Índice ideológico guiou oposição dos EUA a Jango

O índice ideológico integra documentação descoberta pelo historiador e professor da USP Felipe Pereira Loureiro.

Índice ideológico guiou oposição dos EUA a Jango

DITADURA MILITAR

Índice ideológico guiou oposição dos EUA a Jango

PAULA SPERB
Da Folhapress - Porto Alegre

 

João Goulart

Governadores receberam ajuda financeira para desestabilizar a gestão do presidente João Goulart (1961-1964), o Jango, com base em um "índice ideológico".
Financiamentos e doações orquestradas pelos Estados Unidos usavam como critério sete categorias elaboradas pela embaixada americana no Brasil em 1962.
O índice tipificava os governadores como comunista ou criptocomunista; companheiro de viagem ou inocentes úteis; esquerdista ultranacionalista; reformistas radicais não comunistas; centristas; conservadores; e extremistas de direita.
Uma oitava categoria, "outros", servia para aqueles que não se encaixassem nas outras.
O índice ideológico integra documentação descoberta pelo historiador e professor da USP Felipe Pereira Loureiro.
A pesquisa, que levou mais de oito anos, agora é publicada no livro "A Aliança para o Progresso e o Governo João Goulart: Ajuda Econômica Norte-Americana a Estados Brasileiros e a Desestabilização da Democracia no Brasil Pós-Guerra" (editora Unesp).
Jango sofreu um golpe em 1964, dando início à ditadura militar que duraria até 1985. Então vice-presidente, em 1961, Jango assumiu a Presidência com a renúncia de Jânio Quadros.
Ele foi alvo de tentativa de um primeiro golpe, para que não assumisse o cargo. Jango tomou posse graças à campanha da legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, a partir da capital gaúcha.
Entre a documentação estudada, Loureiro localizou correspondências entre embaixada e consulados com discussões sobre em quais categorias os governadores deveriam ser enquadrados.
"O principal argumento é que os partidos não adotavam claramente as divisões ideológicas e que o governo norte-americano precisava de uma régua mais precisa para saber quem eram os políticos inimigos, os adversários ou confiáveis. Esse termo, inimigo, aparece com alguma frequência. Mostra um tipo de interferência muito extrema", afirmou à reportagem o pesquisador.
O governador que mais recebeu ajuda foi Carlos Lacerda (41%), da Guanabara, classificado como reformista radical não comunista. Em seguida, aparecem José de Magalhães Pinto (11%), de Minas Gerais, marcado como centrista, e Ademar de Barros (9%), de São Paulo, como conservador. Os três conspiraram contra Jango –Magalhães Pinto, enquanto tramava para derrubar o presidente, chegou a escrever inúmeras cartas a Jango pedindo favores.
Para Loureiro, é curioso que Lacerda tenha sido classificado como um reformista. "É verdade que, quando se olha os discursos, ele retoricamente se dizia favorável à educação básica, a reformas mínimas no que se refere a tributos. Mas, de forma prática, ele pouquíssimo avançou."
De acordo com o historiador, o principal objetivo da ajuda financeira dos EUA aos governadores, por meio do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), era fortalecer uma oposição política a Jango tendo em vista a eleição presidencial marcada para 1965. Naquele momento, o golpe ainda não era a saída.
"O principal objetivo era moderar Goulart. Políticos como Lacerda, Magalhães e Ademar de Barros podiam influenciar deputados e senadores dos seus estados. Assim, o presidente era obrigado a negociar com essas forças, que dificultariam a implementação de uma agenda radical", diz Loureiro.
Jango era um fazendeiro rico e, embora tivesse o plano das reformas de base, que incluía a reforma agrária, não era ideologicamente comunista, sendo alinhado ao trabalhismo. Ele foi ministro do Trabalho (1953-1954) durante o governo de Getúlio Vargas.
A reforma agrária era, inclusive, pauta da chamada Aliança para o Progresso, programa de ajuda econômica dos Estados Unidos para a América Latina lançado pelo presidente John Kennedy em 1961.
O propósito da iniciativa era colaborar com o desenvolvimento, desde que cumpridas contrapartidas como reformas socioeconômicas e manutenção da democracia.
A Revolução Cubana, em 1959, impulsionou os Estados Unidos a agirem na América Latina. Para Loureiro, é como se os EUA tivessem feito uma autocrítica sobre como agiram com Cuba, onde alimentaram o regime do ditador Fulgêncio Batista e a desigualdade se manteve.
Assim, para impedir que mais revoluções ocorressem no continente, Washington concluiu que era preciso mudar de estratégia e tentar diminuir a pobreza. Mais desigualdade seria um prato cheio para o temido comunismo. Por isso, a Aliança para o Progresso levaria investimentos privados para os países da região.
Nesse sentido, o Nordeste brasileiro reforçou o receio de que uma revolução popular poderia começar por ali.
"O Nordeste foi simbólico. Um conjunto de reportagens de fôlego, do jornalista Tad Szulc, em 1961, no The New York Times, apresentou à sociedade norte-americana a pobreza endêmica, a fome, a desnutrição e, ao mesmo tempo, a organização das Ligas Camponesas", diz Loureiro.
Havia o medo de que o Nordeste se transformasse em uma Cuba, mas com bases continentais. A aliança agiu, porém, diretamente com os governos estaduais a partir do índice ideológico.
Na gestão Jango, o governo federal não recebeu nenhum empréstimo do BID –exceto para empresas com atuação no Nordeste. Porém, em 8 de abril de 1964, oito dias após o golpe, a instituição aprovou empréstimo de US$ 3 milhões para o Banco do Brasil.
Nos oito meses seguintes, o BID aprovou para o governo militar um montante equivalente a 48,3% do valor total destinado para estados e organismos regionais durante os três anos de governo Goulart.
Sobre o curto intervalo após o golpe, quando o BID começa a liberar empréstimos para o governo federal, Loureiro escreve: "Diante disso, fica difícil argumentar que o BID teria formulado políticas de empréstimo com base em questões puramente técnicas: nenhum novo governo, por mais eficiente que fosse do ponto de vista técnico em comparação a um governo anterior, conseguiria imprimir sua marca na administração federal tão rapidamente".