Como os militares pavimentaram o caminho do retorno ao poder, por Wilson Luiz Müller

Como os militares pavimentaram o caminho do retorno ao poder, por Wilson Luiz Müller

Como os militares pavimentaram o caminho do retorno ao poder, por Wilson Luiz Müller

Quase todos pensavam que o deputado Bolsonaro falava apenas por si. Mas era um engano. Ele expressava o sentimento de muitos militares, talvez até da maioria deles.   

Por

 Wilson Luiz Muller

 

Como os militares pavimentaram o caminho do retorno ao poder

por Wilson Luiz Müller

Vivemos um momento inédito de destruição das conquistas das gerações anteriores. O que nos atinge não é um desastre fortuito. A destruição é ponto de chegada. O ponto de partida é um cuidadoso planejamento iniciado na década de 90, cuja operacionalização foi posta em prática no final da década seguinte.

Primeiro é preciso entender por que os atuais mandatários pretendem desconstituir o que foi construído durante os últimos trinta anos de regime democrático.

 

Bolsonaro: num jantar com lideranças conservadoras nos Estados Unidos, ele disse aos presentes que o sentido de seu governo não é construir coisas para o povo brasileiro, mas desconstruir.

Bolsonaro (na porta do Palácio, para seus apoiadores): “O que eu posso te dizer? Foram 30 anos de destruição deste país. Alguém quer que eu resolva em um ano?”

General Augusto Heleno: disse que o governo está “desfazendo” mais do que fazendo. Segundo ele, isso dá trabalho e toma tempo. “Desfazer 30 anos de desgoverno é trabalhoso.”

Guedes, representante das elites neoliberais que se aliaram com os militares para dividir o poder: “Dá para esperar 4 anos de um liberal-democrata após 30 de centro-esquerda?”

Voltando 30 anos no tempo, chegamos em 1990, dois anos após a promulgação da Constituição Federal – CF. Fica claro que os atuais detentores do poder tem contradições de fundo com a CF; localizam nela a origem e a causa de tudo que precisa ser desconstruído.

A CF de 1988 foi a resultante de um amplo movimento de massas exigindo direitos sociais e liberdade e o  fim da ditadura. Esse movimento impôs uma dura derrota aos militares que tinham reprimido e infernizado os brasileiros durante 21 anos. Eles foram enxotados do poder porque tinham conduzido o país a uma grave crise econômica e social. A dívida externa tinha explodido, milhões de trabalhadores estavam desempregados, havia inflação alta, carestia e fome. O deputado Ulisses Guimarães, líder da oposição, sintetizou o sentimento popular daquele período: “temos nojo da ditadura.”

Durante a década de 90, poucas vozes se animavam a defender os feitos da ditadura. O deputado Jair Bolsonaro era um dos poucos que não apenas defendia o regime fracassado, mas enaltecia inclusive as torturas que a própria ditadura sempre tinha procurado esconder.

Quase todos pensavam que o deputado Bolsonaro falava apenas por si. Mas era um engano. Ele expressava o sentimento de muitos militares, talvez até da maioria deles.

Por que quase ninguém percebeu que Bolsonaro falava em nome dos militares?

Há mais de uma resposta para isso. Uma delas é a de que a esquerda e os democratas, no período pós-ditadura, acreditaram ingenuamente que os militares tinham se conformado em cuidar apenas dos quartéis. Tratava-se de uma crença que contrariava a nossa história, abundante em exemplos de que os militares nunca aceitaram seu papel republicano de se limitar à defesa do país contra eventuais ameaças externas.

Outra resposta é a de que Bolsonaro agia como um militar em guerra. Não se deve revelar ao “inimigo” a estratégia; ao contrário, difundem-se falsas informações para confundir os “inimigos.”

Pelo menos desde o final da década de 90, Bolsonaro não falava apenas em seu nome. Ele expressava a posição de grande parte da tropa, inclusive de muitos generais do alto comando.

Um dos caminhos para se chegar a essa conclusão é analisar as movimentações de Olavo de Carvalho, o guru ideológico da extrema-direita.

Maria Cristina Fernandes, escreveu no jornal  O Valor, em 2019, o artigo “Militares, de parceiros ideológicos a rivais”, onde mostra a parceria de longa data entre Olavo de Carvalho e os militares. Diz ela:

“Há cerca de 20 anos [1999], Olavo despontou para o público em palestras voltadas aos militares lustrando a auto-estima do grupo em um momento delicado, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso tomava as primeiras medidas de reparação aos crimes de Estado que aconteceram na ditadura, e quando se deu início a exumação de ossadas e indenização de familiares vítimas do período, como a filha de Carlos Lamarca.”

“Uma de suas primeiras conferências se deu no Clube Militar, no Rio, por ocasião dos 35 anos do golpe e a convite do general Helio Ibiapina. Presidente do clube por quatro mandatos consecutivos, Ibiapina chefiava a repressão em Pernambuco quando o líder comunista Gregório Bezerra, amarrado à corda de uma guarnição militar, foi exibido pelas ruas do Recife como um troféu da quartelada”.

“O discurso motivacional direcionado aos militares recebeu o nome de “Reparando uma injustiça pessoal”. O escritor [Olavo] disse que os representantes do Exército deveriam ser orgulhar pela morte de “guerrilheiros comunistas” – “Nunca se deteve uma revolução com tão poucas mortes”.

“No mesmo ano em que fez a palestra, Olavo recebeu uma carta do então ministro do Exército, general Gleuber Vieira, elogiando seu trabalho como “inteligente, prudente, equilibrado e de bom senso”. Gleuber lhe concedeu a Medalha do Pacificador, a principal condecoração do Exército.”

“Mais tarde, em 2001, o escritor participou do “I Simpósio sobre Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional”, promovido pelo Clube Naval do Rio, e também de uma conferência no Clube Naval do Rio. Nesse mesmo ano recebeu a Clube Naval do Rio.”

“Em 2002, Olavo palestrou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e passou a colaborar com o Instituto Histórico e de Geografia Militar, via financiamento da Odebrecht. A proposta do projeto era revisar quatro compêndios de “O Exército na História do Brasil”, publicado pela Biblioteca do Exército.”

“Ainda em 2002, o escritor participou do projeto “História Oral do Exército Brasileiro na Revolução de 1964”. Com a eleição de Lula, [Olavo] saiu do Brasil e se instalou na Virgínia de onde continuou colaborando com os militares.”

“Estariam formadas as bases daquilo que Piero Leirner, estudioso da Ufscar, chama de “arsenal ideológico para repolitizar as Forças Armadas” e seria tão importante para engajar a farda na candidatura de Jair Bolsonaro depois da Comissão da Verdade no governo Luiz Inácio Lula da Silva”, completa Cristina Fernandes.

A articulista explica também qual foi a verdadeira causa da demissão do general Santos Cruz, único militar de alta patente demitido até agora por divergências com o governo.

“O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, nunca militou nas hostes do revisionismo mas entrou na mira de Olavo pelo controle exercido sobre os cargos”.

Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional do Partido Militar

A estratégia dos defensores da ditadura para retomar seu protagonismo político iniciou com a pretensão de se “reparar uma injustiça pessoal”. Alguns anos depois, evoluiu para “Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional”. E finalmente,  almejavam revisar o papel do Exército na história recente do país, o que equivalia a difundir uma outra narrativa em lugar da história real: de que os grupos de esquerda eram terroristas e que os militares tinham sido as vítimas.

A estratégia da “mobilização da vontade nacional” mostraria seus primeiros resultados a partir de 2013, nos movimentos de massa conhecidos como jornadas de junho. Um movimento espontâneo de protesto contra o aumento de passagens foi rapidamente apropriado pela extrema-direita, sendo a pauta redirecionada contra o governo da presidente Dilma. Em poucas semanas, os manifestantes deixaram de falar das passagens e passaram a pedir intervenção militar e mais poder ao Ministério Público Federal.

Havia alguma lógica para que um movimento contra o preço das passagens se transformasse da noite para o dia  numa luta em favor dos procuradores do Ministério Público e pela volta da ditadura?

 

Havia. Estava sendo posta em prática a “Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional” que vinha sendo planejada há pelo menos 10 anos. Entre o ano 2000 e as jornadas de junho de 2013, Olavo de Carvalho se transformara em líder ideológico dos militares brasileiros empenhados na tarefa do revisionismo histórico. O objetivo era limpar a “barra” da ditadura, enaltecer seus grandes “feitos patrióticos” e credenciar novamente os militares como alternativa de poder político. Olavo se tornou íntimo da família Bolsonaro nesse período. Há vídeos na internet que ainda podem ser vistos com os Bolsonaro em conversas com Olavo.

Em 2012, Flávio Bolsonaro foi especialmente aos Estados Unidos para entregar a Olavo a Medalha Tiradentes, honraria que ele fez aprovar na Assembleia Legislativa do RJ.

Nos Estados Unidos, Olavo se aproximou de Steve Bannon, ex-assessor de Trump que foi preso recentemente. Olavo colocou Bannon em contato com os militares associados ao projeto Bolsonaro. Bannon era um especialista em manipular a opinião pública por meio das chamadas operações psicológicas, sinônimo de “Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional”. Com seus métodos de manipulação de massas, usando as modernas redes sociais, Bannon tivera êxito em destruir opositores de esquerda na Itália e na Hungria, colocando em seu lugar extremistas de direita. Bannon também foi o estrategista para a vitória do Brexit no Reino Unido e da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.

 

Em 2013, ocorreu o julgamento do chamado “Mensalão”, sendo montado um grande show midiático para criminalizar o PT. Esse julgamento é a gênese dos processos de exceção que seriam a seguir adotados pela Lava Jato. Pela primeira vez, a corte adotou a esdrúxula teoria do domínio do fato para condenar réus em relação aos quais não havia provas. Vários réus foram condenados sob a presunção de que tinham a obrigação de saber o que acontecia com as pessoas que estavam de alguma forma sob a sua supervisão. Se algum subordinado cometesse um crime, presumia-se que o supervisor era o idealizador do crime.

Sérgio Moro atuou como juiz auxiliar para assessorar o STF na redação das sentenças dos condenados no chamado mensalão. Essa atuação lhe renderia anos depois uma certa ascendência sobre alguns dos ministros do STF. A teoria do domínio do fato entrou para os anais do STF como uma gambiarra vergonhosa. Na Lava Jato, bastou a Moro uma pequena adaptação para condenar Lula por atos indeterminados. Por que haveriam os órgãos colegiados inferiores (TRF) contrariar depois as decisões de Moro se o STF tinha feito igual ao que o Moro estava fazendo?

Em novembro de 2014, cheio de confiança pelo bom andamento da estratégia posta em prática nos círculos militares, Bolsonaro avançou algumas casas no jogo de xadrez com vistas à reconquista do poder pelos militares.

Convidado de honra da formatura na AMAN, ele foi recebido aos gritos de “Líder!, Líder!, Líder! …” pelos aspirantes-a-oficial da Academia Militar das Agulhas Negras. Bolsonaro aproveitou a ocasião para lançar a sua plataforma futura de candidato a presidente.

A demonstração pública de que ele falava em nome dos militares – e não era apenas candidato de si mesmo – tinha o objetivo de passar claramente a mensagem aos círculos fardados.  Eles se encarregariam de levar a campanha para fora dos quartéis, dando a impressão de que a sociedade, alheia durante 30 anos aos discursos de Bolsonaro, passara de uma hora para outra a apoiar a agenda dele.

Para que não houvesse riscos à execução do plano,  era imprescindível contar com o apoio – ou a omissão – de uma parte considerável do judiciário brasileiro. Para isso, era preciso pedir auxílio ao Departamento de Justiça dos EUA – Doj e ao FBI

The Intercept, Agência Publica e GGN publicaram inúmeras reportagens mostrando a atuação dos órgãos estadunidenses para treinar juízes, procuradores e delegados do Brasil. Essas atividades resultaram,  a partir de 2014, na formação da Força-Tarefa da Lava Jato.   Ela se transformaria num grande laboratório de uma nova forma de disputa política. Os adversários não seriam mais destruídos com bombas ou tanques, mas por meio da manipulação dos aparatos estatais de investigação e justiça. O método consiste na aplicação do Código Penal do Inimigo, também conhecido como processo de lawfare.

Em fevereiro de 2015, apenas três meses após Bolsonaro anunciar que seria o candidato a presidente pelo partido militar, o G1 anunciou:

“Janot discute Lava Jato com Departamento de Justiça dos EUA. Em Washington, procurador-geral também tem reunião prevista com FBI. Força-tarefa de investigadores foi pedir colaboração de norte-americanos.”

Neste mesmo período, o juiz Marcelo Bretas, que seria considerado o Moro do Rio de Janeiro, também foi treinado por autoridades dos EUA.

“Bretas fez curso no DoJ e FBI antes de deflagrar a Lava Jato do Rio. Por Luís Nassif

De janeiro a março de 2105, Bretas frequentou o programa Visiting Foreign Judicial Fellows do Centro Judiciário Federal.”

A Lava Jato de Curitiba se dedicaria a desmantelar o sistema Petrobras e as empresas de engenharia nacional. A Lava do Rio de Janeiro partiria pra cima do BNDES, tentando provar que o banco era um antro  de corrupção. É preciso lembrar que o BNDES foi o banco responsável pela alavancagem de empresas nacionais que se projetaram no exterior, fazendo concorrência com empresas dos EUA. Era algo que incomodava as autoridades estadunidenses, sempre muito atentas em defender os interesses de suas empresas.

A hegemonia político-ideológica conquistada pelo consórcio militar-lavajatista –  formado para destruir a esquerda – era tão forte que não havia necessidade de esconder qualquer coisa. Usando máquinas poderosas de manipulação de informações, o povo tinha sido convencido de que o país precisava retornar ao passado militar para se livrar do PT. A Lava Jato era a principal ferramenta usada pelos militares para derrubar o PT.

Desde 2014 o FBI estava trabalhando em parceria com a Lava Jato. Até 2018, em torno de 20 agentes do FBI tinham atuado no país sem o conhecimento oficial das autoridades brasileiras.

Montadas as estruturas, definidos os apoios e a estratégia de longo alcance, seriam implementados os seguintes passos táticos pelo consórcio midiático/neoliberal/militar/judicial:

Primeiro passo: destituir a presidente Dilma;

Segundo passo: fortalecer a extrema-direita nas eleições municipais de 2016, encurralar a esquerda e pavimentar o caminho para a vitória da extrema-direita em 2018;

Terceiro passo: condenar Lula, único político do campo popular que teria força para evitar a consumação do golpe da extrema-direita nas eleições de 2018;

Quarto passo:   proibir Lula de ser candidato a presidente;

Quinto passo: proibir Lula de falar para a sociedade; era uma exigência da Lava Jato, prontamente atendida pelo STF por meio do ministro Luís Fux.

Dados os passos táticos, faltaria, para a vitória de Bolsonaro,  a difusão massiva de notícias falsas, técnica que os militares vinham dominando bem desde o momento em que passaram a ser assessorados por Olavo de Carvalho e Steve Bannon.

A aliança estratégica entre as elites financistas e o Partido Militar

Para que Bolsonaro e seu consórcio jurídico-militar – atuando na prática como um partido militar-policial – pudesse completar seu plano de governo, seria imprescindível uma aliança estratégica com as elites do grande capital. A aliança foi possível porque as elites neoliberais compreenderam que os partidos tradicionais que representavam seus interesses estavam em vias de extinção, atropelados pelos novos métodos de disputa política inaugurados pelo partido militar. As elites – sempre muito pragmáticas – rapidamente assimilaram que tanto fazia serem representadas por um partido tradicional ou pelo partido militar-policial. O importante era que esse novo partido levasse adiante a agenda que interessava aos grandes capitalistas: o desmonte do Estado do bem-estar social.

Para que a aliança pudesse ser levada a termo, foram necessários pequenos ajustes. Os militares, que alimentaram planos de desenvolvimento nacional autônomo durante a ditadura, tinham que esquecer essas “veleidades nacionalistas” e aderir de bolso e alma ao ideário neoliberal, com todas as implicações que isso representaria, principalmente de submissão à potência imperialista do norte.

Em contrapartida, os neoliberais teriam de abrir mão da hegemonia política no processo de desmanche do Estado. O poder seria exercido por meio de uma democracia de fachada. Não seria uma democracia verdadeira. A mídia corporativa associada ao novo partido não permitiria que ninguém chamasse o novo sistema de ditadura. A tutela seria exercida pela força das armas, que – em caso de impasse – teriam sempre a última bala.

O discurso contra a velha política não era demagogia. O Partido Militar-policial tinha de fato a pretensão de substituir os velhos partidos de direita que tinham perdido protagonismo. Pretendia governar, como num regime bonapartista, por cima dos partidos, com ligação direta entre a massa e o seu Duce, seu Fuhrer.

Demagógico mesmo era o discurso anticomunista,  tão ecumênico que incluía, como comunistas, notórios  neoliberais como FHC, Collor e Itamar Franco. Militares sabem que não há risco nenhum de comunismo no Brasil. Podem ser toscos. Mas bobos não são.

O discurso anticomunista é apenas um disfarce para esconder a real intenção que os militares sempre tiveram para retornar ao comando político do país. Lutar contra um inimigo poderoso, que mete medo, porque ninguém sabe onde se esconde, é uma técnica de operação psicóloga que os militares sabem usar como ninguém.

Mas o fervoroso anticomunismo não passa de um simples desejo de abocanhar bons cargos e salários. Com direito a acumular comissão com os soldos; com direito a furar o teto constitucional; com direito a ficarem na mesma posição de seus sócios lavajatistas no grande empreendimento de destruição do Estado nacional.

Alguns fatos a mais podem enriquecer esse enredo, para mostrar como os militares, e agentes públicos dos aparatos de investigação e justiça alinhados a eles, se movimentaram com base num planejamento de longo prazo.

Desde 2015, generais vinham defendendo um golpe contra a presidente Dilma. A mídia corporativa – submissa – falava em “falas polêmicas” dos militares.

Em setembro de 2015, três meses antes do ex-deputado Eduardo Cunha dar inicio ao processo de impeachment de Dilma Rousseff, o general Hamilton Mourão fez uma palestra, na qual pediu “o despertar de uma luta patriótica”.

 

Mourão disse que a eventual substituição da presidente não alteraria de fato o “status quo” e que “a vantagem da mudança seria o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. O general chegou a traçar cenários possíveis para o país, ante o enfraquecimento do governo Dilma: sobrebrevida, queda controlada, renovação ou caos.

Posto na reserva, Mourão se despediu do exército saudando o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador reconhecido da ditadura militar, que segundo relatório final da Comissão da Verdade de dezembro de 2014, é responsável por 45 mortes e desaparecimentos enquanto estava no comando no DOI-CODI.

Em 2016, na sessão da Câmara que cassou o mandato da presidente Dilma, Bolsonaro também elogiou o torturador Brilhante Ustra. Era evidente que o discurso era dirigido aos militares, a essa altura bastante entusiasmados com a possibilidade cada vez mais real de retomar em breve o poder político do país.

Em 2017, o general Villas Boas, usando a estratégia das aproximações sucessivas (como seria revelado pelo general Mourão), começou a usar o Twitter para opinar sobre política. Entre outras coisas, ele combatia a “imposição do politicamente correto”:

“Por outro lado, estamos vivendo uma imposição do politicamente correto, vivendo uma verdadeira ditadura do relativismo e com uma tendência a que não se estabeleçam limites nas condutas.”

As falas do general-chefe do Estado Maior evidenciavam a adesão dos militares à ideologia neoliberal. Combater o “politicamente correto” integrava uma estratégia mais ampla de necessidade de combater um suposto marxismo cultural que teria se entrincheirado nas instituições da sociedade brasileira. Na verdade, esse combate tinha o objetivo de convencer a sociedade que as regulamentações estatais tinham que ceder lugar ao avanço sem limites do grande capital; era o anúncio de que os capitalistas, em aliança com os militares, não mais aceitariam restrições legais e normativas ao seu livre e rápido enriquecimento.

Em julho de 2017, o juiz Sérgio Moro condenou Lula à prisão.

Em dezembro de 2017, o subprocurador geral estadunidense Kenneth A. Blanco, que dirigia a Divisão Penal do Departamento de Justiça dos EUA – DoJ, referiu-se à condenação de Lula como o principal exemplo dos “resultados extraordinários” alcançados graças à colaboração do Departamento de Justiça – DOJ com os procuradores brasileiros da Operação Lava Jato.

Ainda em 2017, Bolsonaro aparece batendo continência à bandeira dos Estados Unidos. Era para demonstrar gratidão. O candidato escolhido pelo consórcio neoliberal/militar/judicial queria deixar bem claro que estava alinhado – e seria submisso – aos Estados Unidos. Queria tranquilizar os principais interessados de que o golpe em curso no Brasil não sofreria retrocessos caso ele chegasse à presidência.

Bolsonaro abandonou por completo o discurso nacionalista e de defesa do Estado brasileiro que marcara parte dos seus mandatos como deputado. A adesão ao neoliberalismo made in Chicago era ampla, geral e irrestrita. Nada poderia ser mais simbólico do que bater continência à bandeira do principal país imperialista para sinalizar essa dupla submissão.

Em setembro de 2017, o então general da ativa Hamilton Mourão, que em 2018 seria escolhido vice de Bolsonaro, defendeu explicitamente a intervenção militar. Os militares (auxiliados nessa tarefa pela Lava Jato) vinham exercendo uma grande pressão sobre o STF para que não fosse revogada a condenação de Lula, feita sem provas por Moro e pela Lava Jato.

A estratégia das aproximações sucessivas do Partido Militar

Disse Mourão que seus “companheiros do Alto Comando do Exército” entendem que uma “intervenção militar” poderá ser adotada se o Judiciário “não solucionar o problema político”, em referência à corrupção de políticos. Que chegará o momento em que “… ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso.” Explicou que “… hoje nós consideramos que as aproximações sucessivas terão que ser feitas”. Segundo o general, o Exército teria “planejamentos muito bem feitos” sobre o assunto, mas não os detalhou.

Em maio de 2018, a ideia da intervenção militar movia a greve dos caminhoneiros. Reportagem do Correio Brasiliense, de 30 de maio de 2018, relatava detalhadamente o que se passava nos bastidores da greve:

“Pré-candidato a deputado federal pelo PSL (partido do presidenciável Jair Bolsonaro) e coordenador do movimento Despertar da Consciência Patriótica, Cruz trabalhou com caminhões […]

“Hoje, ele participa de mais de 50 grupos de WhatsApp voltados exclusivamente aos caminhoneiros e suas causas, mas garante que não cumpre ordem de ninguém.

“Por meio desses grupos, ele mantém uma comunicação minuto a minuto com vários caminhoneiros – transmitindo vídeos, textos e áudios que, em sua grande maioria, pregam a continuidade da greve, elogiam o período militar e criticam quase toda a classe política.

“Em sua página do Facebook, Cruz compartilha vídeos apoiando os grevistas e escreve textos de forte teor triunfalista: “A vitória está próxima! […]

“ Queda da Bastilha brasileira!! Não vamos afrouxar, que venha a Força Nacional de Segurança e o escambau a quatro, aqui é facão no toco e não arredaremos pé um só milímetro, pois somos o povo e o povo se uniu…”

“Como Ramiro, outros personagens trabalham nos bastidores para incutir a ideia intervencionista na cabeça dos caminhoneiros…”

As mensagens de WatsApp chegaram praticamente a todos os brasileiros e – estranhamente – a maioria foi convencida a apoiar os caminhoneiros, apesar da greve trazer graves prejuízos ao país. Isso evidenciou uma articulação mais ampla e poderosa, que estava muito além da capacidade de mobilização dos caminhoneiros. Além disso, a pauta da intervenção militar tinha sido introjetada de forma artificial no movimento; fácil concluir que isso vinha dos círculos militares, e que a articulação integrava a estratégia da “resistência e da mobilização da vontade nacional.”

Em 2018, por ocasião do julgamento de um habeas corpus de Lula, o general Villas Boas voltou a usar o Twitter para fazer a ameaça de que os militares não aceitariam uma decisão no STF que libertasse Lula da prisão. O STF manteve Lula preso e impedido de ser candidato. Bolsonaro foi eleito presidente.

Em novembro de 2018, foi deflagrada a Operação Furna da Onça pela Lava Jato do Rio de Janeiro. O juiz responsável era Marcelo Bretas. Conforme denúncia de Paulo Marinho, suplente de senador de Flávio Bolsonaro, a operação foi adiada para não prejudicar a eleição de Bolsonaro. Os relatórios COAF com a movimentação milionária suspeita de Fabrício Queiroz constavam dos autos da operação, mas nem Queiroz nem Flávio foram alvos da operação, apesar do escândalo milionário da rachadinha.

Em 1º de outubro de 2018, às vésperas da eleição de Bolsonaro para presidência, Dias Toffoli, recém escolhido presidente do STF, discursou aos militares:

“Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964”. Era a admissão de que as “aproximações sucessivas”, muito bem planejadas por Mourão e seus companheiros do Alto Comando do Exército, tinham logrado êxito. Logo em seguida, de forma inédita para um presidente do STF, Toffoli adotou um general como assessor direto. Tratava-se de ninguém menos que Fernando Azevedo e Silva, que depois assumiria como ministro da Defesa de Bolsonaro.

A retrospectiva mostra que a estratégia das aproximações sucessivas foi de fato muito bem planejada pelo Alto Comando, logrando pleno êxito quanto aos resultados pretendidos.

Os generais começaram a fazer ameaças contra a ordem democrática em 2015. Não havendo reação adequada das instituições, o consórcio judicial/midiático/militar, financiado pelo grande capital financista, foi avançando, removendo regras democráticas, suspendendo partes da Constituição Federal, pressionando e chantageando ministros do STF, para finalmente consolidar o processo golpista iniciado em 2016 com a deposição da presidente Dilma.

Em outubro de 2018, o consórcio assumiu de forma plena o poder. Dali em diante seria implantada essa democracia de “novo tipo”, onde o grande capital financista reina absoluto e sem regras – numa espécie de retorno aos primórdios do capitalismo predatório –  sob a tutela dos militares e a conivência do judiciário.

Nessa “democracia de novo tipo”, não há mais necessidade de o governo ter um plano de desenvolvimento para o país. A sua principal função é bombardear a população com falsas informações, com o objetivo de gerar um constante clima de conflito na sociedade. Enquanto as partes em conflito se digladiam, as elites saqueiam as riquezas e vão aperfeiçoando seus métodos para enriquecer mais rapidamente às custas das políticas de não-regulação de coisa nenhuma, única política estatal admitida no novo modelo.

As instituições estatais – judiciário na linha de frente – a tudo acompanham passivamente, como se nada disso lhes dissesse respeito. Na verdade, suas cúpulas compartilham – ideológica e financeiramente – do projeto em curso. A cada um segundo as suas necessidades; de cada um segundo suas possibilidades. O libelo “socialista” é aqui aplicado de forma invertida, não para cobrar contribuições, mas para medir os resultados da partilha. A unidade que move o consórcio é a vontade ilimitada de ganhos elevados, rápidos e seguros.

Dois anos depois de ter feito o discurso renomeando o golpe de 64 como movimento de 64 (acusando de fato a consumação do golpe mais recente), Dias Toffoli, a despeito  de ter havido a militarização completa do governo, a despeito de Bolsonaro querer, com a PEC da reforma administrativa (PEC da Rachadinha), mudar a Constituição Federal para ter poderes imperiais e poder contratar como funcionários públicos os militantes bolsonaristas da sua base social,  a despeito de os neoliberais terem se apropriado dos melhores nacos das riquezas nacionais, com generais ameaçando ministros do STF que ainda insistem no respeito à Carta Magna, Toffoli voltaria a discursar, dessa vez de saída da presidência do STF:

“De todo relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”.

O processo golpista ainda está em curso, porque falta desmontar muito do que foi construído nos últimos 30 anos de democracia, período em que os brasileiros atingiram seu melhor nível de vida.

A presidência do STF passou às mãos de Fux, em quem Moro e Deltan confiavam como se fosse um Deus. E Fux já demonstrou que acredita no Deus-mercado ante quem todos devem se ajoelhar. Numa palestra promovida em 2019 pela corretora XP, ele defendeu a reforma da Previdência para uma seleta platéia de banqueiros, que adoraram a música. Ele disse: “isso é um problema intergeracional (sic). As pessoas devem ter amor ao Brasil, amor à coisa pública e não fazer oposição que seja prejudicial ao País”.

Por enquanto Fux nada adiantou sobre a herança deixada por Toffoli, se herdará também os generais para mais “tranquilamente” poder exercer a presidência do STF. Seja o novo presidente do STF tutelado ou não por generais,  nada indica que haja riscos iminentes à hegemonia do consórcio que domina a república. Na posse, ele disse:

“Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato”.

 

Pequeno capítulo sobre os prêmios e as compensações

Passados alguns anos da fase inicial de destruição do Estado do bem-estar social, tem-se por enquanto os seguintes beneficiários:

– Capitalistas neoliberais: desmonte do Estado do bem-estar social com a lei do teto de gastos; reformas trabalhista, previdenciária e administrativa;

– Sérgio Moro: cargo de ministro da justiça no governo Bolsonaro

– general Azevedo (assessor do presidente do STF Dias Toffoli): ministro da Defesa de Bolsonaro

– Militares:  6.000 cargos de confiança (a maior parte deles estratégicos) no governo Bolsonaro; receberam dois aumentos salariais e não foram afetados pelas reformas previdenciária e administrativa; Guedes defende o aumento do teto constitucional para que os militares possam acumular gratificações + soldos e com isso atingir salário igual ao dos procuradores e juízes, seus sócios no empreendimento de desmonte do Estado;

– Procuradores e juízes: maiores vencimentos do país (53 mil e 51 mil/mês em média; imunes a qualquer reforma que tire algum privilégio deles);

– Procuradores da Lava Jato: ganharam do DoJ parte das multas aplicadas à Petrobras, no valor de R$ 2,5 bilhões para organizar uma Fundação que seria usada para um projeto político próprio;

– O general Villas Boas, que ameaçou o STF para não libertar Lula, foi escolhido para assumir a função de assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro.

Em janeiro de 2019, tão logo tomou posse, Bolsonaro agradeceu ao general:

— General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui.

– governo dos Estados Unidos: ganhou a base de Alcântara; a Embraer; o petróleo do pré-sal; parte do mercado de grãos que era do Brasil (o governo está trabalhando pelos interesses americanos na guerra comercial contra a China).

Em março de 2019, Bolsonaro e Moro foram pessoalmente aos Eatados Unidos para agradecer a colaboração que tiveram para condenar Lula e para os militares retornar ao poder. Reuniram-se com Steve Bannon na Embaixada em Washington e visitaram CIA, agência de inteligência dos EUA. Olavo de Carvalho participou da reunião na embaixada; tinha indicado alguns ministros para o governo Bolsonaro; a família do presidente ajudava Olavo com “vaquinhas” para que ele pagasse suas dívidas nos EUA.

Epílogo

No dia 07 de setembro de 2020, Bolsonaro faz um curto discurso para elogiar a ditadura militar implantada em 1964, numa atitude de gratidão e fidelidade aos verdadeiros responsáveis pela sua atual condição de presidente.

A síntese de tudo isso é que o consórcio neoliberal anti-republicano (atual bloco dominante) decidiu que o povo não cabe mais no orçamento. A república agora é somente deles. Para garantir direitos e cidadania para 210 milhões de pessoas, dois ou três milhões de privilegiados do andar de cima teriam que abrir mão de uma parte de seus fabulosos ganhos. Mas eles estão decididos a não abrir mão de um centavo sequer. São os atuais herdeiros das velhas capitanias hereditárias. A coroa portuguesa foi substituída pelo grande capital financista, que tem nos capitães-zeladores seus fiéis vassalos regiamente remunerados como se capitalistas também fossem; pensam e agem como tais.

Por isso, o Brasil é o país do mundo em que o número de bilionários cresce mais rapidamente, em que o judiciário é um dos mais caros do mundo, onde a maior parte dos cargos de comando no governo são ocupados por militares.

Há coerência na destruição. Se depender do consórcio, o Estado brasileiro seguirá sendo destruído; não sobrará pedra sobre pedra.