Bolsonaro tem de sair, mesmo Mourão assumindo
O que diferencia o presidente Jair Bolsonaro do vice-presidente, o general Hamilton Mourão? As declarações públicas de ambos sobre temas políticos e ideológicos são muito semelhantes no conteúdo e diferem apenas na forma como são manifestadas. Ambos são claramente de direita, mas Mourão parece menos extremado. O vice-presidente já mostrou, implícita e explicitamente, algumas divergências diante de posições e posturas de Bolsonaro, mas nunca entrou em choque direto com o presidente. O general parece mais racional, menos destemperado emocional e psicologicamente, mais estrategista e mais político do que o capitão.E não aparenta ter identidade com o grupo de extrema-direita, fascista, sectário e ignorante, liderado pelo astrólogo Olavo de Carvalho.
Não há como, porém, dissociar Mourão do governo de Jair Bolsonaro. O vice-presidente não precisa participar da gestão para a qual foi eleito, é apenas um substituto eventual ou permanente. Há muitos exemplos de vices que não se envolveram com o governo e que até conspiraram para derrubá-lo. Mas Mourão é governo: participa de reuniões ministeriais e eventos ao lado do presidente, apoia suas decisões e seus atos e por diversas vezes deu declarações favoráveis a políticas e ações de Bolsonaro. Mourão é tão responsável pelos inúmeros erros do governo como seria dos acertos, se houvessem.
Parece sem sentido, então, afastar Bolsonaro da presidência, por impeachment ou ação judicial, e entregar a cadeira a Mourão. Será uma continuidade de Bolsonaro, alega-se, com a possibilidade de serem cometidos menos erros políticos. Essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas relutam em defender a destituição de Bolsonaro, pois o general é uma incógnita e pode ser tão ou mais nocivo à democracia e ao país quanto o capitão. Muitos acham que é melhor deixar Bolsonaro “sangrar” e derrotá-lo nas eleições de 2022.
Faz sentido, mas o afastamento de Bolsonaro da presidência é fundamental —pelos inúmeros crimes cometidos, pela ameaça que ele representa para as instituições democráticas, pela responsabilidade pelo fracasso no combate à pandemia e pela notória incompetência e incapacidade para governar o país em um período de recessão econômica. É preciso destituir Bolsonaro para impedir que ele dê o planejado autogolpe, de conteúdo fascista, para acumular poderes em detrimento do Congresso, do Judiciário e dos órgãos de controle, das liberdades democráticas, dos direitos humanos e da justiça social. Com Bolsonaro no governo podemos não chegar às eleições de 2022, e, chegando, sofrer o golpe caso ele vença ou, especialmente, caso seja derrotado. Não é à toa que sempre fala em fraude.
E não tem jeito: infelizmente, é Mourão que vai para o lugar de Bolsonaro, caso ele seja afastado. Só haveria duas maneiras de isso não acontecer: por uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral cassando a chapa vitoriosa em 2018, o que levaria a novas eleições diretas (se a decisão judicial for tomada ainda neste ano) ou pelo Congresso (se a decisão for tomada em 2021); ou por uma ação, fora dos parâmetros constitucionais, que derrubasse o governo e instituísse outro. A primeira é improvável, a segunda é impossível.
É por isso que a formação de uma frente que agrupe todos os democratas favoráveis à destituição de Bolsonaro, à esquerda, ao centro ou à direita, não envolve a discussão e elaboração de um projeto nacional, de um programa de governo, de uma coalizão para governar o país ou de políticas sociais e trabalhistas. É uma frente ou união de forças políticas e sociais com o objetivo específico de afastar Bolsonaro e conter a ameaça fascista. É uma união contra o fascismo bolsonarista, que se dissolverá assim que seu propósito for alcançado. O governo que virá será do general Mourão, que escolherá seus aliados formará a coalizão que achar melhor.
É razoável achar que dificilmente o novo presidente da República, que assumirá graças à resistência da sociedade ao projeto bolsonarista, tentará repetir o mesmo caminho. Será um governo de direita, de postura conservadora, e certamente dará prosseguimento a uma política econômica ultraliberal. Mas, sem a ameaça golpista e fascista representada por Bolsonaro e seus seguidores fanatizados, a esquerda e a centro-esquerda poderão atuar no cenário democrático,fazer oposição e se preparar para disputar as eleições e tentar ganhar a presidência, governos estaduais e cadeiras parlamentares em 2022.
Impeachment é viável, se…
Embora não haja ainda condições objetivas para o impeachment, há grandes possibilidades de que aconteça. Para isso, porém, é preciso mais do que vontade e desejo. E a esquerda, sozinha, não viabilizará o afastamento de Bolsonaro. Pode até vir a ser hegemônica nas ruas e mobilizar organizações populares, mas isso, por si só, não influenciará os votos da maioria conservadora e de direita que domina o Congresso Nacional. Os votos da esquerda e da centro-esquerda não são suficientes sequer para autorizar a abertura do processo na Câmara, quanto mais aprovar o impeachment no Senado.
O impeachment só vai acontecer quando se concretizarem duas situações aparentemente contraditórias, mas dialéticas: a convicção de grande parcela do grande empresariado de que Bolsonaro não atende mais a seus interesses e deve ser substituído, por um lado, e, por outro, a realização de grandes manifestações — e não apenas nas ruas — que demonstrem o apoio de parcela substancial da sociedade ao afastamento. Os interesses desses dois grupos —capital e povo — são distintos, mas interagem e podem culminar no mesmo objetivo.
Esses dois fatores estiveram presentes nos impeachments de Fernando Collor e de Dilma Rousseff, que não aconteceriam sem eles. Hoje, uma parcela dos empresários de diferentes segmentos já entende de que as atitudes e medidas de Bolsonaro prejudicam a economia e, consequentemente, seus negócios, e que é preciso afastá-lo para que o país possa retomar o crescimento nos moldes que lhes interessa. Mas ainda há setores que temem que a instabilidade políticaseja ainda maior com um longo processo de impeachment e preferem tentar levar o presidente a rever suas posturas, que geram sucessivas crises e atrapalham a inserção internacional do país, a confiança dos investidores e o desenvolvimento.
Além disso, a sociedade terá de estar majoritariamente a favor do impeachment, o que ainda não acontece, ou acontece por pequena margem. O apoio ao afastamento poderá ser mostrado por pesquisas confiáveis e em declarações de entidades representativas da sociedade civil, mas precisa se expressar nas redes sociais e, principalmente, em grandes manifestações populares, por todo o país.
As manifestações de porte, porém, só deverão acontecer quando a pandemia arrefecer e as pessoas se sentirem seguras para ir às ruas. Nada adiantará se apenas grupos militantes e radicalizados se manifestarem, pois será necessário repetir o que aconteceu nas Diretas Já e no impeachment de Collor. Manifestações massivas, e não de pequenos grupos, são fundamentais para enfrentar a violenta resistência dos bolsonaristas radicalizados, entre eles policiais e militares armados, a infiltração de provocadores e, provavelmente, a parcialidade das polícias militares.
Tirar Bolsonaro da presidência, pelos meios constitucionais disponíveis, é hoje a tarefa central dos que se opõem a seu governo, a seus métodos e a seus projetos, porque é essencial para que possam continuar atuando politicamente em um ambiente democrático. Já é também objetivo dos que se mantiveram neutros diante de sua ascensão e até recentemente diante de sua gestão e, finalmente, constataram que ele é uma ameaça à democracia e ao país. E parece que será o objetivo de muitos que o apoiaram, mas já veem que sua presença é prejudicial para seus interesses e objetivos e é preciso descartá-lo para seguir em frente.
Esses três setores terão de estar juntos para aprovar o impeachment de Bolsonaro ou autorizar que seja processado pelo Supremo Tribunal Federal. Depois, cada um deles seguirá seu caminho — o que, para as esquerdas, significará continuar na oposição, mas aliviada da ameaça fascista.
Por Hélio Doyle