Por que não há pirâmides na Amazônia?

As sociedades humanas, do passado e do presente, apresentam um alto grau de diversidade em termos de demografia, estrutura e organização social.

Por que não há pirâmides na Amazônia?

Por que não há pirâmides na Amazônia?

 Por   Publicado em 14 de janeiro de 2021

Relíquias arqueológicas marajoaras em exposição no Museu do Forte do Presépio em Belém durante a Semana Nacional dos Museus em 15 de maio de 2017 - Foto: Thiago Gomes/Agência Pará

WALTER NEVES
Instituto de Estudos Avançados-USP

CRISTINA ADAMS
Escola de Artes, Ciências e Humanidades-USP

As sociedades humanas, do passado e do presente, apresentam um alto grau de diversidade em termos de demografia, estrutura e organização social. Entretanto, espremendo essa diversidade, é legítimo dizer que elas podem ser classificadas, em graus cada vez maior de complexidade, em bandos de caçadores-coletores, tribos com agricultura incipiente, cacicados com agricultura semi-intensiva, e estados, com agricultura intensiva. Os caçadores-coletores são pequenos, basicamente igualitários, autossustentáveis e com alta mobilidade. As tribos já são um pouco mais sedentárias e praticam um tipo de agricultura denominada itinerante ou de coivara. Abrem uma pequena clareira na floresta, tocam fogo, e ali plantam uma diversidade de vegetais, mas sempre com o predomínio de um cultivar. No caso do Brasil, mandioca ou milho. Apresentam uma demografia já bastante expressiva. São também igualitárias, ou seja, não há definição de classes sociais. Todos participam da produção. Se são ou não autossustentáveis ainda é motivo de discussão. Os cacicados, quase não mais encontrados no presente etnográfico, já apresentam uma demografia na casa das centenas, geralmente liderada por alguns indivíduos ou famílias, que formam uma elite emergente. Essa elite emergente nunca se envolve na produção de comida. A agricultura é semi-intensiva e não é incomum que estruturas arquitetônicas, ainda que modestas, sejam construídas.

Já as sociedades estado apresentam uma demografia que remete a milhares (e até mesmo milhões) de indivíduos, são absolutamente sedentárias e vivem da agricultura intensiva, incluindo aí, a construção de terraços para turbinar a capacidade de suporte da paisagem original. Uma outra característica dessas sociedades é que apresentam classes sociais muito bem definidas e mantidas por coerção social. Abunda a monumentalidade das construções, normalmente realizadas por uma classe de escravos. Há, portanto, uma elite que governa, na maioria das vezes, por mandato “divino”. Essa elite controla, até certo ponto, uma classe religiosa profissional e um exército, que lhes dão sustentação. Foi com os estados que começou a configurar, até hoje, as grandes diferenças sociais. Essas sociedades causaram, e ainda causam, grande impacto ambiental e dificilmente podem ser ditas autossustentáveis. Isso não quer dizer que todas as sociedades passam necessariamente por esses estágios, algo denominado de evolução unilinear. Tanto é que temos até hoje vários bandos de caçadores-coletores no planeta.

Muito bem. Se olharmos para a diversidade etnográfica e arqueológica da Amazônia (Terras Baixas), podemos dizer que ali existiram e continuam existindo apenas bandos de caçadores-coletores e tribos com agricultura incipiente. Entretanto, se observarmos o registro arqueológico dos Andes (Terras Altas), abundavam ali vários estados, cuja maior característica é a monumentalidade construtiva, com palácios e pirâmides construídas maiormente por pedra, sem prejuízo de outros materiais, como terra e madeira. Esse grande contraste entre Terras Altas e Terras Baixas é tão conspícuo que foi notado até mesmo pelos primeiros colonizadores europeus. Mas a partir dos anos 1940 antropólogos e arqueólogos começaram a se debruçar sobre o tema com afinco.

Na verdade, as primeiras ideias sobre o assunto giravam em torno de que as Terras Altas apresentavam muito maior sustentabilidade alimentar do que a Amazônia. Como se sabe, os sedimentos amazônicos são muito pobres em nutrientes e são incapazes de sustentar uma agricultura intensiva. As áreas de cultivo hoje abertas pelos amazônidas produzem por cerca de 3 ou 4 anos, sendo absolutamente necessária a abertura de uma nova área agricultável findo esse prazo. Por isso, esse tipo de agricultura é chamado de itinerante. Essa idéia inaugurou na arqueologia e na antropologia a tradição de se buscar na Amazônia fatores ecológicos limitantes ao desenvolvimento (complexificação) social. Para os pesquisadores das décadas de 1940 até 1960, esse fator limitante era claro: produção de carbo-hidratos, vindos sobretudo do cultivo da mandioca e do milho. Em suma, as sociedades indígenas amazônicas estavam fadadas ao seguinte destino: baixa demografia, alta mobilidade e inexistência de monumentalidade arquitetônica.

No início dos anos 1970 houve uma grande mudança nesse paradigma. Alguns autores haviam demonstrado ainda nos anos 1960 que na verdade a agricultura itinerante podia sim sustentar um grande número de indivíduos, sem impactar de forma permanente a floresta primária. Em outras palavras, mesmo que as áreas cultivadas fossem significativamente ampliadas, a auto-sustentabilidade poderia ser garantida. Mas se não era a produção de carbo-hidratos que limitava o adensamento populacional na Amazônia, quem seria o vilão? A resposta veio rápida: a escassez de proteína animal.

Todos sabem que a floresta tropical é muito rica em fauna. Ocorre, entretanto, que essa fauna é difícil de ser perseguida, abatida e consumida. Os animais amazônicos dificilmente andam em bando, são de hábito noturno, têm porte pequeno e médio, e no caso dos primatas, vivem inacessíveis nas copas das árvores. Portanto, proteína passou a ser o fator limitante para o desenvolvimento social na Amazônia. Diferente do carbo-hidrato, essa ideia durou pouco. Já no final dos anos 1970 alguns autores demonstraram que na verdade há abundância de proteína animal na floresta tropical úmida, principalmente quando se leva em conta os peixes, os pequenos répteis e os insetos comestíveis.

Oras, se nem carbo-hidrato, nem proteína era um fator limitante à complexificação social na Amazônia, por que ali não floresceram cacicados e estados?

A resposta a isso veio da arqueologia praticada na região nos anos 1980 e 1990. Aqui cabe um parêntese. Os primeiros conquistadores europeus da calha do Amazonas pintaram um quadro social muito diferente daquele que vemos hoje na região. De acordo com os cronistas dos séculos XVI e XVII existiam nas margens do Rio Amazonas e de outros grandes rios da região, sociedades indígenas extremamente grandes e densas. Os índios podiam ser contados aos milhares e muitos desses povos tinham exércitos organizados. Durante séculos, esses relatos foram relegados ao fundo das gavetas. Os cientistas acreditavam que eram relatos exagerados, inverídicos, apresentados ao rei para justificar eventuais fracassos no processo de colonização!

Entretanto, alguns arqueólogos decidiram tirar isso a limpo realizando pesquisas de campo em várias áreas da calha do Amazonas. Ali era o melhor lugar para se fazê-lo, tendo em vista que as várzeas do Amazonas são extremamente férteis e que há uma grande disponibilidade de peixes e quelônios.

Escavação nos tesos marajoaras no Pará – Foto: Reprodução

Essas pesquisas se concentraram em duas áreas principais, sem prejuízo de outras: A Ilha do Marajó, no estuário do Amazonas, e na região de Santarém, na foz do Tapajós com o Amazonas. Desde sempre, ambas as regiões eram conhecidas pelos famosos tesos e por uma cerâmica altamente elaborada. Tesos são morros de terra construídos por mãos humanas e podem ter mais de uma centena de metros de extensão, com alturas que, às vezes, atingem 5 metros ou mais. Não sabemos ainda qual era exatamente a função desses tesos: plataformas para cultivo, locais cerimoniais, ou simplesmente base para residências acima dos terrenos alagados?

O fato é que ambas as regiões eram um espinho na garganta daqueles que pregavam a simplicidade das sociedades tradicionais amazônicas. Para contornar o problema, esses autores interpretavam ambas as culturas como tentativas frustradas de sociedades andinas que tentaram colonizar a Amazônia. Quando, por exemplo, os primeiros portugueses chegaram à foz do Amazonas, no século XVI, a cultura Marajoara não mais existia. Ela tinha sido substituída por sociedades tribais muito simples.

Entretanto, as pesquisas arqueológicas realizadas em ambas as regiões nos anos 1980 e 1990 não deixaram dúvidas: de fato existiram ali sociedades bastante complexas, por centenas de anos, e o desenvolvimento de uma refinada indústria cerâmica tinha sido um processo local, afastando qualquer contribuição andina! Portanto, os relatos dos primeiros cronistas não eram exagerados: ao longo do estuário e da calha do Amazonas tinha havido de fato comunidades indígenas numerosas e densas. O único ponto que ainda faltava resolver eram as bases materiais de sustentação dessas sociedades. Ainda não o foi!

Muitos autores apostam que essa sustentabilidade era turbinada pelo que chamamos hoje de manejo florestal. Temos a tendência de pensar binariamente na sobrevivência de sociedades indígenas: ou eram caçadores-coletores, ou eram agricultores incipientes. A partir dos anos 1980 ficou claro que há toda uma gama de matizes entre esses dois padrões. Mostrou-se que várias populações indígenas manejam a floresta para turbinar sua produtividade natural. Na verdade, entre 11 e 30% da floresta amazônica atual é secundária ou antrópica, resultado de manejos altamente elaborados. Vamos dar dois exemplos que são clássicos na literatura. Os índios Kayapó, por exemplo, vivem no limite entre a floresta tropical e o cerrado. Tendo em vista que esse último é menos produtivo que a primeira, esses índios “expandem” a floresta em detrimento ao cerrado, simplesmente transplantando mudas de árvores da mata para a savana, criando ilhas altamente produtivas em frutos, sementes e tubérculos naturais. Não se trata, portanto, de agricultura propriamente dita, mas sim de manejo florestal. Outro exemplo são os índios Omágua da calha do Amazonas que não mais existem. Entretanto, cronistas do século XVI que ainda os viram funcionando, descreveram várias técnicas de manejo. Entre elas, a formação de verdadeiros currais de tartarugas, excelentes fontes de proteína.

 

Mas, se no passado, não tão distante, havia sociedades densas e com alguma complexidade na floresta tropical, por que elas não existem mais? Por que hoje em dia essas sociedades são apenas de caçadores-coletores ou tribais? Muito provavelmente isso resultou do processo de colonização europeia. Quando os portugueses chegaram à Amazônia existiam ali cerca de 6 milhões de índios. Hoje, não passam de 600 mil. Em outras palavras, a colonização foi implacável e quase exterminou as populações indígenas da região, seja por guerra, seja pelo contato com doenças desconhecidas que se tornaram epidêmicas e fatais entre os índios. Daí pode-se concluir que a diversidade social nativa amazônica de hoje não representa a diversidade que ali existiu até o contato com os europeus.

Mas por que os índios que sobreviveram ao contato, não se reorganizaram em sociedades mais densas? Por uma razão muito simples: as terras altamente produtivas das calhas dos grandes rios foram prioritariamente tomadas pelos portugueses, que os obrigaram a se refugiar nos interflúvios, terras muito menos produtivas e com uma fauna aquática muito limitada.

Agora que sabemos que a diversidade social dos índios amazônicos atuais não pode servir como parâmetro para o que havia no passado, a grande pergunta que resta responder é: que nível de complexidade social os amazônidas desenvolveram antes da chegada dos europeus? Alguns autores, bastante incautos, entusiasmados com as descobertas arqueológicas dos anos 1980 e 1990, chegam a falar em “Estados Amazônicos”. Certamente um exagero! Entretanto, essas mesmas descobertas nos permitem, hoje, sem grandes possibilidades de erro, dizer que além dos bandos de caçadores-coletores e das sociedades tribais, em alguns locais muitos específicos da Amazônia desenvolveram-se vários cacicados. Quão estáveis eram provavelmente jamais saberemos.