a reserva de vagas para os programas de pós-graduação.
A distribuição da reserva de vagas
Do total dos 1,1 milhão de vagas existentes em universidades federais em 2019, 49% eram para ampla concorrência. Entre as vagas reservadas, 25% tinham recorte racial, 17% eram cotas de escolas públicas que não necessariamente incluem recorte racial e 8% foram destinadas a pessoas com deficiência. Esta última teve a única queda significativa no número de vagas e a explicação, de acordo com os autores do estudos, é a mudança de classificação do IBGE, que agora considera deficientes apenas quem tiver “muita dificuldade” para se locomover, ver, ouvir. O estudo sobre as reservas de vagas realizado no período de 2013 a 2019 foi coordenado pelo Gemaa/Uerj.
Em 2018, 55,8 mil pessoas com deficiência estudavam nas universidades federais, de acordo com o estudo feito pela Andifes e apenas 2,8% contavam com algum apoio da universidade. A principal deficiência identificada entres os estudantes que ingressaram via cotas é a baixa visão, que acomete quase 34 mil, mas a pesquisa também indicou que 4,7 mil são deficientes auditivos, 1,1 mil são surdos, 7,7 mil são deficientes físicos e 616 são cegos. No que diz respeito às pessoas com deficiência, a dívida educacional é também muito anterior ao ensino superior. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, a taxa de pessoas com deficiência sem instrução ou fundamental incompleto é de 67,6%, 16% têm ensino médio completo e 10,8% incompleto. Apenas 5% têm superior completo.
“As pessoas com deficiência ainda são minorias nesses espaços acadêmicos, tanto por conta do preconceito da sociedade quanto por conta da renda, já que a maioria das pessoas com deficiência no Brasil é de baixa renda. Então, fica difícil acabar o ensino médio, quem dirá ir para a graduação. Quem consegue é porque tem uma rede de apoio familiar, conseguiu que alguém desse essa força. Mas, do ponto de vista das instituições públicas, dependendo de como essa comunidade acadêmica está engajada, as coisas avançam mais”, avalia a coordenadora do Comitê de pró-equidade de Gênero e Raça da Fiocruz e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Hilda Gomes.
O mesmo estudo do Gemma analisou a quantidade de vagas reservadas pelas universidades federais e estaduais e concluiu que elas avançaram na igualdade racial em comparação aos anos anteriores, mas é preciso melhorar. Na maioria dos casos, diz o levantamento, estão na metade do caminho para alcançar uma porcentagem de distribuição de vagas equivalente à taxa desses segmentos na população em geral. Por outro lado, a pesquisa da Andifes entrevistou, por meio de questionários, mais de 424 mil estudantes de universidades federais e encontrou índices que estão muito próximos ou ultrapassam a proporção racial na população total indicada pelo Censo de 2010 do IBGE. Uma das hipóteses para essa diferença de conclusão entre os dois estudos, de acordo com João Feres Júnior, um dos coordenadores do Gemaa, é que o número e a proporção de estudantes pretos, pardos e indígenas efetivamente estudando nessas instituições é maior do que a quantidade de vagas, o que talvez indique que há pessoas desses segmentos ingressando para além das vagas reservadas como cotas.
Para a professora Renísia Filice, o número da população negra e parda pode estar sobrerrepresentado nessas pesquisas e por isso ela reforça a necessidade de implementação de bancas de verificação da declaração racial, interrompidas na UnB após a lei de cotas e retomadas em 2020. A pró-reitora de assuntos estudantis da Uerj concorda e lembra que inicialmente a posição do movimento negro que se mobilizou pelas cotas no estado do Rio de Janeiro era pela autodeclaração, “no sentido de que não é o Estado que vai dizer se aquela pessoa é negra ou não, se é indígena ou não”. No entanto, diz Cátia Silva, o número de fraudes levantou a necessidade da constituição das bancas e a Lei nº 8121/18, que prorroga por mais dez anos a reserva de vagas no estado do Rio de Janeiro, prevê a criação de bancas de heteroidentificação racial.
Para aumentar essa taxa, a professora da UnB defende um aumento no número de vagas para estudantes negros sem que o critério racial esteja atrelado ao de renda, como ocorria até 2014 na UnB. Com a criação da legislação federal, a UnB reduziu a proporção de cotas raciais de 20% para 5%, o que, para a professora, é insuficiente diante de uma população negra que está acima da média nacional. “As cotas nascem como cotas raciais em função desse reconhecimento do racismo estrutural e de uma demanda do movimento negro”, argumenta Filice. A pró-reitora de assuntos estudantis da Uerj discorda nesse ponto, defendendo que o corte racial esteja vinculado ao socioeconômico. “A condição socioeconômica desse candidato que vai vir a ser nosso aluno é muito importante, porque a gente corre o risco de menos pobres estarem na universidade. Se a gente tira o social, fica difícil concorrer. Não é que a gente negue a questão [do racismo], muito pelo contrário, mas de fato a gente tem essa sensibilidade do ponto de vista da questão econômica”, argumenta, explicando que famílias em vulnerabilidade social representam a maior proporção entre os brasileiros. O primeiro vestibular da universidade contou com a destinação de 40% das vagas socioeconômicas destinadas a candidatos negros, mas a lei que estabelecia essa proporção foi derrubada no ano seguinte, sendo substituída pela atual, que reserva 20% das vagas para candidatos pretos, pardos e indígenas.
Anos de mobilizações
Conquistada a ampliação do acesso por meio das cotas, existe ainda o debate sobre as condições de permanência desses estudantes. Na Uerj, por exemplo, apesar do seu pioneirismo, os direitos como bolsa permanência durante toda a graduação, auxílio com material didático e gratuidade no transporte para os residentes na cidade do Rio foram previstos apenas com a lei de 2008. E assim como na Uerj, os primeiros anos de cotas nas universidades apresentaram muitas demandas.
A médica Luamorena Leoni ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2006, no primeiro ano em que o processo seletivo destinou vagas a cotistas negros vindos de escola pública. Ela lembra que foi uma novidade ver alunos trazendo marmita para o almoço. “Naquela época, a faculdade de medicina não tinha cantina e a universidade não tinha restaurante. Então, a gente começou a usar a copa dos funcionários. Leoni lembra que tanto o transporte quanto a alimentação eram as chamadas ‘pautas crônicas’, mas que só ganharam impulso para serem solucionadas após a entrada dos cotistas. “Mas depois de as cotas terem sido implantadas, ou era daquele jeito ou não tinha como funcionar mais, porque se aumentou o número de pessoas com necessidade de auxílio estudantil de verdade, para garantir permanência. A universidade não conseguia suprir essa demanda”, diz. Lá, o restaurante universitário foi inaugurado só em 2010.
A partir de 2007, a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) levou o Ministério da Educação (MEC) a criar o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), primeiro por meio de uma Portaria Normativa e em 2010 como Decreto (nº 7.234). É este programa que centraliza as ações de apoio à permanência, seja para alimentação, transporte, moradia, creche, entre outros. A concessão do benefício não é automática e sua distribuição depende de critérios estipulados pelas universidades, embora as instituições federais de ensino superior (Ifes) tenham a liberdade de criar outros com seus recursos. Desde 2008, quando iniciaram os repasses, até 2016, os valores só aumentaram. Iniciaram com R$ 125 milhões e chegaram a quase R$ 1 bilhão. E até 2021 permaneceram neste patamar. Dentro dessa iniciativa, há recursos específicos destinados ao Programa de Bolsa Permanência (PBP). O valor da bolsa para indígenas e quilombolas é de RS 900, devido às especificidades de suas comunidades. Já para estudantes de baixa renda, o valor é de R$ 400. De acordo com os dados obtidos pela Defensoria Pública da União (DPU) junto ao governo federal, o número de beneficiados do PNAES entre 2016 e 2019 subiu de pouco mais de 294 mil para 379,8 mil, com a média mensal paga por estudante reduzindo de R$ 228,50 para R$ 190. Já em 2020, o número de beneficiários caiu – para pouco mais de 360 mil –, assim como a média de repasses – R$ 177,94.
Alimentação e bolsa permanência também foram as primeiras demandas de Raphael Calazans e outros colegas cotistas quando ingressaram, em 2008, no ensino médio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz. “A Poli tem uma política pedagógica muito legal de uma educação além dos muros da escola e vinculada aos movimentos sociais, mas isso custa dinheiro. Assim como a alimentação para passar o dia inteiro da escola”, pontua o ex-aluno, que hoje é assistente social. Calazans recorda que as demandas que eles traziam eram novas para os professores e também para os demais alunos e o grêmio estudantil, no qual ele ingressou pouco tempo depois de chegar à escola. “A entrada no grêmio facilitou que a gente começasse a criar demandas, refletir a partir da nossa realidade, da nossa dificuldade de permanecer na escola e de que a escola deveria também oportunizar a nossa permanência”, analisa.
“Acho que a gente só tem a ganhar com a entrada desses estudantes nas universidades, escolas técnicas e institutos federais. Eles tensionam a questão da assistência estudantil e o próprio debate político. Eles estão ali tensionando o tempo todo a estrutura das instituições”, avalia Valéria Carvalho, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Calazans ingressou na Escola Politécnica da Fiocruz dois anos após a política de cotas ter sido instituída, em 2006. Segundo Ronaldo Travassos, que era assessor da vice-direção de ensino na época, essa decisão partiu de discussões internas que reverberaram o debate sobre cotas nas universidades que acontecia na sociedade naquele momento. Naquela época, o processo de seleção da Escola era feito apenas por prova. A partir de 2011, a seleção era feita por prova, seguida de sorteio. Com a pandemia, mudou para apenas sorteio, forma que se tornou permanente em 2022. Travassos recorda que no primeiro ano de cotas, a primeira colocada na prova foi uma aluna cotista. “Isso eu faço questão que fique registrado”, diz. Apesar do exemplo, ele ressalta que não é preciso ter um desempenho excepcional para justificar uma oportunidade numa instituição pública de ensino e destaca que, ao longo de 15 anos de política de reserva de vagas, viu muitos estudantes apresentarem dificuldades de adaptação no início do ingresso, mas solucionarem isso nos semestres seguintes com acompanhamento pedagógico e, principalmente, esforço dos próprios alunos. Em um balanço dessa experiência, ele resume: “Tivemos um avanço enorme com as questões das cotas raciais e sociais. Porque, sem isso, essa população, que não tem o mínimo de recursos, não consegue chegar ao curso técnico e à universidade”.
Após se formar, Calazans ingressou no curso noturno de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele afirma que a experiência na Escola Politécnica foi importante não apenas para acompanhar os conteúdos da graduação como para organizar grupos de estudos de suporte aos colegas. “Tive muita bagagem [na Poli], ter que fazer monografia, participar de seminários… Eu fui alguém que participou de muitas mesas de debate. Ou seja, me deu uma base muito boa. No entanto, a maior parte dos alunos trabalhadores [do curso de Serviço Social] eram pessoas que não tinham tanto hábito de ler e num curso de humanas tem muita leitura”, recorda. E mais uma vez, ele pega o começo da política de cotas em uma instituição. “Foi um período de muita mobilização estudantil, bolsa auxílio, restaurante universitário, passe livre. E vieram conquistas importantes, como a bolsa permanência. Só depois de alguns anos conseguimos o ‘bandejão’. O cotista sempre entra para lutar”, relembra Calazans, que hoje é diretor do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Miriam Makeba, no Rio de Janeiro.
A segregação entre cotistas e não-cotistas também foi uma marca destacada pelos estudantes ouvidos pela reportagem nos primeiros anos da política. Simone Amado, que ingressou no curso de Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) em 2006 como estudante cotista indígena, lembra que a convivência não foi fácil. “Eu ouvi cada absurdo quando entrei. Eles [os não cotistas] falavam ‘o meu pai não pagou o curso a vida toda para vir um índio ou um negrinho tomar minha vaga’. A gente passou a graduação inteira ouvindo esse discurso. Foram muitas discussões, até que no final do curso a gente conseguiu fazer com que eles entendessem que essa era uma reparação histórica e que nós não estávamos tomando vagas deles”, recorda a atual doutoranda em Antropologia.
O sentimento de exclusão também afetou o hoje estudante de medicina na UFBA Robson Avelino. “Eu sentia uma segregação muito grande. Fora que a universidade na época tinha muito menos recursos para a assistência estudantil. Era praticamente explícito, tanto entre os colegas quanto com professores, que tinha distinção entre alunos. Eu acho que hoje a gente passa um momento em que esse primeiro estranhamento já foi superado”, comenta. Ele entrou ainda no primeiro ano de cotas da UFBA para o curso de Engenharia Elétrica. Precisou desistir para trabalhar e retornou anos depois no curso de História. Ao passar em um concurso público, largou a faculdade pela segunda vez. Agora, com as reservas acumuladas e trabalhos eventuais como técnico de informática e em elétrica, ele, que já é casado e tem um filho, está na fase final do curso de medicina. “Eu brinco que entrei no pior período da universidade. Entrei no início da política de cotas, passei um período fora, retornei agora que a universidade não está tão bem das pernas financeiramente”, conta.
Currículos
Ao passar por três cursos de áreas diferentes – engenharias, humanas e saúde –, Avelino não questionou apenas a falta de assistência estudantil, mas também o currículo e percebe mudanças ao longo dos anos. Em seu primeiro curso, sentiu falta de uma engenharia ‘popular’, que não pensasse apenas em modelos ideais de construção, mas também nos terrenos acidentados das favelas, nas instalações elétricas precárias. “Eu não diria que é preciso um currículo específico, mas seria importante essa troca que as ciências humanas e até a área de saúde conseguem ter”, diz. Mesmo na área de humanas, quando cursou História, ele recorda que houve mobilização para que o currículo incluísse a disciplina de História da África 2. “O currículo do curso de graduação era mais quadrado, mas a faculdade tinha outros espaços que compensavam essa limitação. Os professores e os programas de pós-graduação também permitiam maior aprofundamento em temas mais próximos da formação do povo brasileiro, como a historiografia da escravidão brasileira que tem muitos professores que são referências no Brasil”, lembra Avelino. Já no curso de Medicina, ele percebeu mudanças no currículo, que deixou de ter um caráter exclusivamente biomédico e passou a se preocupar mais com o social. A única ressalva que Avelino faz é a falta de conteúdo sobre saúde indígena. A experiência vivida por Luamorena Leoni no curso de medicina foi diferente: um dos seus questionamentos, por exemplo, é a falta de conteúdo no currículo sobre o atendimento de pessoas negras, indígenas e vulneráveis, que são os principais usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Estudante do último ano de Direito na Universidade Federal de Sergipe (UFS), Stefany Santos sente falta de estudar autores negros. “É muito raro encontrar um autor negro na nossa bibliografia. E não é porque eles não existam. Temos autores negros muito competentes e importantes, inclusive, por exemplo, aqui no meu estado um dos grandes juristas da história é Tobias Barreto, sergipano importantíssimo”, exemplifica. Ela avalia que o curso discute bastante questões sociais, mas o recorte de raça é pouco abordado. “Eu descobri que existia o Estatuto da Igualdade Racial por pesquisa própria, nunca ouvi falar disso no curso de Direito. As questões raciais que estão na Constituição eu também descobri dentro do movimento negro”, conta, associando essa ausência ao número reduzido de professores negros em sua faculdade.
Coordenadora do projeto Sankofa – que visa valorizar a diversidade de conhecimento na EPSJV/Fiocruz –, Valéria Carvalho ressalta a importância de os currículos serem repensados. “Mudar a estrutura do conhecimento é muito importante, não só para que a gente olhe para a realidade social e todas as desigualdades e injustiças raciais como algo que é efetivo e que é preciso enfrentar, mas também para tensionar a própria estrutura epistêmica, considerando os conhecimentos também dos povos africanos e indígenas, porque isso é muito invisibilizado”, defende.
Ações afirmativas na educação profissional
A plataforma Nilo Peçanha, que reúne dados da Rede EPTC, mostram que a porcentagem de matrículas sem a informação raça/cor caiu bastante. Em 2017, eram mais de 200 mil registros sem a informação, enquanto em 2021 são 85 mil. Enquanto a presença de indígenas e amarelos é de cerca de 1% no segmento do ensino técnico – semelhante à porcentagem total –, a de brancos, pretos e pardos varia. A presença branca é de 29% no ensino técnico como um todo, ante 51% de pretos e pardos em um universo de 500 mil matrículas. Aqui, a não declaração é de 17%. No entanto, os brancos formam maioria (48%) no ensino médio, nesse caso integrado ao técnico, enquanto pretos e pardos somam 38%, em um universo de cerca de 7 mil matrículas. Nesse caso, a proporção de não declarados é menor: 13%. Uma paisagem diferente da Formação Inicial e Continuada (FIC), que consiste em cursos mais curtos e minoritários nas Rede EPCT. Com pouco mais de 600 mil matrículas, em 31% não consta a informação de raça, a mesma proporção de brancos. Já pretos e pardos somam 35%. A plataforma não fornece dados sobre estudantes com deficiência.
A alta taxa de não declarações é um dos indícios de que o monitoramento da política de cotas precisa de melhorias. Ainda assim, a reitora do Instituto Federal da Bahia, Luzia Mota, comemora o que é visível a olho nu. “A Rede está capilarizada em mais de 700 campi, em cidades onde há um IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] baixo. Quando um campus nosso está em uma cidade com essas características, ele consegue fazer uma alteração no desenho, no arranjo educativo local, ele se liga com a comunidade e consegue fazer uma diferença para os estudantes que entram no instituto”, avalia. A também coordenadora da Câmara de Ensino do Conselho Nacional das Instituições da Rede EPTC (Conif) não deixa de reconhecer os desafios da permanência dos estudantes que ingressam por cotas com os cortes orçamentários que os Institutos Federais e universidades têm sofrido.
Outra preocupação está na aplicação das ações afirmativas para além da reserva de vagas, na qualificação da discussão sobre temáticas étnico-raciais e o cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatórios o ensino da história e cultura afrobrasileira e indígenas no ensino fundamental e médio. Ampliar o alcance das disciplinas que discutam questões étnico-raciais para os cursos de ciências exatas e mesmo conhecimentos que não venham apenas das disciplinas das áreas de humanas é um desafio para a maioria das instituições. Diante do problema, o Instituto Federal da Bahia (IFBA) criou um projeto para qualificação docente nesses temas. “Além das ações para a permanência e para o êxito, é muito importante que essa permanência [dos estudantes cotistas] seja qualificada e que eles tenham acesso à cultura afrobrasileira e indígena, até para que possam ser sujeitos capazes de defender as mudanças, as alterações necessárias na sociedade. Com essa formação para docentes queremos garantir que os professores de física, de química, de educação física possam incluir os conteúdos previstos pela lei 10.639 e que eles sejam adotados permanentemente”, diz a coordenadora da Câmara de Ensino do Conif e reitora do IFBA, Luzia Mota.
A professora do Instituto Federal do Pará (IFPA) Ana Célia Guedes vê dificuldades na inclusão dessas disciplinas em alguns cursos. “É uma luta constante para que exista pelo menos uma disciplina de relações étnico-raciais. No campus de Belém, quase todos os cursos têm, mas no interior observamos uma resistência e querem que fique só para os cursos que sejam das humanidades. A gente precisa colocar esse debate em todos os cursos, mesmo naqueles que as pessoas achem que não têm nada a ver, porque lá tem pretos e pretas que sofrem racismo e o debate precisa acontecer. As cotas não são para um ou dois cursos, são para todos”, enfatiza. Essa é uma preocupação que Yan Martins, estudante de ensino médio da EPSJV/Fiocruz, vê os professores colocarem em sala de aula tanto nas disciplinas de humanas quanto nas de laboratório. De acordo com ele, as aulas sobre história do continente africano são bastante amplas. “Tivemos que fazer uma pesquisa sobre personagens importantes do continente e nos sentimos representados”, conta. Na bancada, os professores mostram a improcedência de perspectivas científicas da biologia no passado que colocavam os brancos como superiores. “Os professores mostram geneticamente que esses conceitos são falsos”, diz.
Delton Felipe, professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), lembra que, assim como as cotas, a incorporação de disciplinas de história e cultura afrobrasileira e indígena fazem parte do conjunto de ações afirmativas necessárias para tornar a sociedade menos desigual. “São políticas públicas que se complementam. E essas disciplinas são muito importantes porque atingem crianças e adolescentes, sejam elas negras, brancas, indígenas ou amarelas, desde a formação inicial. [Trata-se de] uma reeducação das relações étnico-raciais no Brasil, anteriormente baseadas na crença da existência de uma democracia racial e de que essa discussão sobre racismo seria uma banalidade”, defende o também diretor na ABPN.
E as iniciativas não precisam se limitar ao espaço das instituições. Pensando nisso, Cristiane da Silva, professora do Instituto Federal do Ceará, criou em 2017 um projeto de extensão em parceria com a prefeitura da cidade de Jaguaribe para levar o debate sobre questões raciais para as escolas. “A gente faz um esboço do que é ser negro no Brasil. Faz, por exemplo, uma discussão sobre mulheres negras nas ciências. Essas ações são semanais e ficamos em média dois a três meses na escola desenvolvendo esse trabalho”, conta.
Próximas etapas
A elaboração de mais dados e estudos com maior abrangência é um dos desafios mais próximos que estão colocados. Essa determinação está prevista na lei de 2012, mas não foi cumprida, no entender dos entrevistados para esta reportagem. Entre as estratégias previstas para realizar o monitoramento nacional da política, estavam o desenvolvimento do Sistema de Monitoramento de Políticas Étnico-Raciais (Simope) e a produção de relatórios por parte da Escola Nacional de Administração Pública (Enap). A nota analisa as medidas tomadas pelo governo federal e as considera insuficientes. No caso do Simope, a principal questão é a existência de dados exclusivos sobre pretos, pardos e indígenas, sem a presença de cotistas de baixa renda e portadores de deficiência. Também há poucos dados de comparação com os graduandos brancos e que entraram pela ampla concorrência. A explicação para tal ausência, de acordo com o presidente da ABPN, é que o Simope foi sucateado.
Já a pesquisa da Enap não consegue trazer dados aprofundados sobre a política, na avaliação da DPU e da ABPN. “Em um plano geral da pesquisa realizada pela Enap, é possível notar a dificuldade de reunião dos dados sobre a temática. Para além do déficit de respostas por parte das IES, no que toca ao perfil discente não há informações a serem extraídas do referido relatório. Deste modo, não obstante tenha sido apresentada enquanto uma medida em favor do monitoramento da política de cotas em nível nacional, em pleno ano de 2021, pouco se sabe sobre o alcance a seu público beneficiário e, consequentemente, sobre a eficácia da lei”, diz a nota.
Para Cátia Silva, pró-reitora da Uerj, tanto a denúncia como a busca de soluções para o monitoramento são fundamentais. “Precisa ter monitoramento sim. Não só o levantamento de quantos são negros, quantos são indígenas, mas também das suas condições socioeconômicas, das suas condições culturais, das suas doenças também. Esse último é um outro debate importantíssimo, porque você tem algumas doenças que estão relacionadas com as condições de estresse, de violência. Essa é a referência que a gente precisa ter, levando em conta que a diversidade no Brasil é de uma complexidade enorme”, defende.